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Os tempos são chegados

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A moça me diz que crê no espiritismo. Pergunto se ela acredita na existência de almas do outro mundo. Tudo é criação de Deus - responde. O sofrimento não teria sentido se não houvesse nada após a morte - acrescenta.

Ela me conta que foi criada na religião católica. Casou-se em igreja católica e sempre rezou antes de dormir. Porém, há dois anos perdeu o marido, levado pelo câncer. Desde então professa fé espírita. Leu livros de Chico Xavier a quem chama de iluminado.

A conversa me fez voltar à memória a imagem do seu João. Era um baixinho, invariavelmente trajando um terno cinza muito puído. Mas, o que nele impressionava era o rosto no qual se desenhava expressão sempre grave. Barba por fazer, voz profunda. Seu João era um homem cuja presença fazia-nos pensar que talvez não pertencesse a este mundo.

Acontece que seu João era espírita. Kardecista. Lera o “Evangelho Segundo o Espiritismo” tantas vezes que talvez o soubesse decor. Falava com intimidade de Ramatis. Possuía um livrinho que era muito e seu agrado cujo título era: “Trabalhos Post-mortem do Padre Zabeu”.

Espírita convicto seu João assumia-se como doutrinador. Achava o catolicismo uma espécie de engodo cuja força econômica atraia fiéis. Daí seu João estar sempre procurando entre os fiéis quem o ouvisse, buscando atraí-los para as sessões que realizava uma vez a cada semana.

Seu João atuava num lugarejo de população pequena. Eu o vejo em sua incessante caminhada pela rua de chão de terra, sempre pronto a falar de sua doutrina. Era dele a sentença “os tempos são chegados”. Sempre a repetia quando encerrava sua conversa com alguém. Funcionava como advertência sobre a necessidade de aceitar o espiritismo numa época em que o mundo parecia a ele convulso, sendo grande o desencontro entre pessoas.

Seu João foi-se desse mundo há muito tempo. Estivesse por aqui talvez sua advertência tivesse mais força tal o descaminho do mundo nos dias que correm.

Escrito por Ayrton Marcondes

20 dezembro, 2019 às 2:28 pm

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Vasto mundo

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Não imagino o que possa estar acontecendo agora em Singapura. Posso entrar no Google e talvez satisfazer a minha curiosidade. Tudo o que sei é que Singapura é uma cidade-estado com pouco mais de 5 milhões de habitantes. O centro gira em torno de Padang. Estamos ao sul da Malásia.

Mais: Cingapura agora se escreve com S. A grafia correta é Singapura.

Mas, por que Singapura? É que há pouco ouvi falar de Padang. Meu filho esteve lá. Mandou vídeos de ruas empobrecidas e mal traçadas. Mas, esses vídeos parecem não refletir a realidade total de Singapura que é o quarto maior centro comercial do mundo e onde existem muitos cassinos.

O mundo é vasto. Esteja onde estiver não custa pensar que amanhã, quando você tiver saído de lá, as coisas seguirão do mesmo jeito presenciado durante sua estadia no lugar. Se você esteve no ano passado em New York e passou pela Times Square saiba que neste exato momento milhares de pessoas estão lá, compondo a mesma circunstância antes presenciada por você.

A continuidade de um vasto mundo que não para demonstra muitas coisas, entre elas o fato de que você, afinal, não fará falta em nenhum lugar. Se você atravessou a Broadway quando esteve em NY, nem por isso outros milhares de pessoas deixarão de fazer o mesmo.

O fato de ser apenas um e meio a bilhões de seres humanos é inquietante. Traz à luz a verdade de sermos invisíveis. Tão invisíveis que nossa presença não é notada nas multidões que seguem a mesma rotina, diariamente, em todos os lugares do mundo. Você parou na esquina, esperou o sinal abrir, atravessou, isso ontem. Antes de você, depois de você, milhares de outros fizeram e farão o mesmo, independentemente de quem sejam.

Anos atrás seguia em direção a Saturno uma cápsula espacial enviada para recolher dados sobre aquele planeta. O escritor Carl Sagan teve a ideia de girar a cápsula, permitindo que ela fotografasse a Terra. Eis que, de tão longa distância, o nosso planeta nada mais surgiu que um pequeno ponto de luz em meio à vastidão do universo.

A pequenez do lugar onde vivemos e atuamos, esse pontinho em meio ao nada, convida-nos a refletir sobre o que somos e o papel que desempenhamos em nossa curta estadia no planeta.

Escrito por Ayrton Marcondes

17 dezembro, 2019 às 3:59 pm

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Temperamentos

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Acabo de falar com um amigo de temperamento forte. Daqueles que vão do zero ao infinito em menos de um segundo. Boa alma, mas explosivo. O cara parece carregar nos bolsos bananas de dinamite com os pavios já acesos.

Tratamos de assunto de interesse comum. Tudo com muito cuidado. Cada palavra bem escolhida e colocada no momento certo. Todo cuidado é necessário quando se trata da presença de explosivos prontos a serem detonados.

Um conhecido, já falecido, pertencia ao bloco dos temperamentais. O mundo funcionava bem quando dentro da lógica dele. Na impulsividade a força de seu caráter. Era ele uma força da natureza. Excelente coração, participativo, mas proprietário de uma calma a ser administrada com rédeas muito curtas. Atravessava a fronteira do bom senso num piscar de olhos.

Existem pessoas para tempos de paz. Outras se dão bem em épocas mais violentas. Vem-me à memória o personagem Rambo que não se adapta a tempos de paz. A guerra está no sangue dele. É lutando que Rambo se justifica e realiza. De forma alguma se ajusta ao cotidiano sem aventuras. Gosta da violência, atrai a violência. Parece estar sempre próximo ao lugar onde algo terrível está para acontecer.

Na vida real existem pessoas meio ao jeitão do Rambo. Conheço um sujeito de temperamento exasperado para quem qualquer diferença se figura motivo para confronto. É do tipo nervoso. Passa o tempo contendo-se para se adaptar à vida em sociedade. A discussão, quase sempre gratuita, é a mola que o move.

Não será demais lembrar aos mais afoitos que estes não são bons tempos para valentias. Marginais erram por aí, armados e sem dar qualquer valor à vida. Reagir a abordagens de bandidos é risco ao qual ninguém deve se sujeitar. Ontem um caminhoneiro reagiu a um assaltante. Em luta corporal acabou ferido e grato por manter a vida. Em outros casos, infelizmente, as consequências são bem piores, sendo frequentes os homicídios.

O que não significa que esse seja um mundo para os amorfos. Pessoas amorfas são cansativas e sem brilho. Em relação a temperamentos o que se pede é pelo menos um pouco de equilíbrio.

Escrito por Ayrton Marcondes

16 dezembro, 2019 às 1:12 pm

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Fim da linha

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Há quem compare com o embarque num trem em viagem sem volta. Na estação final a morte espera pelos passageiros. Na mitologia grega o barqueiro Caronte ocupava-se da travessia do rio Aqueronte que separa os mundos de vivos e mortos. Sob a vigilância do barqueiro as almas dos recém-mortos a deixar o mundo que conhecemos.

O enigma da morte permanece. De modo algum se pode saber se, de fato, existe algo para além do momento em que alguém fecha, definitivamente, os olhos. Morre-se e ponto final. Simplesmente.

Ao observar a face do morto em seu esquife choca-nos o fato de tudo cessar. Não se trata apenas da imobilidade do corpo sem vida. Aquele cérebro que ainda há pouco comandava pensamentos e atitudes silencia-se, irremediavelmente. É o deixar de ser do morto que nos agride. Ele que tão bem conhecíamos deixa de existir. Tudo o que fora e acreditara apagara-se de repente. Por isso o observamos com cuidado e temor. No morto que se nos apresenta figura-se a imagem de nosso próprio destino. Ele, o morto, sou eu amanhã.

O homem que sofre com doença pulmonar levanta-se e vai ao banheiro. Move-se com dificuldade, apoiam-no a mulher e a filha. Quando volta reclama de fraqueza, tontura, falta-lhe o ar. As mulheres o fazem sentar-se por um instante. Ele fala com elas, está lúcido. Pede que o devolvam à cama, sendo atendido. Já deitado, roga pelo oxigênio que é colocado em seu nariz. Mas, é chegado o momento do embarque. O último olhar grava na retina a imagem da mulher e da filha. A morte chega assim, mansa e implacável.

Os detalhes de como tudo aconteceu me foram passados pela família do falecido. Não pude ir ao velório. Ainda agora, passados dois dias do desenlace, pesa-me o estranhamento provocado pelo fim da vida de alguém a quem queria tanto.

A vida é assim. A morte, imprevisível.

Escrito por Ayrton Marcondes

11 dezembro, 2019 às 2:13 pm

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Streaming

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Na sala da minha casa existia um rádio vitrola no qual podia-se ouvir estações de rádio e discos de 78 rpm. As rádios mais ouvidas eram as do Rio, embora estivéssemos no interior de São Paulo. A Rádio nacional, a Mayrink Veiga e outras contavam com a preferência do povo. Naquela época o Rio era a capital do país e tudo, absolutamente tudo, vinha de lá. O carioca era um gênio que propagava sambas e piadas durante todo o ano. Cantavam-se marchas carnavalescas, ría-se de piadas interpretadas por Zé Trindade e tantos outros.

Certo dia um de meus irmãos, mais velho que eu, apareceu em casa com um toca-discos. O aparelhinho, feioso que nem ele só, era capaz de um milagre: rodava não só discos de 78 rpm como, também, de 33 rpm. Ou seja, em um só disco, mais de uma música. Olhamos para o toca-discos como se presenciássemos a chegada de uma engenhoca vinda do espaço. Estávamos na primeira metade dos anos 50 do século passado e, muito mais que hoje em dia, o Brasil era um país indefinido em termos de desenvolvimento.

Mas, a tecnologia sempre correu adiante de outras cosias. De modo que não demorou tanto para que chegássemos aos LPs e ao som estéreo. E os LPs deram lugar aos DVDs, mais práticos e não dependentes das agulhas de toca-discos as quais se desgastavam com alguma facilidade.

A discussão sobre a qualidade do som gerado por LPs e DVDs existiu desde o começo. Quem gosta de LPs garante ser a fidelidade e pureza gerada pelas bolachas muito melhor que a vinda dos DVDs. Isso explica o fato de, atualmente, tornar a existir procura de LPs. Novas marcas de toca-discos, mais aprimorados, estão à venda por preços nem sempre acessíveis.

Ainda tenho LPs comprados na época em que os reproduzia no meu toca-discos da marca Garrad. Mas, com a emergência dos DVDs passei a adquiri-los de modo que sou possuidor de razoável número deles. Note-se que na era dos DVDs títulos anteriormente gravados em LPS foram remasterizados no novo formato. Daí que passei a ter o alguns discos nos dois formatos.

Bem. Mas o diabo é que há muito tempo não ouço meus DVDs. Imperceptivelmente, acabei me rendendo às facilidades do streaming. Não é que todas aquelas músicas que fazem parte das minhas preferências podem ser ouvidas pagando-se mensalidades do Spotify ou do Deezer? Isso sem o trabalho de escolher o disco, colocar no DVD player, etc. E não é só isso. Eis que se decido andar para manter a boa saúde posso ouvir o que quiser num fone de ouvido que recebe o sinal, via bluetooth, diretamente de meu celular.

Não imagino onde isso poderá chegar. Ainda me lembro bem de meu irmão com aquele toca-discos que acháramos incrível por rodar um disco que tinha mais de uma música.

Por outro lado, ultimamente, tenho olhado para os DVDs de minha casa com sentimento de desconsolo. Parece-me trair esses bons companheiros que, durante anos a fio, alegraram a minha vida. De repente, relegados ao esquecimento, ei-los em seus lugares, quietos, mas tendo dentro de si os sons maravilhosos que por tanto tempo me encantaram.

Mas, afinal, tudo passa nessa vida, não é mesmo?

Cartas de amor

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Não via o Laerte há alguns anos. Bom sujeito. Trabalhamos na mesma empresa. Certa ocasião eis que apareceu o Laerte completamente transtornado. Não demorou a contar aos colegas de trabalho que a mulher resolvera deixá-lo. O impacto da notícia foi terrível para ele. O homem sempre alegre deixara lugar para um sujeito retraído, triste de uma tristeza até pegajosa.

O problema? Bem, o Laerte era louco pela mulher. Amava-a acima de todas as coisas. Uma deusa. Além do que, conforme suspeitara, havia na jogada um outro homem com quem ela confessara já ter saído. A mulher fora muito clara: apaixonara-se pelo outro e com ele, Laerte, nada mais existia. Os filhos? Ora, ela cuidaria, naturalmente recebendo a pensão.

A via crucis do Laerte não só foi longa como cheia de atos incomuns. Houve o dia em que o Laerte nos disse que aceitaria a mulher de volta, isso sem impor qualquer condição. Aceitaria até mesmo se ela continuasse saindo com o amante. Isso nos causou muita estranheza. Houve quem dissesse, baixa voz, que aquilo não seria atitude de macho. Do Laerte ouviu-se que tinha mesmo loucura pela mulher.

Temíamos que o sofrimento pudesse levar o Laerte a cometer alguma besteira. A hipótese de suicídio de modo algum poderia ser descartada. Nessa ocasião um de nós decidiu avisar pessoa da família do Laerte para que redobrassem vigilância sobre ele.

Do grande sofrimento desse homem abandonado restaram lembranças das longas cartas de amor que ele enviava à mulher, sempre se declarando um grande apaixonado. Consta que ela jamais se deu ao trabalho de respondê-las. Mas, ele continuou a escrevê-las até que um dia, mais conformado, seguiu adiante na vida.

Paramos para um café. O Laerte me pareceu bem. A certa altura não resisti a curiosidade. Haviam se passado mais de quinze anos desde o episódio da separação dele e não resisti a tentação de perguntar como teriam ficado as coisas. Ele sorriu. Contou-me que ela ficara com o tal sujeito por um bom tempo, depois substituíra-o por outro. Aliás, mudara de parceiros com alguma frequência. Sabia disso pelo contato com os filhos. Nunca mais a vira.

E as cartas - perguntei.

Tenho cópias delas guardadas - respondeu.

Perguntei ao Laerte se hoje em dia se comportaria do mesmo jeito de antes. Ele me olhou com o semblante fechado e respondeu: faria tudo, tudinho. Eu a amava.

E as cartas, escreveria?

Ah, escreveria as mesmas. Podem ser ridículas, mas, como disse o poeta, “cartas de amor são ridículas, mas ridículo mesmo é quem não escreveu cartas de amor”.

A Índia na Lua

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Enquanto prosseguem no planeta as irremediáveis desavenças entre os terráqueos o inescrutável espaço ao redor a tudo parece assistir em silêncio. Caso fosse possível a existência de seres inteligentes a nos observar o que achariam eles dessa marafunda na qual, a cada dia, os homens menos se entendem?

Aqui na Terra segue-se a obviedade de olhar-se para o próprio umbigo. Existimos só nós e ponto final. A imensidão do universo e o fato do planeta em que vivemos ser um quase nada dentro dele não nos afeta. Radicalismos, polarizações, guerras, miséria, fome, exclusões, conflitos doutrinários e outras tantas coisas acontecem diariamente sob a luz do Sol. Nada nos impulsiona a ponderar sobre a pequenez de nossa condição tendo em perspectiva ao espaço que nos cerca.

Mas, o homem é por natureza um explorador a quem fronteiras incomodam e, por isso, devem ser ultrapassadas. Existe um universo a ser explorado, se possível visitado. O corpo celeste mais próximo é o lindo satélite que embeleza o céu nas noites sem nuvens. Já pisamos lá e a saga da exploração da Lua continua a atrair governos que para lá enviam sondas. Estados Unidos, Rússia e China já pousaram com sucesso sondas na Lua. A Índia tentou fazer o mesmo, mas fracassou porque a sonda enviada acidentou-se ao pousar no satélite.

Hoje publicam-se fotos, divulgadas pela Nasa, do local do acidente da sonda indiana Vikram. As fotos foram obtidas por um satélite que orbita ao redor da Lua.

Os restos da sonda indiana localizados pela Nasa conduzem nosso olhar para fora do planeta e propiciam algum distanciamento da realidade que nos cerca. De repente torna-se possível lembrar da precariedade de nossa condição justamente num momento em que crescem os alertas sobre os perigos da grande destruição ambiental que ameaça a continuidade da vida. Advertências sobre o fato de ter-se chegado a um “ponto sem retorno” em relação à questão climática infelizmente têm sido ignoradas por governantes.

Observar os restos de uma sonda no ambiente sem vida da Lua causa-nos calafrios. Pode ser que num futuro distante a Terra também venha as ser um planeta sem vida, fotografado por seres de cuja existência desconfiamos.

Notícias

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Boas notícias nem sempre chamam a atenção. É como se coisas acertadas fossem nada mais que obrigação no atendimento a todos. Mas, nesses dias em que a incerteza reina sobre as cabeças até que uma boa nova deveria impactar mais as pessoas.

O oposto acontece com más notícias. Todo mundo sabe disso, mas o fato é que somos atraídos pelo que acontece e tem consequências tantas vezes dramáticas. Veja-se o caso do baile - Pancadão - realizado sábado na favela Heliópolis. A polícia perseguia dois bandidos que entraram na favela. Perseguidos, misturaram-se ao pessoal do baile. Seguiram-se cenas terríveis, muitas delas gravadas e divulgadas na mídia. O saldo? Nove pessoas mortas. Foram pisoteadas. Desde então não se fala em outra coisa. A tragédia de Heliópolis encabeça o noticiário.

Gugu morreu. O apresentador faleceu em consequência de acidente doméstico. Caiu de altura de quatro metros, bateu a cabeça, hemorragia e morte. A notícia se espalhou como bomba. Repetia-se: Gugu morreu. Fãs. Em desespero, aguardaram o traslado do corpo desde os EUA. O velório aconteceu na Assembleia Legislativa. Nos canais de TV cenas da carreira do apresentador. No dia do enterro cobertura televisiva. A morte do querido apresentador comoveu a opinião.

Más notícias. Declarações do Ministro da Fazenda contribuem para a disparada do dólar. A peste suína na China resulta na importação de muita carne do Brasil. Em consequência sobe o preço da carne nos açougues e mercados.

Poderia ficar citando notícias desagradáveis. Chega. Entretanto, no momento, não me ocorre a lembrança de nenhuma boa notícia relativa aos últimos dias. Serei eu ou o mundo está cada vez mais às avessas?

De trem ao Rio

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O trem de segunda classe passava à meia-noite na estação. Não sei em que hora saia de São Paulo, mas chegava ao Rio no começo da manhã seguinte. O problema para os passageiros que embarcavam no caminho era a parada na região de Cruzeiro. O trem de segunda classe saia dos trilhos principais, deixando caminho aberto para o luxuoso Trem de Prata (Trem de Aço) que vinha do Rio. A espera oscilava entre duas e três horas. Em plena madrugada o passageiro armava-se de paciência para permanecer no duro assento de madeira, aguardando.

Aliás, o segunda classe era todo ele desconforto. O preço inferior da passagem servia para justificar a falta de qualquer arremedo de coisas relacionadas ao bem-estar. As pessoas sentavam-se em seus lugares, preparadas para a noite de sofrimento. Aos mais velhos reservava-se a certeza de dores nas costas. Aos mais jovens talvez incomodasse um torcicolo.

Fiz essas viagens algumas vezes. De trem para o Rio, fosse o que fosse, era chique. Mas, o sofrimento da noite insone era compensado no momento em que o trem chegava ao seu destino, a Estação de D. Pedro II. Você estava no Rio, cidade realmente maravilhosa na qual a violência nem de longe era comparável à dos dias atuais.

Não longe da estação estava a Cinelândia que não sei se hoje mantém sinais do que era nos anos sessenta do século passado. Ali se localizavam teatros, bares, boates, restaurantes etc. A Cinelândia fervia à noite com suas luzes e encantos. A mim não importava muito o fato de mal ter no bolso o dinheiro para a passagem de volta. Era “estar” ali. Circular pelo grande agito daquela cidade maravilhosa da qual, habitualmente, recebíamos notícias pelas ondas de rádio. O Rio do carnaval, da folia que nunca terminava. O Rio do samba, das mulatas, das vedetes, da malandragem, da política, do Cristo Redentor, do Pão de Açúcar, da Rádio nacional, do Correio da Manhã etc. O Rio, pô. O Rio mágico tal como se apresentava aos olhos de um adolescente vindo do interior.

As minhas aventuras nas plagas cariocas duravam no máximo três dias. Duas noites mal dormidas nos bancos da Estação D. Pedro II eram demais mesmo para um rapazote. Então eis que o santo trem de segunda classe me devolveria ao interior de São Paulo, onde vivia. Num desses retornos passei mais de 24 horas dentro do trem, parado na serra. Um acidente resultara no bloqueio da linha. Mas, no fundo, tudo era festa.

Ao longo dos anos retornei algumas vezes ao Rio. Mas, a cidade sempre linda, pareceu-me ter perdido pelo menos parte do antigo encanto. Hoje em dia o Trem de Aço e o de segunda classe não mais correm nos trilhos entre São Paulo e o Rio, o que é uma pena. Havia muito de aventura naquelas travessias entre os dois estados que se ligavam por locomotivas e vagões.

A segunda instância

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O Gaiola tinha dado golpe grande num clube de futebol de São Paulo do qual fora secretário. Eu o conheci anos mais tarde, depois que saíra da prisão. Era um rábula de talento. Militava num escritório, na capital, ocupando-se da defesa de todas as causas. O proprietário do escritório exercia várias atividades de modo que deixava ao Gaiola os rendosos casos que defendia.

A primeira vez que ouvi falar sobre o Gaiola foi através de meu pai que o fora visitar no presídio. Achara-o magro e um tanto abatido, embora melhor de saúde por estar afastado do álcool. Isso porque o Gaiola fumava bastante e tomava uns bons tragos.

Coisa impactante para quem o conhecia foi o momento da prisão do Gaiola. Ele foi surpreendido pela polícia em plena Av. São João, na capital. Repórteres fotográficos documentaram o momento: a foto do Gaiola saiu na primeira página do jornal “Última Hora”. Na foto ele demonstrava surpresa, olhos esbugalhados.

Não sei quantos anos o Gaiola cumpriu. Aliás, o apelido “Gaiola” viera do fato de ser preso. Mas, me lembrei do Gaiola agora, quando se divulga que o STF votou contra a prisão em segunda instância. Daqui para frente só irão para a prisão pessoas condenadas, mas só após se esgotarem todos os recursos possíveis de defesa. Hoje o Gaiola contaria com mais tempo sem ser preso.

O Gaiola pertenceu a um tempo no qual a violência existia, mas nem de longe seria comparável ao que hoje acontece. Não há dia em que não se recebam notícias alarmantes sobre episódios escabrosos. A vida deixou de valer qualquer coisa. Mata-se por matar, impunemente. Ao cidadão comum cabe cuidar-se e contar com a sorte.

É nesse contexto que devedores da lei passam a contar maiores possibilidades - e tempo - de não serem recolhidos à prisão. Verdade que a Constituição de 88, atualmente vigente, tem texto favorável à decisão tomada pelo STF. Mas, dá medo. A impunidade gera medo. Os crimes perpetrados geram horror.

Agora é esperar. Afirma-se que, a partir de agora, muita gente que está nas prisões será devolvida às ruas, gozando da prerrogativa garantida pela decisão do STF.

Os próximos meses darão a medida exata das consequências - ou não – da difícil decisão tomada pelas excelências do STF.