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Aventura em Minas

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Excursões de estudantes são festivas. Muitas delas envolvem formandos em comemoração ao encerramento de ciclos de estudos.

O mundo mudou muito nos últimos cinquenta anos. De modo que referências a acontecimentos de passado distante poderiam soar estranhas aos jovens de agora. Mas, talvez baste lembrar a eles que naqueles tempos não existiam celulares e internet, aliás ninguém ao menos sonhava com isso. De modo que, uma vez dentro do ônibus e na estrada, ficava-se incomunicável.

Termináramos a quarta série do ginásio e recebemos o presente de uma excursão a Minas Gerais. A viagem se realizaria num ônibus, se não me engano cedido pelo governo do estado. Assim, partimos, felizes, colegas, amigos inseparáveis. A Fernão Dias, rodovia federal que liga Belo Horizonte a São Paulo, não era duplicada. Daí a lentidão de uma viagem quase sempre interrompida pelo grande trânsito de pesados caminhões. Mas, eis que chegamos a Belo Horizonte num fim de tarde e fomos alojados num grande dormitório de uma escola.

Iniciava-se produtivo período de grande valor cultural para o qual não estávamos preparados. Meninos do interior, certamente impressionou-nos a capital mineira com seus prédios e traçado de ruas sempre retas. Lembro-me bem do palácio do governo e da praça defronte a ele. Perto dali uma sorveteria na qual compravam-se deliciosos gelados.

Entretanto, a maior conquista que teríamos aconteceria nas vistas a cidades próximas como Ouro Preto, Congonhas do Campo e Mariana. A Congonhas que conhecemos era, naquela época, despojada dos cuidados hoje adotados em relação às obras do Aleijadinho. No Santuário de Bom Jesus de Matosinhos as capelas eram abertas para visitação. Estive, por exemplo, ao lado das obras do grande artista do barroco. Aliás, essa primeira imersão do barroco teria, pelo menos para mim, profundo impacto: não seriam poucas as vezes em que, ao longo do tempo, eu me deixaria perder naquela região, mormente na sempre querida Ouro Preto.

De Congonhas também trago a curiosidade e ter visto em ação o famoso médium Zé Arigó. Circulávamos pelas ruas da cidade quando, por acaso, demos com pequena multidão, postada diante de uma janela pela qual podia-se ver o médium em plena atividade.

Visitei as igrejas de Ouro Preto, guardando para sempre o encanto da Igreja de São Francisco. No Museu da Inconfidência falaram-nos sobre a Inconfidência Mineira e seus participantes. Em Mariana ouvi recital no qual destacava-se a poesia de Alphonsus de Guimarães - o solitário de Mariana.

E poderia prosseguir falando de lugares nos quais eu e meus amigos nos divertimos tanto e nos instruímos. Mas, o tempo passou. Daquele grupo muita gente segue por aí, uns tantos outros já desertaram da vida. Permanecem as imagens, as faces jovens que retenho na memória, muitas delas que não mais revi.

Essas lembranças voltaram-me hoje ao presenciar a saída de uma excursão escolar. Lá iam aqueles jovens, cheios de alegria e energia. Seguiam num ônibus moderno, cada um com o celular que os torna aptos a comunicar-se com a gente de casa.

Então, voltou-me meu retorno à casa de meus pais, depois de dez dias em Minas. Lembro-me bem do meu quarto, das incontáveis horas de sono reparador após a longa viagem de volta pela Fernão Dias. Inesquecível a imagem de minha mãe, acordando-me e a perguntar sobre o que, afinal, eu vira lá em Minas.

Eu vira.

Avanço das águas

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Mares são lindos, mas perigosos. Não há fim de semana em que não recebamos notícias sobre afogamentos. A história se repete. Há sempre alguém que não sabe nadar surpreendido por uma onda que o arrasta para longe. Turistas de um dia descem a serra para gozar as delícias da praia. Muitos não voltam para casa.

Dias atrás um caso comoveu a opinião. Recém-casados de véspera, o rapaz e a moça foram tragados pelas águas marinhas. Afogaram-se os dois em seu primeiro dia de lua-de-mel. O desespero das famílias inconformadas foi o corolário da tragédia anunciada. Se o mar já é perigoso para nadadores hábeis que dizer daqueles que se arriscam sem saber nadar?

O mar tem fome de terra. É preciso conter suas incursões, preservar a terra. Mas que fazer quando a elevação do nível dos mares acontece, quando as razões desse fato são desprezadas? O efeito estufa?

Viver à beira-mar tem seus encantos. Há quem aceite a presença do grande vizinho sem nada interpor. Quanto a mim sempre me acossa a possibilidade de, certo dia, erguerem-se ondas gigantescas que invadam a cidade. Um tsunami. Como fugir dele quando estamos a poucos metros da praia?

Mas, nãos se trata disso. Noticia-se que até 2100 o mar invadirá regiões costeiras em todo o mundo. Estima-se que 300 milhões de pessoas serão atingidas em todo o mundo. Nossa região, a da Baixada Santista, não ficará de fora do evento. O mapa no qual se inserem dados com invasões previstas mostra grande alterações na área de Cubatão. O mar vai engolir muita terra por aqui.

Grande parte das catástrofes é previsível e contra muitas delas pouco há a se fazer. Os furacões que assolam o Caribe, fazendo vítimas e destruindo cidades, não podem ser contidos. O mesmo não se pode dizer em relação ao aumento do nível dos mares. Políticas que favoreçam a redução do efeito estufa concorrerão para evitar tragédias anunciadas.

O sino da igreja

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Do portão pende um fio, barbante grosso. Puxo o fio e abro. Depois a porta da casa, a porta do quarto. Bato antes de entrar. Sei que ele está lá, já não sai da cama exceto para ir ao banheiro.

A mulher não está em casa, teria ido à padaria. São quase dez da manhã. Entro no quarto e ele se mostra feliz ao me ver. Insisto para que não se levante, mas eis que o corpo magro se ergue, apoiando-se num dos braços. Sento-me ao lado dele e continuamos a conversa que já dura setenta anos.

Impressiona a magreza dele. Mas, a voz, agora não tão forte e mais profunda, é a mesma. Os cabelos, crescidos, compõem um rosto que, se nunca foi belo, figura-se, ainda agora, atraente.

Ele não reclama. Aceita seus 83 anos com dignidade. Parece não levar a doença tão a sério. Não entende de onde terá surgido o problema do pulmão que dificulta a respiração. Mas, se a mãe e a irmã, já mortas, também tiveram o mesmo problema… Coisa de hereditariedade.

Falamos um pouco sobre tudo. Ele me explica que nesses dias suspendeu os remédios para dar chance de recuperação ao estômago. Tem uns comprimidos que causam tanta gastura…

Depois nos lembramos de velhos conhecidos que desertaram desse mundo. O Manoel morreu cedo, também bebia muito. Era ótimo marceneiro, a pinga acabou com ele. Falo sobre o Jair que também está morto. Ele me corrige: não, o Jair está vivo! Ele está como eu, não sai mais à rua.

A casa em que estamos fica ao lado de uma praça em cujo centro está a igreja matriz. Do quarto podem-se ouvir as badaladas do sino da igreja. De repente ecoam as badaladas das dez horas. Pergunto a ele se o barulho do sino não o incomoda. Ele me olha e sorri, dizendo estar justamente à espera do “seu” sino.

Acontece toda vez que alguém morre. O falecido passa pela igreja antes de ser levado ao cemitério. Durante o féretro o sacristão sobe à torre e toca o sino, badaladas que se repetem, vagarosas, espaçadas, mas que todos sabem: é o sino da morte.

O homem que está a meu lado sabe que já não resta a ele nada mais que senão esperar. Não mais se levantará para fazer o que quer que seja. Se sair à rua será amparado pelo filho que o levará ao médico. Nada mais.

Ele aguarda o sino. As badaladas que soarão quando seu esquife sair da igreja em direção ao cemitério. O sino que toca nas mortes. As suas badaladas finais que ele não ouvirá.

Um dia antes de morrer

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A pergunta está na internet: o que você faria 24 horas antes de morrer, caso fosse avisado da iminência da morte?

Entrevistados respondem. Alguns simplesmente dormiriam. Outros comeriam o que tivessem vontade. Uma moça passaria o tempo com o namorado. No fundo a notícia da iminência da morte nada mais seria que desconcertante. Que pensar ao saber que amanhã não se estará aqui, que tudo, absolutamente tudo, terá cessado e que de nós pálidas memórias restarão naqueles que nos conheceram?

Sabe-se que a morte é a única certeza absoluta que temos em vida. Um dia cada um de nós morrerá, é a lei da vida. A morte nos ronda. O homem da foice nos espera pacientemente. É certo que não fugiremos dele. Mas, aplicamo-nos em ignorá-lo. Para que viver sob a perspectiva do fim para que nada fizesse sentido? Afinal, se vou mesmo morrer, para que tudo isso?

Assim, vai-se adiando a viagem no barco de Caronte. Mas chegará o dia. Então a pergunta: você gostaria de ser avisado 24 horas antes do desfecho? Ter algumas horas para se despedir de quem ama? Tempo para deixar as coisas em ordem? Tratar do enterro?

Não creio. Suponho que ninguém quisesse saber com antecedência que em poucas horas estaria num acidente no qual perderia a vida. Ou que morreria por outra causa qualquer. Há o caso dos suicidas… É a dúvida que nos mantém em pé. A confiança que temos justamente na vida. Sabemos que ela é finita, mas não pensamos muito nisso. Não há como saborear a vida se a plasmamos com a certeza da morte.

Há um poema no qual o poeta nos fala sobre o homem que vai morrer. Ele acorda de manhã, faz a barba, segue sua rotina, mas não sabe que aquele dia será o seu último dia. Ele morrerá. Nãos sabe disso. Não precisa saber. Melhor que não saiba.

Houve tempo em que passei a pensar na minha morte. Como e quando aconteceria? Haveria algo depois? Sobrevivência da alma? Céu e inferno? Julgamento e sentença pelos erros e acertos na vida? Mas, deixei de lado essas ponderações, de resto inúteis. O importante é seguir adiante. Vivendo. Até receber a visita inoportuna do homem da foice a qual, assim espero, aconteça sem dor.

Placar elástico

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Não se fala em outra coisa que não a monumental exibição do Flamengo, ontem no Maracanã. Meteu 5 gols no Grêmio numa partida semifinal da Copa Libertadores. Passeio em campo, alguns lances de virtuosismo. Jogou-se em nível ao qual já nos desabituamos nestas plagas. Nos últimos tempos temos olhado, diga-se, com ponta de inveja, os grandes jogos realizados no continente europeu. Nosso futebol deixou de ser a maravilha cujo passado é pontuado por glórias. O futebol admirado e imitado em todo o mundo sucumbiu a desorganização, à evasão de craques para o exterior, à formação deficiente de técnicos e dirigentes, entre outros fatores.

Aí surge o Flamengo sob o comando de um técnico a quem chamam de “Mister”, contando com um plantel de fazer inveja. Goleia o Grêmio. Levanta-se a opinião em elogios e sugestões para que esse futebol seja mostrado ao mundo. Na Argentina os jornais, prevendo o jogo de decisão da Libertadores contra o River Plate, chegam a dizer sobre o Flamengo: “mete medo”.

Mas, a grande vitória do Flamengo pode ser vista do ponto de vista de uma espécie de ressureição. Nossa morte no futebol mundial foi decretada naquela fatídica derrota da seleção nacional diante da Alemanha, em pleno Mineirão. Aquele terrível 7X1 teve o condão de sepultar o passado de glórias de nosso futebol e acordar-nos para nova realidade. Não éramos mais quem pensávamos. Deixávamos de ser o que julgávamos. Aquelas caras de branco, os alemães que considerávamos de corpo duro para o futebol, humilharam-nos numa das raras coisas que despertam ufanismo em relação ao país.

Gerações anteriores ao 7X1 também sofreram. Até hoje muita gente traz presa na goela, sem engolir, a derrota de 1950 diante o Uruguai. Nomes como o de Obdulio Varela e Ghiggia, craques uruguaios naquele grande feito, povoam memórias que não conseguem apagá-los de suas reminiscências. Barbosa, goleiro da seleção nacional que tomou o segundo gol do Uruguai, morreu em Praia Grande, reclamando da responsabilidade a ele atribuída pela derrota.

O Flamengo emerge tendo atrás de si um contexto de perda de credibilidade do nosso futebol. Oxalá prossiga sua sequência de conquistas. Oxalá se renove o nosso futebol. Paixão é o que não nos falta, vejam-se os expressivos públicos que comparecem aos estádios ainda que para assistir a jogos de não grande qualidade.

Que venha o futuro.

O ódio

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Em tempos de ódio explícito pergunta-se como vamos sair dessa.

Vivendo no Brasil contata-se que nossa história é pontuada por períodos nos quais a força e o ódio prevaleceram. A Revolução Federalista, acontecida no Sul durante os primeiros anos republicanos, notabilizou-se por atos de extrema violência. Inesquecível a morte do almirante Saldanha da Gama em Campo Osório. O almirante que frequentara os mais referendados salões do mundo encontrara a morte numa batalha em terra. Um marinheiro a cavalo, lutando nos Pampas, como se disse. Entretanto, aos adversários não bastara a morte do oponente. Seu cadáver foi mutilado e atirado de um barranco.

Nos dias atuais presenciam-se atos de grande violência e malignidade. Mata-se pelo prazer de matar. Ao meliante que assalta pouco importa a vida daquele que aborda. É como se a consciência tivesse deixado de existir, a fraternidade jamais houvera e o desrespeito pelo ser humano inexistisse. Mata-se. Pronto.

Mas o que mais chama a atenção é o recrudescimento do ódio que se impõe nas relações humanas. A paciência deixa de existir. Os erros, mesmo pequenos, tornam-se motivo para reações violentas. O denuncismo se agiganta. Trata-se de um eu contra o mundo que se alastra.

Surpreende que reações desproporcionais às causas que as motivaram não estejam restritas a camadas populacionais que teriam mais motivos para se insurgir em busca de soluções para suas dificuldades. Frequenta as relações humanas, em todas as classes, o ódio latente talvez alimentado pelo radicalismo político que no momento divide o país. A todo custo será preciso perseguir e eliminar homens e ideias que não casem com as dos grupos dominantes.

É de se pensar sobre o legado que será deixado às próximas gerações, nascidas em período tão convulso. Quem e como serão os homens de um futuro próximo? Um olhar sobre as crianças, pensando no futuro, talvez contribuísse para o resgate da urbanidade perdida entre os homens.

Cenas de filmes

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Inesquecíveis Burt Lancaster e Deborah Kerr beijando-se, deitados na areia da praia. O cinema guarda momentos mágicos. Pode acontecer que mesmo de num filme com altos e baixos de repente brotem imagens que nos encham de beleza e emoção. Quem assistiu “Rocketman” o recente filme sobre a vida do cantor Elton John há de se lembrar da cena em que ele, pela primeira vez, canta “Your Song”. Elton está ao piano e tem, à sua frente, a letra que deve musicar, escrita pelo seu parceiro Bernie Taupin. O momento torna-se sublime e cresce na medida em que o homem ao piano entona os primeiros acordes da nova música. Dele passa a emanar a força que só o encanto pode alcançar. Taupin, no banheiro, ouve, e desce pela escada para aproximar-se do cantor. A mãe e a avó de Elton param o que estão a fazer, atraídas pela magnitude do momento. Ao espectador resta fluir do grande momento. E dizer que o filme não chega a ser realmente bom.

Mas, os dois exemplos acima citados talvez nem mesmo gozem de muita concordância. Existem inúmeras sugestões de cenas pertencentes a grandes clássicos do cinema. Que tal o assassinato no chuveiro do filme “Psicose”? E o voo pela lua de Eliot com o pequeno ET? E quanto à cena das gêmeas no fundo do corredor em “O Iluminado”?

Entretanto, há quem não se curve à magia do cinema. Há quem simplesmente não goste de cinema. Dias atrás terminei numa festa de aniversário na qual uma mulher discorreu sobre a perda de tempo de assistir a projeções cinematográficas. Tinha ela o orgulho de não ter contribuído com um só centavo para o crescimento dessa indústria.

Os gêneros cinematográficos coabitam as telas de cinema em todo o mundo. Há quem prefira dramas, outros filmes de ação, muita gente as gélidas cenas de terror e assim por diante. Aos cinéfilos tudo é cinema. Entretanto, de dias para cá dois importantes cineastas vieram a público para dizer que os filmes da Marvel não são verdadeiro cinema. Faltaria a eles a essência de transmitir ao público algum tipo de mensagem etc. Martin Scorcese foi o primeiro a falar e Francis Ford Coppola referendou suas palavras. Mas, os filmes da Marvel atraem multidões às salas de cinema e fazem a delícia daqueles que se deixam envolver pelas ações dos super-heróis.

Sou fã de cinema desde menino. Cresci dentro de sessões da tarde assistindo exibições de filmes em preto-e-branco. Deliciava-me com o seriado de Flash Gordon sempre exibido após a projeção do filme do dia. Presenciei ao longo da minha vida cenas memoráveis, realmente inesquecíveis. Posso dizer que o cinema faz parte daquilo que me foi dado a conhecer sobre os homens e o mundo. Se fechar os olhos agora poderei rever Peter Lorre sendo julgado pelos marginais naquela tremenda cena de “M o vampiro de Dulssedorf”. E isso, pelo menos para mim, não é pouco.



O ipê-roxo

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Minha tia temia muito o câncer. Consequência da vivência dela com o câncer que levara sua mãe, minha avó. A avó tivera um câncer de mama. Eram os anos setenta do século passado e a terapia contra esse tipo de tumor nem de longe se aproximava de recursos hoje disponíveis. Operada, submeteu-se à radioterapia num hospital da capital. A aplicação resultou em grandes queimaduras em seu tórax. A partir daí muito sofrimento. Lembro-me de minha avó sempre gemendo. Triste fim de vida para uma descendente de italianos que nascera juntamente com o advento da República no país, em 1899.

A geração anterior à de minha avó chegara ao país por iniciativa de D. Pedro II. O imperador trouxe imigrantes italianos para alojá-los na Serra da Mantiqueira, a maioria na região de São Bento do Sapucaí. A ideia do imperador seria a de estabelecer na região cultura de frutos conforme acontecia na Itália. O clima frio da montanha seria favorável a esse tipo de atividade agrícola. Vieram, assim, os Chiaradia, os Reale e tantos outros. Minha avó pertencia ao clã Chiaradia.

Depois do falecimento de minha avó minha tia tornou-se atenta a notícias sobre o câncer. Lembro-me de que ainda nos anos setenta circulou a notícia de que da árvore ipê-roxo se extraia uma espécie de suco que seria valioso na terapia cancerígena. Não sei se me falha a memória, mas, naquela ocasião, passaram-se a comercializar, informalmente, garrafinhas cujo conteúdo seria o extrato do ipê. Minha tia lamentou que sua mãe não tivesse alcançado essa possibilidade de cura de seu câncer.

É sabido que, de tempos em tempos, foram surgindo hipóteses, quase nunca apoiadas no meio médico, para tratamento de diversos tipos de câncer. De lá para cá tem-se verificado grande evolução nos meios cirúrgico, quimioterápico e radioterápico. Terapias paralelas com indução de combate direto a células cancerosas têm sido testadas, publicando-se alguns bons resultados. Entretanto, o câncer segue como desafio. Diagnósticos precoces da doença contribuem para que se logre a cura de processos que se complicariam com a passagem do tempo.

Mas, lembrei-me de minha tia por causa do ipê-roxo. Eis que hoje se divulga um estudo que foi finalista no prêmio Octavio Frias de Oliveira, na categoria inovação tecnológica em oncologia. Trata-se de projeto em que atuam, juntas as Universidades Federais do Ceará e de Minas Gerais. Um grupo de professores isolou do ipê-roxo substância análoga à beta-lapachona que é testada em droga para o tratamento do câncer de próstata. A patente já foi registrada nos EUA com ajuda da Universidade do Texas.

Recupera assim o ipê-roxo, árvore comum na Mata Atlântica, sua credibilidade na contribuição para o tratamento do câncer. Mas, minha tia não receberá a boa-nova. Ela faleceu em consequência de acidente automobilístico. Na ocasião seu corpo foi atirado pela janela do veículo em que estava tal a força do impacto durante a colisão. Operada em seguida, não resistiu, falecendo poucos dias depois, ainda no hospital.

Juízes

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O fato é: não sabemos em quem acreditar. Tamanha disparidade de opiniões deixa confusos pobres mortais não conhecedores das letras da lei. Quando o presidente do STF determina a suspenção de determinado tipo de investigação surge a pergunta do cidadão comum: mas, isso é correto? Quando o STF se põe a discutir a prisão em segunda instância o cidadão comum, acossado pela insegurança, se pergunta se isso não tornará o país mais perigoso. Que dizer de um procurador geral da República que, após deixar o cargo, publica livro no qual faz confissões estarrecedoras?

Isso sem falar na Lava-jato. Fomos convencidos da grande obra de procuradores que identificaram monstruosos desvios de dinheiro naquele que se tornou o maior caso de corrupção da história do país. Agora surgem comentários nos quais os mesmos procuradores são acusados de usos indevidos da lei, prejudicando envolvidos nas maracutaias.

Enfim, em quem devemos acreditar para colocar a cabeça no travesseiro e dormir sossegados porque existem pessoas cuidando da manutenção da lei no país?

Juízes. Aceite-se que são pessoas como as outras, expostas a erros e acertos. Há bons e maus juízes. Há aqueles que são acusados de corrupção. Mas, no geral, espera-se que ao optar por carreira tão importante o homem que se torna juiz empreste dignidade ao cargo. Isso aprendi com um tio que foi juiz em cidades do interior de São Paulo.

Eu era estudante, cursando o que hoje se chama Ensino Médio, quando fui morar em casa do meu tio. Pude acompanhá-lo no exercício de sua profissão, observá-lo nas muitas horas em que se debruçava sobre processos, analisando-os cuidadosamente. Certa ocasião eis que veio ele ao meu quarto, em meio à madrugada. Precisava conversar com alguém. Importunava-o sentença que deveria proferir, acossava-o a dúvida. Naquela madrugada expôs-me o caso, perguntando-me sobre a minha opinião. Sabia ele que, em verdade, eu não teria nada a acrescentar. Falava o juiz consigo mesmo, aclarando suas ideias. Não imagino qual terá sido a conclusão do caso. Mas, tenho certeza de que o juiz terá agido com a máxima correção.

Meu tio orgulhava-se de suas sentenças, muitas deles publicadas como modelo na Revista dos Tribunais. Quando surgia uma delas, publicada na Revista, ele me chamava e dizia: seu tio não tão pouco assim.

Talvez por ter convivido com um juiz tão sério eu tenha formado opinião bastante respeitosa em relação à categoria que decide sobre a vida de tanta gente. Por esse mesmo respeito tenho grande dificuldade em entender - e aceitar - tantas marchas e contramarchas de opiniões dadas por pessoas cuja função á fazer valer a lei e garantir o bem-estar comum.

Mas, esses são outros tempos.

Amigos

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Amigo é coisa pra se guardar, diz a letra da música. Há quem faça amigos com facilidade. Também há os que parecem espantar pessoas. Enfim…

De repente o telefone toca e surge uma voz que não ouvia há muito tempo. É ele. Convivemos muito no passado. Distanciados pela vida não mais nos vimos. Agora ele reaparecia como que surgido do nada. Avisou-me que morava na cidade, queria me ver, matar saudades.

Marchas e contramarchas vencidas eis que, finalmente, marcamos nosso reencontro. Antes da ocasião tentei recompor na memória detalhes sobre o amigo. Mas, como estaria ele agora? De que assuntos trataríamos? Agora que sucumbimos ao avanço dos anos estariam em pé coisas em que ambos acreditávamos e professávamos?

Marcamos num bar. Cheguei antes, arranjei-me numa mesa, chamei o garçom, pedi um chope, enfiei a cara no celular. De repente uma mensagem: o amigo iria se atrasar um pouco, demorara a sair de casa.

Quando ele chegou abraçamo-nos efusivamente. Estava mais velho, claro, mas era ele o companheiro de tantas. E nos debruçamos sobre o passado. Voltaram nossas noitadas de moços, namoradas que tivemos, tempos nos bancos da faculdade, destinos de ex-colegas etc. Fez-me bem lembrar-me de tanta gente de quem não mais ouvira falar. Então Fulana seguira seu plano de se mudar para os EUA depois de formada. Aliás, casara-se com um americano, seus filhos eram americanos. Aquele mulherão da nossa turma… Ela mesmo. Mas, Fulano de quem éramos mais ou menos próximos, esse morrera. Como? Ora, num acidente de carro, na Via Dutra. Ia para o Rio. Montara negócio lá. Deixara viúva e um filho que tentara manter os negócios do pai sem resultados.

O garçom estimulava a conversa, substituindo os copos vazios de chope. Até que saímos do passado e chegamos ao presente. Então, como estava o amigo? Não muito bem, contou-me. Avalizara um parente que não saldara o compromisso. A dívida, enorme, recaíra sobre ele. Agora estava mal das pernas. A mulher bem que o avisara, não assinasse nada pelos outros. E dera no que dera.

Aos poucos fui entendendo que o amigo não me procurara por ter saudades. Ele precisava de socorro, de dinheiro. As contas estavam atrasadas. Certamente eu me lembrava de um favor que me fizera quando me ajudou a pagar o mês de aluguel da república de estudantes em que eu vivera. Agora, chegara a minha vez de retribuir o favor, ainda mais com ele me contando sobre a doença da mulher, a urgência de certos pagamentos etc. Claro, não esperava que eu o salvasse, apenas que o ajudasse na emergência de momento.

A conclusão foi simples. Acuado, não tive como fugir. Preenchi um cheque com valor considerável e dei a ele. Depois disso ele alegou pressa. Tinha compromissos urgentes. Mal pegou o cheque foi se despedindo. Pela janela eu o vi atravessando a rua e desaparecer. Não cumpriria jamais a promessa de me devolver o dinheiro. Nunca mais o veria.

Sem perceber o meu copo estava vazio. O garçom me trouxe mais um chope que engoli devagar. Depois paguei a conta e sai. No metrô imaginei a decepção do amigo ao constatar que o cheque que lhe dera não teria fundos. Culpa da crise. Ela pegara todo mundo, ele, eu também.

Escrito por Ayrton Marcondes

14 outubro, 2019 às 1:19 pm

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