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A viagem sem volta
Meu tio lia diariamente jornais. Em geral demorava-se na sessão de obituários. Frequentava a listagem de mortos, um a um, reparando nas idades com que abandonaram o barco da vida. Não era incomum que, a certa altura, nos alertasse: morreu fulano de tal. Meu tio dizia isso como se conhecesse o falecido e tivesse perdido um amigo. Mas, sabíamos, ele não fazia a menor ideia de quem fosse. Entretanto, tinha algum prazer em vigiar o movimento daqueles que saiam de cena.
Os anos passam. De repente nos vemos naquela fase que decidiram nomear como “melhor idade” que de “melhor” não tem nada. Acontece que nessa fase não é incomum que recebamos notícia sobre o passamento de algum conhecido. Fulano morreu ontem. A notícia chega assim, sem cerimônia. Ocorre que o falecido, a quem conhecíamos, tinha a mesma idade que eu. Ou seja: a minha turma começou a embarcar no tal trem que não tem viagem de volta. Isso nos deixa em estado de alerta. Aliás, a coisa piora quando somos informados que um antigo colega de turma na faculdade está mal, muito doente, com os dias contados.
Da morte ninguém escapa, essa a única certeza absoluta na vida. Mas, fingimos ignorá-la. Pena que fulano morreu, sinto muito, mas continuo bem vivo aqui e sem previsão de deixar o mundo. Entretanto, um dia a ceifadora se ocupará de mim. As circunstâncias do encontro final são desconhecidas. Ainda bem porque não adianta sofrer por antecipação. Importa ter conciência da finitude da vida, embora sem dar muita bola para esse fato.
Não imagino como serão os minutos de espera na plataforma de embarque no trem da viagem sem volta. Pra dizer a verdade não quero mesmo imaginar.
Sugismundos
Na calçada, o velho gritava ao telefone. Protestava contra o fato de um Tal aparecer para dormir na casa dele, mas muito fedido. Repetia sobre a cara de pau do Tal, sujeito que não tomava banho. Parente serpente. O Tal seria primo da mulher ou coisa que o valha. Mas, fedido, malcheiroso, porco mesmo.
O calor anormal que acontece agora na Europa, certamente gera suores com odores não muito agradáveis. Tanto que na Áustria foram distribuídos frascos de desodorantes no metrô. Impossível viajar-se nos trens em meio à fedentina.
No dia-a-dia nem sempre convivemos com pessoas cuidadosas quanto à própria higiene. Há quem seja cercado por uma espécie de fumaça invisível cujo cheiro é de amargar. Certa vez, num avião, sentei-me ao lado de um cara que não tinha nenhum capricho em relação aos seus humores e gases intestinais. De minha parte fui aguentando. As coisas se mantiveram até que uma senhora, no banco detrás, chamou pela aeromoça e reclamou. Entretanto, o malcheiroso simplesmente ficou na dele. Nãos e deu por achado. A usina intestinal dele continuou em plena produção. Mais de uma vez me levantei, tentando achar outro lugar no avião lotado. Em vão. Foram quase três horas de sufoco.
Certos hábitos e comportamentos podem nos escandalizar, mas, nem sempre denotam falta de asseio ou de educação. Da minha infância trago imagens de situações pouco usuais nos dias que correm. Naquela época vivíamos numa zona rural. Aos domingos os trabalhadores de sítios e fazendas vinham até o lugarejo para assistirem às missas. Pessoas simples, mas bem cuidadas. Acontecia, porém, que, por volta do meio-dia, precisavam almoçar. Então era comum ver-se famílias reunidas em círculo, alimentando-se do conteúdo de uma panela a qual era passada de um a outro. Usavam uma única colher e a mesma vasilha que continha os alimentos. Era como era. Em família.
Nem todo mundo prima pelos bons cuidados em relação ao asseio. O velho que gritava ao telefone tinha suas razões para protestar. Era a ele inadmissível alguém aparecer na casa de outrem e submeter os parentes a seu descaso com o próprio corpo. Imagino que qualquer um que anda por aí seja capaz de falar sobre casos desse tipo, tão desconfortáveis.
É, acontece.
Falhas de memória
O que assusta é o esquecimento. Você se lembra de alguém, mas tornou-se incapaz de se lembrar do nome dessa pessoa. Coisa acontecidas não há muito desparecem do horizonte, você não se lembra.
Há também o caso de esquecimento de coisas triviais. Antes de se recolher ao seu quarto para dormir você confere se as portas da sua casa estão trancadas. Depois vai até o quarto, põe a cabeça no travesseiro e surge a dúvida: eu verifiquei as portas? Incapaz de se lembrar você se levanta, confere as portas e volta, agora sossegado. Tudo em ordem. Fica só por contado automatismo?
No passado ficávamos de boca aberta com o grande conhecimento de alguns colunistas diários de jornais. Os caras eram proprietários de memórias invejáveis. Falavam sobre tudo e com propriedade. Citavam autores, páginas de livros com naturalidade impressionante.
Hoje me pergunto sobre os mecanismos que usavam para manter-se tão atualizados. Não existiam computadores, no máximo contavam com o auxílio de boas enciclopédias. Mas, estas também envelheciam. Quem sabe a memória deles era organizada em fichários. Pode ser.
Ninguém discorda do quanto a leitura é importante. Vida afora li uma enormidade de obras, algumas por prazer, outras por dever de ofício. Entretanto, confesso não me lembrar do conteúdo de muitos livros aos quais dediquei um bom tempo. Não é incomum que ache na minha pequena biblioteca algum livro, com anotações que fiz e que, absolutamente, hoje não me dizem respeito.
Julio Cortázar dizia que uma história só e boa quando você não se esquece dela. Li obras de muitos autores russo na minha juventude. Não sei se saberia falar ou escrever sobre algum conto de Gogol, por exemplo. Guardei dele o título do conto “O capote”. Mas, não me lembro de nada sobre essa história. Claro, existem obras marcantes com as quais afinamos nosso espírito. Como esquecer o enredo de “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde? Que dizer do incrível “A consciência de Zeno” de Italo Svevo? Tantos livros muitos bem lembrados, outros tantos esquecidos.
Penso que boa parte das falhas de memória possam ser devidas à preguiça. O cérebro se acomoda à preguiça. Hoje em dia não há assunto a que não tenhamos acesso através da internet. Se preciso falar sobre o pintor Diego Rivera, por exemplo, não é necessário perder muito tempo, consultando a memória. Basta digitar o nome dele no Google para, num instante, ter acesso a dados sobre ele e observar as telas que nos deixou.
Poderá haver um tempo em que os homens deixarão de pensar, deixando tudo por conta das máquinas. Já acontece em filmes de ficção. Por enquanto vamos nos virando com acessos aos bancos de dados eletrônicos.
Maratonas
Alguns amigos participam de maratonas. São 42 km a percorrer, lutando contra o tempo. A filha de um amigo acaba de ficar em trigésimo lugar na maratona de Porto Alegre. Isso na classificação geral. No grupo dela alcançou o oitavo lugar.
Confesso que detesto exercícios físicos. A coisa chega a absurdos. Por exemplo: evito passar por ruas nas quais existem academias. Ver aquela turma pedalando nas bicicletas me dá nos nervos.
Outra coisa é correr. Até perto dos 30 não me exercitava. Depois passei a correr. No começo parecia-me que morreria pela falta de ar. Mas, de quilômetro em quilômetro, cheguei a correr 20 pelo menos três vezes por semana.
Adoro correr. Fone de ouvido, com boa e movimentada música, contribui para acelerar o passo. As neuras também. A distância a percorrer tem que ser religiosamente completada. Parar com apenas 1 metro a menos invalida tudo. A sensação é de não ter corrido. Neuras.
Eu corria num parque, nos finais de tarde. Tinha um sujeito que corria lá, na mesma hora. Até parecia que marcávamos encontro. Eu saia correndo para um lado do circuito e ele no sentido contrário. O cara corria bem melhor e mais que eu. O fato é que a cada volta completada ele chegava ao ponto médio bem antes que eu. Assim, o cara ganhava sempre.
Bem. Aconteceu-me tirar férias nas quais treinei muito numa região montanhosa. Quando voltei fui ao parque no horário de sempre. O cara estava lá. Começamos a correr em sentidos opostos, como sempre. Para surpresa dele fui o primeiro a chegar ao ponto médio. Nas voltas seguintes fui ganhando terreno.
Até aquele dia eu e o meu competidor não tínhamos trocado uma só palavra. Quando venci ele não se conteve. Queria saber como eu alcançara o feito. O cara não se conformava. Era bem mais neurótico por corridas que eu.
Hoje, na “Folha” o colunista Nizan Guanaes escreve sobre maratonas. Conta que chegou a pesar 200 kg. Tinha insônia, passava mal. Hoje é um triatleta. Diz que a maratona obriga o corredor a abandonar tudo o que é desnecessário nessa vida. Isso torna o empresário muito mais focado. Uma maratona exige planejamento, estratégia, e muita disciplina, coisas de que um bom empresário necessita. Daí que, segundo o Guanaes, correr é um novo MBA.
A força espacial
A guerra vai começar. O governo dos EUA anuncia a formação de uma força militar que tomará conta do espaço. Não basta aos EUA estarem no espaço; é preciso dominar a região dada a competição com outros países - leia-se Rússia e China.
Não se trata de roteiro de filme. Americanos são muito bons na criação de batalhas travadas no espaço. A sempre preocupante invasão de alienígenas tem levado multidões aos cinemas. Obviamente, o homem quase sempre vence. Estaria no DNA humano a supremacia sobre invasores vindos de outras galáxias. De modo que não é tão inesperado esse salto para a realidade. Os americanos decidiram chamar para si o domínio do espaço.
A decisão dos EUA não deixa de causar estranheza. Para o mortal comum a decisão de dominar o espaço soa megalomaníaca. Havia nas palavras do vice-presidente Mike Pence a arrogância do “nós podemos fazer isso”. A tal grandeza norte-americana que seus adversários dizem ser às custas do restante do mundo parecia impregnar o ato.
E não sem razão. Num mundo atolado na miséria e com problemas ambientais que caminham para tornar-se insolúveis os EUA, mais uma vez, olham para o próprio umbigo. Aliás essa é a declarada política do presidente Trump que, dia após dia, aplica-se em salvaguardar apenas os interesses de seu país, em detrimento dos demais. A liderança e poder inconteste dos EUA vem sendo colocada a serviço de interesses que excluem os de outras nações.
Segundo se anuncia a força espacial já estará em ação em 2020. Por enquanto vai soando aos nossos ouvidos como peça de ficção. Mas que não nos enganemos, a coisa é pra valer. E veja-se o lado bom: se um dia a Terra for atacada lá estará, no espaço, a força norte-americana para salvar-nos. Como nos filmes.
Matança de animais
Na Austrália o governo permite aumento do número de cangurus a serem abatidos. Com a seca os cangurus têm aparecido até mesmo em cidades em busca de alimentos. Grande número de acidentes com cangurus tem acontecido. Espera-se grande aumento no número desses casos até o final do ano.
No Pantanal um frigorífico tem capacidade para matar até 600 jacarés por dia. A carne desses animais é comercializada. Importante lembrar de que os jacarés são predadores de piranhas. As populações desses peixes aumentam com a redução do número de seus predadores.
Na Indonésia uma população enfurecida matou 300 crocodilos. A revolta se deu depois que um crocodilo matou um homem de 48 anos. A fotografia dos crocodilos abatidos circula na internet.
Entre nós vigora a discussão sobre o terrível javaporco. Trata-se de um animal descendente do cruzamento entre javalis e porcos. Considerado uma praga para a agricultura o javaporco é temido pela sua velocidade de reprodução, agressividade e tamanho. Devido a publicação de fotos de javalis sendo mortos o governo de São Paulo proibiu a caça aos javalis e javaporcos em todo o estado. A medida não foi bem recebida pelos agricultores que advertem sobre a possibilidade de extinção de áreas de agricultura pelo ataque e voracidade desses animais.
Os javaporcos foram introduzidos no continente por uruguaios e argentinos visando a produção de carne. A introdução revelou-se um desastre dada a ausência de predadores para esses animais. Além do que a carne de javaporcos revelou-se pouco apetitosa. No mais esses animais devoram o que encontram pela frente e suas fêmeas dão à luz cerca de 15 filhotes após gestação de apenas 110 dias.
Como atestam vários registros em todo o mundo a introdução de espécies em ecossistemas aos quais não pertencem costuma ser prejudicial. Caso clássico é o da introdução de coelhos - Oryctolagus cuniculus -, oriundos da Península Itálica, na França e na Inglaterra onde se tornaram pragas para a lavoura. No Brasil o mexilhão dourado, oriundo da Ásia, infestou rios e lagos da região Sul e do Pantanal. Capaz de entupir tubulações, provocar contaminações e interferir nas cadeias alimentares o mexilhão coloca em risco espécies nativas e o sistema elétrico do país.
O primeiro salário
Leio sobre a tentação de queimar o primeiro salário. Grana no bolso a pessoa mal vê a hora da saída do emprego. Lá fora um mundo repleto de coisas a consumir a espera. O bolso cheio hora de experimentar, pela primeira vez, a sensação de poder comandada pelo dinheiro. Não importa se o dinheiro recebido é suficiente para aplacar os desejos. O que vale é a sensação de fazer parte de um mundo de consumo até ontem talvez inacessível.
Não foi o meu primeiro emprego mas, pela primeira vez, recebia um salário mais substancial. Àquela altura da vida pesavam-me os baixos ganhos, insuficientes para fazer frente às contas do mês. Dívidas de pequena monta acumulavam-se, sem solução. De modo que aquele novo primeiro salário significaria a redenção, mudança de patamar.
No dia de receber compareci à sala da empresa na qual se faziam os pagamentos e sai de lá com o belo cheque do primeiro salário. Estava feliz da vida, louco par retornar à casa e festejar.
Entretanto, como se diz, alegria de pobre dura pouco. Não saíra ainda do prédio quando recebi o recado de que o diretor da empresa queria me falar. Era o cara que me contratara, aquele que apostara em mim, selecionando-me em meio a uma penca de candidatos.
Depressa tomei elevador e logo estava na sala do diretor na qual fora introduzido por uma bonita recepcionista. Sentei-me diante da mesa de trabalho e, minutos depois, chegou o homem, muito sorridente e amigável. Falou-me sobre a satisfação com o meu desempenho e o acerto da minha contratação. Contou-me de sua pressão na reunião com os patrões para que justamente eu recebesse o emprego.
Até ai tudo bem. Cheque na carteira, elogios do diretor, como o mundo era bom. Entretanto, o amigável diretor não me chamara só para elogios. De repente, eis que me disse que, em verdade, me chamara porque necessitava, com urgência de um empréstimo. O valor? Ora, exatamente o do cheque que eu acabara de receber. Passaria a ele o cheque que me devolveria em exatamente um mês.
Atônito, não soube o que dizer. Precisava, desesperadamente, do emprego cuja continuidade dependia justamente daquele sujeito. Outra atitude não tive que passar-lhe o cheque e ir para casa desolado.
Mas, o diretor honrou sua promessa. No mês seguinte devolveu-me o dinheiro e nos anos que se seguiram mantivemos muito bom relacionamento.
Se bem me lembro estive ligado àquela empresa por 10 anos. Depois que sai não mais ouvi falar sobre o diretor. Até recentemente. Pouco tempo atrás encontrei-me, por acaso, com um antigo funcionário daquela empresa. Através dele fiquei sabendo do destino de muita gente que trabalhara comigo naquela época. A certa altura lembrei-me de perguntar sobre o diretor. Relatou-me o antigo funcionário que tempos depois da minha saída se soube que o diretor sempre fora viciado em jogo. Participava ele de mesas de jogos com apostos altíssimas. Acabou quebrando. Foi despedido e desapareceu.
Essa revelação teve o condão de ressuscitar em mim a antiga dor. Então aquele empréstimo, tão dolorido, fora feito para que o diretor saldasse alguma dívida de jogo. Retornei ao rapaz que fui e à minha viagem num ônibus circular, de volta para casa. Era noite e seguia eu torturado por não saber como pagaria o aluguel e as contas de minha família. E não ajudara a um amigo necessitado de um empréstimo. Sofrera para que ele pagasse dívida de jogo.
No mundo dos chefs
Culinária é assunto para quem entende. Criado na base do arroz-feijão- bife- batata frita tenho consciência de que meu paladar não seja muito sofisticado.
Certa vez jantei num restaurante no qual militava conhecido chef. A bem da verdade não consegui sentir a magnitude daquela famosa cozinha. Para começar o estranhamento com alguns pratos, para mim intrigantes e desconhecidos. Era bom. Muito bom. Mas eu não comeria aquilo todo dia.
Noutra aconteceu-me jantar num restaurante de Montreal. Não foi pelo fato do cardápio em inglês: cada prato tinha um título que não se relacionava muito com o seu conteúdo. Em vão o garçom me explicou o significado de cada um daqueles títulos. No fim optei por uma massa que degluti com algum esforço.
Noutra, ainda, fui ao casamento do filho de um amigo. Muito ricos os pais do rapaz promoveram a festa num lugar chiquérrimo. O responsável pela comida foi um chef de renome. Acontece que a maioria dos convidados não se deu bem com a comida e de modo algum pode apreciar aquelas iguarias. Arroz, bife e batatas fazem um estrago danado na gente.
Está na moda a TV apresentar programas nos quais cozinheiros preparam pratos, ensinando os espectadores em como fazê-los. Isso sem falar em concursos nos quais os participantes preparam pratos para o julgamento de premiados chefs. São programas interessantes que nos fazem refletir sobre a beleza da grande culinária.
Mas, como em outros setores, a culinária também tem os seus grandes. Trata-se de chefs badaladíssimos, alguns deles louvados por ter implantado significativas mudanças na arte de fazer boa comida. Hoje o mundo lamenta a morte do chef francês Joël Rubuchon. Ele detinha o maior número de estrelas do “Guia Michelin”. Sob seu comando 26 restaurantes e cafés em nove países. Considerado o cozinheiro do século XX, Rubuchon renovou a cozinha francesa daí sua morte ser lamentada por chefs estrelados, em vários países.
A culinária é arte para poucos. Infelizmente o que se vê por aí são pratos elaborados sem cuidado e a preços exorbitantes. Difícil servir-se bem nesse manancial em que o lucro antecede a qualidade.
1975
- Mataram o Herzog
- Quem?
- O Herzog, porra.
A conversa se deu enquanto esperávamos pelo elevador. O meu amigo estava transtornado. A ditadura seguia feroz, estávamos todos ameaçados.
A bem da verdade eu não sabia quem era o Herzog. Depois soube que trabalhava na TV Cultura e era militante do Partido Comunista. Recolhido ao Doi-Codi par ser interrogado, apareceu morto. Enforcara-se com o cinto de pano do macacão que usava. Assim a morte de Herzog foi noticiada. Todo mundo sabia que a explicação oficial era falsa. Em verdade o jornalista sucumbira em razão de maus tratos e tortura. A linha dura não perdoava ninguém.
Em 75 Geisel era o presidente. Seu governo seria marcado pelo esforço em torno da abertura. Os militares haviam já passado do tempo no poder. Mas, só dez anos depois, Tancredo Neves seria eleito presidente e morreria antes de assumir o cargo. Era o fim da ditadura.
Tempos difíceis aqueles. O amigo que me deu a noticia da morte do Herzog era, ele mesmo, fugitivo por ter participado de ato terrorista. Disso só vim a saber anos depois. Vivia em São Paulo sob nome falso. Sujeito inteligente, intelectualizado, era um doce de pessoa. Mas, como vim a saber depois, adepto da violência. Esse cara morreu precocemente. Apaixonado por uma jovem que lhe deu o cano, matou-a e suicidou-se. Um doce violento.
Hoje em dia o país está mergulhado numa onda de violência. Dizem por aí que é chegada a hora do retorno da força. Ouço pessoas dizerem que falta governo, falta reação à bala. Não sei se as novas gerações têm noção do que foi o longo período de trevas entre 64 e 85.
Geisel morreu em 1996 e agora se noticia sobre sua conivência com crimes praticados pela ditadura militar. Quanto a Herzog ainda hoje seu caso continua em aberto. Agora a Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de condenar o Brasil por não esclarecer o crime e ordenou a retomada das investigações.
O fato é que os horrores da ditadura permanecem vivos. Há quem os negue. Mas, quem viveu naquele período conhece a verdade.
Aquela foto de Herzog enforcado é terrível.
Fotografias antigas
Recebo, via e-mail, fotografia de tempos passados. São pessoas defronte uma igreja, cada uma portando um instrumento musical. A banda é pequena, são poucos músicos. A pessoa que me envia a foto pergunta se reconheço os músicos. Passo algum tempo observando as faces em preto-e-branco. Até que reconheço dois deles, aliás irmãos. O mais alto trabalhava como ajudante de pedreiro e jogava na ponta esquerda do time reserva - o segundo quadro - do esquadrão local. O mais baixo foi, vida afora, um tipo encrencado. A mãe dele tinha um pequeno cinema que exibia filmes nos fins de semana. Bancos de madeira, tela pequena, por ela desfilavam John Wayne ou outros stars americanos. Mas, o filme era de celulose e, vez ou outra, arrebentava em meio à sessão. Só o baixinho sabia colar as partes e dar seguimento a diversão da plateia. Mas, ele era encrencado… Convencê-lo a consertar o filme era um grande problema.
Reparo nos outros, em vão. Vou desistir, mas sou salvo pela memória. Está ali um pedreiro que construiu casas do lugar. Ao lado dele um rapaz que se casou com moça simpática, mas acabou se entregando aos braços de uma amante. Esse rapaz costumava beber e a sorte foi a ele madrasta. Por volta dos 30 aconteceu-lhe um derrame que o fez incapaz. Então a amante caiu fora. O incrível é que a mulher, a quem abandonara, enterneceu-se com a situação do ex-marido. Trouxe-o para casa e cuidou dele até que a doença o levou.
Todos mortos. Histórias de vida posteriores ao momento em que foram flagrados defronte a igreja. As fotografias têm o dom de eternizar não só momentos, mas, também, memórias. Assim como eu ainda existem por aí uns poucos capazes de reconhecer aquele pequeno grupo de mortos. Mas, não se passará muito até que também estejamos desaparecidos e ninguém se lembrará dos moços da fotografia, os jovens algo sérios, compenetrados em seu ofício de participar de uma banda.
Fotografias antigas vez ou outra saem de sua reclusão como a solicitar que os mortos nelas impressos sejam relembrados por alguém. Diziam os mais velhos que isso não acontece por acaso. Quando uma gaveta é aberta, depois de muito tempo, e alguma fotografia dela é destacada isso aconteceria com propósito certo. Seriam os mortos a decidir para que mãos suas imagens deveriam ser encaminhadas. A ser isso verdade sempre restará aos desparecidos um sopro de vida a iluminar suas sombras no território da morte.