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O peso da falhas
Todo mundo terá falhado em algum momento da vida. Pequenas falhas, grandes falhas, ninguém é perfeito. Há falhas que nos incomodam vida afora. Um grande amigo fora noivo de moça bonita que conhecia desde a infância. Famílias amigas que moravam próximas e se visitavam. O casamento tinha a aprovação dos pais de ambos os lados que viam no acontecimento a ligação de parentesco que tanto desejavam. Marcada a data, vestido de noiva provado, festa organizada, convites entregues, meu amigo entra em crise. Cabeça no travesseiro descobre que a linda noiva não seria sua mulher. No café da manhã comunica a desistência aos pais que se cobrem de vergonha. A noiva não se recupera ao receber a notícia. Desfalece e passa por período de grave depressão. O amigo? Bem, a vida segue. Só que, nas madrugadas, ao acordar, sentia vergonha pela falha. Anos depois - contou-me o amigo - lembrava-se do fato e cobria a cabeça com o cobertor, tanta vergonha sentia. Tomando o vinho ruim que fabricávamos nos tempos difíceis da ditadura, vez ou outra tornava ao assunto da sua grande falha. Ficara marcado pelo resto da vida.
Falhas que cometemos no dia-a-dia ficam circunscritas ao restrito meio em que atuamos. Mas, que dizer de falhas cometidas aos olhos de grandes plateias? Como ficam aqueles que ao falhar expõem-se ao julgamento de pessoas a quem nem mesmo conhece?
Talvez o caso de Paes, goleiro do São Caetano, nos seja útil para pensar sobre a extensão do incômodo de falhas cometidas publicamente. No jogo, contra o São Paulo, o São Caetano precisava apenas de um empate para passar às semifinais do campeonato paulista. Com o empate o São Paulo seria desclassificado. Eis que no meio do segundo tempo, jogo ainda empatado sem gols, Paes sozinho e preparando-se para bater um tiro de meta, distraiu-se e perdeu a bola para um atacante do São Paulo. O lance absurdo resultou no gol do São Paulo e desconjuntou o São Caetano que acabou ainda sofrendo um segundo gol e foi desclassificado.
A falha grotesca e transmitida ao vivo e a cores para todo o país fora injustificável. Jogo terminado, Paes foi entrevistado e disse não saber o que dizer. Entretanto, afirmou nãos saber como olhar para o rosto de sua mulher e filhos quando voltasse à sua casa. Era um homem derrotado e a imagem de sua derrota constrangedora. Mais: disse temer pela segurança de sua família. Não acontecera, no passado, a um jogador da seleção colombiana ser assinado por erro cometido durante partida da Copa do Mundo?
No fim do jogo conversei com um torcedor do São Paulo. Feliz com a vitória e classificação vibrara com o primeiro gol de seu time. Mas, não tanto. Não pudera deixar de sentir pena do goleiro do time adversário. Isso também ouvi de outras pessoas.
A falha humana quando pública pode nos servir como espelho para a nossa própria capacidade de falhar.
Certas histórias
Certas histórias incomodam. Para cada pessoa existem diferentes fatores capazes de desencadear o incômodo. Por isso certos filmes para mim perfeitamente aceitáveis mostram-se inaceitáveis a outra pessoa. Não se trata de apenas gostar ou não gostar. Nem de ter medo ou não. Você pode adorar filmes de terror enquanto para outras pessoas esse gênero é inaceitável. Mas, não é isso. No caso o que existe é a aversão a determinadas ordens de narrativas.
Essa aversão provém de narrativas que logram atingir o “de dentro” das personalidades individuais. O fato é que existem narrativas e situações que beiram o insuportável. No livro “1984” O’Brien, o torturador, diz ao Winston, que vai ser torturado, sobre ele ser levado a uma sala na qual o espera “ a pior coisa do mundo”. Ora, que vem a ser a pior coisa do mundo? A curiosidade do leitor do livro de Orwel é aguçada por essa pergunta. Aguarda-se que Winston seja introduzido na sala para que o mistério seja revelado. Quando isso acontece O’Brien prende uma gaiola de metal ao rosto de Winston. Dentro dela existem ratos. Os ratos estão famintos e lutam por se aproximar do rosto de Winston para mordê-lo. Entretanto, não conseguem fazê-lo dada a presença de uma barreira que os impede. Então, qual é a pior coisa do mundo? Para Winston a pior coisa é são os ratos que querem alimentar-se de seu rosto. Não há para ele maior horror que isso. A conclusão é que para cada pessoa existe uma determinada pior coisa do mundo. A mente humana é habitada por fantasmas de características individuais, forjados nas fantasias e receios de cada pessoa. O horror e o medo dependem, portanto, de quem os experiencia.
Das histórias que me incomodam destacam-se narrativas nas quais um indivíduo faz-se passar por outro. Há algo de insuportável no caso de personalidades alternativas. Filmes nos quais uma personagem finge ser outra causam-me mal-estar. Não se trata da mentira propriamente dita. O que incomoda é a negação do ser.
As explicações sobre a razões do meu incômodo certamente pertencem aos estudiosos da alma humana. Psiquiatras e psicólogos contam com vasto arsenal de teorias com as quais devassam a mente humana e suas projeções. Quanto a mim, sigo na mesma toada. Se ligo a TV e o filme em exibição versa sobre um indivíduo fazer-se passar por outro aperto o botão do controle remoto e fujo para outro canal.
Assombrações
Na minha infância a presença de assombrações era coisa natural. Fulano de tal levantou-se durante a noite e, no escuro, viu-se diante do espectro de uma mulher. Assustado, retornou ao quarto de dormir, acordou a mulher e rezaram o terço para que a alma penada encontrasse a paz. Histórias como essa eram mais ou menos rotineiras daí o medo das crianças em ficar sozinhas no escuro.
Assim, a vida após a morte surgia como fato consumado. Alguns iam para o céu, outros para o inferno, outros ainda passariam por estágio no purgatório. Espíritos mal resolvidos perambulavam pelo mundo, vez ou outra assombrando pessoas.
Ver ou não espíritos não era para qualquer um. Certas pessoas nasciam dotadas da mediunidade que lhes permitia o contato com os mortos. Minha tia-avó teria sido dessas pessoas iluminadas. No mundo dela não havia separação clara entre vivos e mortos. Certa vez estávamos à mesa para o almoço e eis que ela passou a relatar a presença de nossos acompanhantes invisíveis. Fulana está ali, sicrana em pé junto à mesa… Os mortos nos visitavam e não podíamos vê-los. Mas, para a tia isso era comum, absolutamente normal.
Outra tia não tinha contato direto com os mortos. Entretanto, existia uma alma penada que a assombrava. Ela via um homem que surgia do nada, em geral ao lado da cama dela. Minha tia descrevia esse homem detalhadamente, a começar pelas roupas que vestia. Só que ela tinha um medo danado dele. Nas ocasiões em que a assombração aparecia ela se desesperava, gritava muito e perdia o controle sobre si. Era difícil acalmá-la. Como as visões em geral aconteciam durante a madrugada minha tia passava o resto da noite na sala com todas as luzes acesas. Em vão meu tio, o marido dela, tentava convencê-la a retornar ao quarto. Ela temia que a assombração ainda estivesse lá e não voltava de jeito nenhum.
Tudo isso para confessar que até a minha adolescência tive muito medo de assombrações, fantasmas, almas penadas etc. Minha vó morreu de câncer e sofreu muito em seus últimos dias. Na véspera do dia em que iria morrer eu estava ao lado dela. Deitada sobre a cama eis que, de repente, ela começa a apontar com o dedo e dizer o nome de pessoas que teriam vindo visitá-la. Todas aquelas pessoas que teriam entrado no quarto estavam mortas. O fato, no momento muito emocionante, serviu como prova aos presentes da existência de almas do outro mundo. Minha avó estava à morte e parentes e amigos já mortos teriam vindo para acompanhá-la na travessia. Horas depois ela faleceu.
Conheço um rapaz que trabalha no comércio. Tem seus afazeres e luta bastante pela sobrevivência. Consta que esse rapaz possui grande mediunidade. Uma vez ao mês ele reúne pessoas próximas e promove uma sessão na qual recebe o espírito de um caboclo que fala através dele. Na ocasião os presentes fazem perguntas ao espírito incorporado e recebem orientações, conselhos e até broncas pelo modo de viver.
Não posso dizer que acredito nessas incorporações espirituais. Tempos atrás perguntei ao médium se não seria algum traço desconhecido de sua personalidade que se exteriorizaria durante as sessões, permitindo a ele emitir voz diferente numa linguagem de caboclo velho, acaipirado. O amigo médium me disse que não tinha a menor noção de como as coisas se passavam. Relatou que quando incorporado não se lembrava de absolutamente nada. Seu corpo era apenas usado como veículo através do qual o caboclo se comunicava com os presentes. Nem mesmo se lembrava do litro de whisky que ingeria e dos charutos que a todo tempo fumava. Aliás, ao tornar a si não apresentava sinais de ter bebido e fumado.
No dia em que conversamos tive vontade de pergunta ao médium se toparia fazer um teste do bafômetro ao final de uma sessão. Mas, desisti e continuo seguindo por aí, torcendo para não dar de cara com alguma assombração.
Futebol e emoção
Ontem Santos e Corinthians empataram no Pacaembu. O Santos com um time de jovens arrancou o empate no segundo tempo.
Os jornais noticiaram sobre o famoso jogo, realizado em 1968, entre as duas equipes. Naquela ocasião o Corinthians não vencia o Santos há 11 anos. Eram os tempos em que Pelé vestia a camisa santista. Mas, o Corinthians havia feito contratações importantes, entre elas a Paulo Borges. E, no Corinthians, jogava ninguém menos que o grande Rivelino.
Foi um jogaço. Pacaembu lotado, jogo difícil. Até que, no segundo tempo, Paulo Borges recebeu a bola na esquerda do ataque corintiano e desferiu portentoso chute. A bola balançou as redes santistas e o Pacaembu veio abaixo.
A razão de ser desse texto é justamente o momento do gol de Paulo Borges. Eu era um dos milhares de espectadores daquela memorável partida. Ainda hoje me recordo com clareza do momento em Paulo Borges enviou a bola ao gol do Santos. Mais que isso, o importante é o que aconteceu a seguir. Havia na garganta da torcida corintiana um grito contido durante 11 anos. Esse grito jactou-se com inigualável furor no momento do gol. Tamanho delírio não terei presenciado em nenhuma outra ocasião em que eu compareci a estádios de futebol. Tamanha a loucura que pessoas atiravam ao ar o que tinham nas mãos. Então surgiram as marmitas… Marmitas voando. A gente sofrida que pagava o preço mais baixo das gerais alcançava seu momento de glória. Repito: uma loucura.
Ficaram na memória aqueles momentos de transcendência. O ano era 1968 em cujo final estava nos reservado o AI-5. Eu era um desses estudantes que viera do interior tentar a sorte na capital.
O Corinthians ainda fez o segundo gol, marcado pelo centroavante Flávio. Na volta para casa, dentro do ônibus, muita festa. O tabu havia sido quebrado.
Notícias sobre mísseis
Meu sobrinho morava na Alemanha. Estava em Berlin quando da derrubada do muro. Quando voltou trouxe-me um fragmento do muro. Era um troféu. Na época o mundo respirava feliz. Acabara-se a Guerra Fria. Alemães orientais uniam-se aos ocidentais. Gorbatchov detonara a União Soviética. O mundo mudava de patamar.
Até então vivêramos sob a possibilidade de um conflito nuclear. No governo Kennedy o mundo teria estado a um passo da destruição total. Russos e americanos eram ciosos no controle de seus domínios. A Hungria e a Tchecoslováquia haviam pagado caro pela insurgência contra os russos. N América do Sul Salvador Allende pagara com a própria vida pelo não alinhamento com o gigante do Norte.
Mísseis. Fazem parte do jogo de poder entre as potências mundiais. De vez em quando um nanico entra no jogo pelas beiradas. O ditador da Coreia do Norte é exemplo disso. Ele se declara possuidor de mísseis de longo alcance, capazes de atingir o território norte-americano.
Ontem o czar Putin informou aos russos sobre seu arsenal nuclear. Informou sobre novas armas que nenhum país possui. Falou sobre mísseis de longo alcance contra os quais não existem bloqueios capazes de segurá-los. Notificou o mundo sobre drones aquáticos capazes de carregar mísseis em velocidades fantásticas. Completou, dizendo que a Rússia vem sendo desrespeitada e era hora de se impor através do poderio nuclear.
No ocidente a fala de Putin foi recebida como mensagem de guerra. O pior é acontecer num momento em que os EUA têm em seu governo talvez o menos preparado presidente de sua história.
Muito longe desses embates estamos nós, os cidadãos do mundo, como sempre não levados em conta e ameaçados. Basta apertar um botão, enviar um míssil de longo alcance e pronto: estaremos mortos.
O fato é que já cansamos dessa história de mísseis. A toda hora eles são citados nas ameaças entre governos cujos interesses são conflitantes. Poderíamos muito bem passar sem mísseis, viver sem a eterna ameaça da destruição total.
E dizem que a Guerra Fria acabou.
Funerais
Houve tempo que eu frequentava cemitérios. O silêncio das alamedas e a observação de lápides parecia-me tranquilizante. Fulano de tal nasceu em 1923 e faleceu em 1959… Como teria sido a vida desse homem cuja foto membros da família estamparam em seu túmulo?
Os mortos não falam, mas são eloquentes. Tantas vezes esquecidos em suas tumbas, permanecem como advertência a nós, os vivos, de que a vida não só é precária como finita. A cada dia passam a fazer parte do mundo dos mortos pessoas surpreendidas pela visita inesperada da morte. Ao homem que es barbeia de manhã e sai para o trabalho no dia em que vai morrer a morte não passa de possibilidade muito remota.
Há cemitérios e cemitérios. Alguns particularmente interessantes. O cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, é majestoso. Ali se encontram mausoléus realmente suntuosos. Turistas visitam o grande cemitério de Buenos Aires diariamente, atraídos pela suntuosidade do lugar.
Na velhice há quem perca o interesse por cemitérios. Talvez o afastamento se dê pela certeza de que, com poucos anos pela frente, o idoso não deseje vivenciar a presença da morte nos cemitérios. O mesmo acontece em relação aos funerais. De repente você constata que seus companheiros de idade devagar vão desparecendo. Fulano morreu, sicrano se foi, serei eu o próximo?
De muitos conhecidos guardo o semblante no último momento antes de se fechar o caixão. São expressões faciais inesquecíveis dado que nunca mais serão vistas. Lembro-me da face de um tio vista no momento quando sobre ele se fechava a tampa do caixão. Pude vê-lo, ainda, de viés no último instante. Essa face sem vida pertence às memórias para mim inesquecíveis.
Cada povo tem suas liturgias em relação à morte. Entre nós os velórios são marcados pelo silêncio e reverência. Os mexicanos encaram a morte de modo mais ameno, festivo. As katrinas mexicanas e as comemorações no dia de finados nos dão conta do modo como o povo do México se relaciona com a morte.
Entretanto, há culturas que nos figuram estranhas. Na China strippers e dançarinas são contratadas para acompanhar féretros. Elas desfilam sobre jipes durante o cortejo que segue aos cemitérios. Há hipóteses para explicar o estranho costume, entre elas a possibilidade de atrair mais acompanhantes o que seria uma honra para o falecido. Entretanto, o Ministério da Cultura tem combatido o hábito classificando-o como “ação não civilizada”.
O mundo é vasto como dizia o poeta. Tão vasto que abriga até mesmo ações que nos parecem estranhas em relação à morte.
Futebol e cinema
Em entrevista a jornalistas o produtor de cinema Rodrigo Teixeira afirma que filmes sobre futebol não dão certo. Quem faz a afirmação não é qualquer um. Teixeira é brasileiro bem-sucedido no mercado norte-americano de cinema. Mantém uma sociedade com o famoso diretor Martin Scorcese e está por trás da produção de grandes filmes. Agora se prepara para a produção de um filme com ninguém menos que Brad Pitt.
Confesso nunca ter pensado sobre as dificuldades de produção de um filme sobre futebol. Teixeira diz que o jogo não serve para ser transposto à tela. Já assisti a algumas películas cujo tema é a peleja travada dentro das quatro linhas. Não há como negar que são muito favorecidas pelas tramas paralelas e não pelo jogo em si.
Mas, futebol é paixão e tudo o que provém dele é quase sempre bem-vindo. No passado frequentei estádios com assiduidade e, posso dizer, vi grandes craques em ação. De alguns jogos realmente memoráveis guardo detalhadas memórias.
Os mais velhos se lembrarão de que, não faz tanto tempo assim, não tínhamos transmissão pela TV de jogos de futebol. Nessa época dependia-se da opinião dos locutores de rádio que narravam as partidas, nem sempre com total isenção ou correção. Em 1954 o Brasil foi desclassificado da Copa do Mundo pelo notável time da Hungria no qual pontificava o grande Puskas. A derrota, então atribuída à parcialidade do árbitro da partida, revoltou a torcida brasileira. Tanto que o nome do árbitro, um certo Mr. Ellis, passou a ser sinônimo de “ladrão”, aqui em nosso país. “Dar uma de Mr. Ellis” tinha o significado claro de contravenção. Entretanto, mais tarde o vídeo-tape da partida veio a revelar que o tal Mr. Ellis não tinha sido tão parcial assim contra o Brasil. Na verdade os craques canarinhos haviam enfrentado uma das maiores seleções de futebol da história a qual, incompreensivelmente, viria a ser derrotada no jogo final pelo selecionado alemão.
Em 1958 o Brasil conquistou a Copa na Suécia. Ouvimos os gols de Pelé pelo rádio. Só vimos momentos das partidas de nossa seleção tempos depois no cinema. Até que, em 1970, tivemos, pela primeira vez, a transmissão direta da Copa do Mundo, realizada no México, ao vivo e a cores na TV.
No cinema o futebol sempre nos emocionou nos momentos que antecediam o começo da projeção dos filmes. Era o cine jornal, o Canal 100 que trazia imagens de grandes jogos. Em 2015 a exposição “Canal 100: uma câmera lúdica, dramática e explosiva” permitiu ao público rever passagens do excelente cine jornal.
De fato, filmes com roteiro sobre futebol nem sempre dão certo. Mas imagens de jogos nas telonas são fantásticas.
As tais notas
Toda gente que passou e passa pelo período estudantil preocupa-se com as notas alcançadas nas provas. Nota baixa é um terror. Demora a consciência de que adquirir conhecimentos importa mais que notas. Mas, enfim, sem boas notas não se passa de ano. É assim.
Numa prova difícil para qual estudei muito acabei ficando com um três. Fiquei desolado quando recebi a prova corrigida pelo professor. O diabo é que não consegui concordar com a correção. Lie reli a prova, comparei o que escrevi com o livro que me servira de base e constatei estarem corretas as minhas respostas. Pelo que pedi uma revisão de prova. Dias depois eis que me reuni com um assistente da matéria em questão e ele, de modo algum, pode concordar com as minhas objeções. No fim das contas descobri que meu erro fora preparar-me usando um livro em espanhol. Daí que usei vários termos da língua espanhola misturados ao meu sofrível português. De nada adiantaram minhas reclamações dado que o assistente deu o assunto por encerrado e a nota foi mantida.
Nos meus tempos de estudante dávamos importância a notas atribuídas a países. Hoje em dia agências internacionais atribuem notas indicativas de risco de investimentos. Tais notas são importantes porque grandes investidores se baseiam nelas para decidir sobre onde colocar seus dinheiros. De modo que receber notas baixas influi dramaticamente nas economias dos países que as recebem. Obviamente, busca-se lucros, mas sem correr riscos.
O Brasil vem recebendo notas baixas, ficando pontos abaixo do nível recomendado a bons investimentos no país. Nesta semana a agência Fitch baixou mais um ponto na posição do país que, agora, situa-se três abaixo do nível recomendado a investimentos seguros. Nosso grande e amado país está sendo reprovado e, pior, há perspectivas de mais notas ruins.
Eis aí um caso em que a revisão da nota de nada adiantaria. Embora no momento se verifiquem sinais de recuperação da economia não se pode dizer com certeza se estamos afastados da crise gerada pelos desmandos políticos verificados em anos anteriores. O descrédito em relação à classe política que se nega a aprovar reformas importantes dado o receio de perda de votos nas próximas eleições repercute no exterior. Crises nos três poderes da República alimentam a incerteza sobre a recuperação do país.
Notas atribuídas a países são emitidas friamente. Não levam em conta que o desvio de investimentos para outros mercados afeta a economia do país e o modo de vida de milhões de pessoas. O Brasil de hoje compara-se ao paciente que saiu da UTI, mas segue hospitalizado. Doente de nota baixa.
Relatos
Há o relato sobre um antigo rei do Egito que construiu um palácio com cerca de 300 quartos para que a morte, caso o procurasse, não conseguisse encontrá-lo. A cada noite dormia em quarto diferente em sua ânsia de ludibriar a morte. Já no fim da vida construiu uma tumba na qual havia uma miniatura de seu palácio e domínios. Milhares de súditos trabalharam na construção. Mas, como acontece a todos os mortais, o dia do rei chegou. Entretanto, seu enterro foi peculiar. No trajeto, seguido pelos súditos, as refeições a que ele estava habituado forma servidas nos horários de costume para que ele não soubesse que havia morrido. Quando, finalmente, seu esquife foi depositado na tumba a ele preparada fechou-se a entrada. Consta que centenas de súditos, ainda vivos, ficaram dentro da tumba para sempre.
O relato sobre o modo de oficiar a missa por um padre não deixa de ser interessante. Naquele tempo as missas eram rezadas em latim. Entretanto, na hora do evangelho, o padre repetia sempre as mesmas palavras. Chamava a atenção dos fiéis sobre um rio cujo leito percorria um majestoso vale. Convidava-os a observar a sinuosidade da trajetória e imaginar as dificuldades enfrentadas pela torrente de água que nunca passaria pelo mesmo lugar outra vez. Assim era a vida, percurso sinuoso e pleno de obstáculos a serem superados. O homem, como as águas do rio, ficava à mercê da torrente e, a ele, cabia prostra-se diante do Senhor, vivendo segundo os ditames da religião.
Durante muitos anos o padre repetia, em suas missas, a história sobre o rio. Conta-se que os fiéis, de tanto ouvi-la, passaram a conhecê-la de cor. Daí que nas missas podia-se ouvir um murmúrio, resultante da repetição pelos fiéis de cada palavra pronunciada pelo padre. Para muitos a história do rio tornou-se oração que se repetia nas casas em momentos dedicados à fé. Consta, ainda, que muitas crianças foram educadas segundo a filosofia de vida inspirada pelo trajeto do rio que, incansavelmente, percorria o vale imaginário inventado pelo capelão.
O terceiro relato é sobre um grande ator inglês que, certo dia, ao entrar no palco, perdeu sua capacidade de representar. Até então brilhara nos palcos, sendo capaz de incorporar variada gama de personagens. Tão grande foi seu desespero que confessou aos atores que com ele representavam ter perdido a sua magia. Pediu-lhes, então, que a procurassem e, caso a encontrassem, a devolvessem de vez que a ele a magia de atuar era muita cara.
O escritor Phillip Roth impressionou-se com a caso do ator que perdeu a magia. Sobre esse tema escreveu um romance denominado “Humilhação”. Para Roth a perda da magia pode acontecera qualquer um, em geral com o avanço da idade. No caso dos escritores o envelhecimento seria causa da perda da magia, influindo na arte de escrever. Ele próprio, Roth, aposentara-se ao perceber que sua magia de escrever fora desaparecendo.
Para cada um de nós cabe zelar pela magia empregada naquilo que fazemos.
Fome
Era uma manhã chuvosa. O rapaz acordou cedo e, em vão, procurou por algo de comer no armário da cozinha. Os tios haviam viajado a alguns dias daí o nada.
Sem comer o rapaz saiu à rua, portando um guarda-chuva. Esperava-o longo trajeto a percorrer a pé. Faltava a ele, naquele dia, dinheiro para a condução. De modo que, quase duas horas depois, chegou ao prédio onde seriam realizadas as provas de seleção. Suas roupas estavam molhadas e a fome apertava no estômago.
A prova seria iniciada às 10 da manhã, mas, sabe-se lá porque, atrasou. Eram quase 11 e meia quando, finalmente, o rapaz entrou na sala de provas.
À fome somou-se a dor de cabeça. Não serão necessárias muitas elucubrações para se inferir que o resultado foi um desastre. O rapaz havia se preparado muito para a ocasião, mas foi vencido pela fome.
Casos como o acima são comuns. Há coisas infinitamente piores. Diariamente cruzamos nas ruas com pessoas que nos estendem as mãos, implorando por, pelo menos, uma moeda. São seres humanos como nós a quem é comum ignorarmos. As campanhas de cunho social recomendam que não se dê dinheiro aos pedintes que erram nas ruas.
Entretanto, por mais que fechemos os olhos, a pobreza e a fome incomodam. Quando você passa dentro do seu carro e é abordado por alguém que pede alguma coisa é quase impossível evitar o constrangimento.
A perversidade humana é enorme. Que o digam os milhões de imigrantes, perseguidos e desterrados de seus países de origem. Campos de refugiados com mais de 500 mil pessoas à espera de serem aceitos num lugar onde sejam tratados sem ódio. Sem falar nas perseguições étnicas que beiram o genocídio.
Agora a fome bate à porta do país, vinda da Venezuela. Milhares de venezuelanos fogem de seu pais no qual o desgoverno submete a população a condições de vida insustentáveis. Em desespero os venezuelanos atravessam a fronteira, chegam a Roraima, e aguardam pelo milagre da integração ao cotidiano de um país que, para eles, assemelha-se ao paraíso.
Tristes as imagens de homens, mulheres e crianças dormindo em praças, sem ter para onde ir. O governo brasileiro propõe-se a ajudá-los. Enquanto isso nada mais resta a eles que esperar.
A fome, infelizmente, não é nova por aqui. Milhares de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza. A desigualdade social é tema sempre lembrado nos discursos, mas pouco se faz efetivamente para combatê-la. Milhares de nossos conterrâneos sofrem com a miséria e passam fome.