Cotidiano at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para ‘Cotidiano’ Category

Depois do carnaval

escreva o seu comentário

Acompanhava minha mãe à igreja para receber as cinzas da quarta-feira. Em geral havia pouca gente. Na minha vez recebia o semblante sisudo do padre como reprimenda. Ele balbuciava palavras ininteligíveis e fazia na minha testa o sinal da cruz com as cinzas. Saíamos da igreja com o sinal escuro, prova de nossa fé. As cinzas apagariam os erros praticados durante a folia dos dias anteriores, pelo menos assim eu entendia a liturgia.

Não sei se os fiéis comparecem em massa hoje em dia para receber as cinzas. O que há de novo é que a quarta-feira já não representa o fim do carnaval. A folia invade a quaresma. Na própria quarta-feira saem blocos de rua em muitas cidades do Brasil. Em Salvador o carnaval parece que se nega a terminar. Trios elétricos seguidos por multidões não dão a mínima para o previsto fim da folia. Homens e mulheres fantasiados, seios à mostra, baterias sacudindo os corpos com a loucura de batidas sonoras que parecem não ter fim.

Hoje é sábado. Amanhã, domingo, a turba estará de novo nas ruas, sacolejando corpos. Em São Paulo a Av. 23 de Maio estará fechada ao trânsito de veículos para a passagem dos blocos. Espera-se mais de um milhão de pessoas na grande avenida. O povo segue em festa para esquecer as mazelas do dia-a-dia sempre convulso no país.

Mas, a segunda-feira, chegará, acreditem. Com ela o silêncio dos tambores, das vozes que cantam funk e outros gêneros nos trios elétricos. Com pesar as pessoas retornarão a seus afazeres e responsabilidades. A cortina de fumaça da alegria contagiante será desfeita e a realidade se instalará, implacável.

Como será o ano de 2018 que, como se diz, começa mesmo agora que terminou o carnaval? O governo federal acaba de intervir no Rio para tentar resolver os problemas da segurança. A reforma da previdência sai do foco do governo de vez que as chances de vir a ser aprovada parece muito remota. E assim por diante.

Nós? Ora, seguiremos a bordo desse grande barco à deriva que se chama Brasil. Muitos desertarão ao longo do ano e novas vidas adentrarão o convés, oriundas das maternidades. A vida seguirá em seu ritmo vertiginoso até que, passado um ano, entraremos num novo carnaval.

Os calendários são repetitivos. A vida é repetitiva. A morte nada mais que pontual.

Carnaval

escreva o seu comentário

Entra ano, sai ano, os carnavalescos não morrem nunca. Muda, sim, o carnaval. Não mudam as turmas que se acabam nos cordões. Na moda os blocos de rua. Perto de um milhão de pessoas sambou na Av. 23 de Maio, em São Paulo. A adesão aos blocos de rua surpreende. As pessoas saem de casa para  se esbaldar, por para fora a insatisfação que reina no país. Os entendidos se perguntam por que toda essa gente não veio às ruas para protestar contra a crise permanente no país. Crise na saúde, na segurança, na educação… Deixa pra lá esse mundo de políticagem, propinas, desvios, roubos escancarados, pouco se importando com os milhões que seguem à míngua, com os desempregados, enfim.

Mas, sempre resta o carnaval. O carnaval salvador. O momento em que as classes sociais se irmanam em blocos de desconhecidos a contorcerem os corpos na folia que nunca acaba. É um ópio que transforma, liberta. Que faz a gente correr atrás daquele que segue à nossa frente e, também, não sabe para onde está indo.

Na minha infância esperávamos pelo Zé Pereira. Ainda existem neste vasto Brasil as folias do Zé Pereira que, segundo consta, nos foram trazidas pela tradição portuguesa. Para nós o Zé Pereira era um boneco muito alto que surgia não se sabe de onde e despontava na rua, cercado pela criançada. Era uma festa. Corríamos felizes em torno da figura mágica, para nós símbolo do carnaval. Com o Zé Pereira iniciavam-se os trabalhos carnavalescos. As mulheres cozimento os trapos com remendos que resultavam nas fantasias. Não importa o quão simples e estranhas eram, mas as víamos como maravilhosas porque eram as nossas fantasias.

Então os bailes aconteciam num galpão de madeira, nos fundos da padaria. Verdade que precisava-se contar com a boa vontade do único pitonisa local para animar a festa. Acontece que o cara era “empombado”. Sujeito do contra. O jeito era dizer a ele que não tocaria naquela noite. O “não” funcionava como gatilho para o “sim”. Mas, caso não desse certo, a coisa acontecia mesmo sem o instrumento de sopro. Então o bumbo, o surdo e o repinique marcavam o ritmo da dança sob as vozes entoadas pelos foliões que mandavam brasa nas marchinhas.

Verdade que não fomos eternamente escravos da boa vontade do cara do pistão. Certa ocasião apareceu um rapaz de São Paulo que se apaixonou por uma mocinha local. Pois não é que o magricela tocava trombone? A partir daí tivemos alguns carnavais com o sopro do trombone pelo magricela.

Velhos carnavais. Para onde foi toda aquela gente que pulava no festim do galpão de madeira, vez ou outra sob a ação de um providencial lança-perfume? Desapareceram na voragem dos anos, mas deixaram descendentes. Quem são eles? Ora, essa massa humana seguindo por aí em blocos entusiasmados, revelando a verdadeira alma dessa gente meio louca conhecida como brasileiros.

Orson Welles dizia que escolheu filmar o carnaval porque  os brasileiros são um povo feliz. O grande cineasta nunca terminou o filme. Ela não sabia que o carnaval não tem fim.

Escrito por Ayrton Marcondes

13 fevereiro, 2018 às 8:27 am

escreva o seu comentário

As pontas do fio

escreva o seu comentário

“Todo fio tem duas pontas. A sabedoria nesta constatação óbvia está em ligá-las pois só assim teremos noção mais próxima da trajetória percorrida. A própria vida não passa de uma sequência que começa na ponta de um fio e termina na outra. Para entender um ser humano é preciso percorrer o fio da vida, do início ao fim”.

Essa a visão da vida na opinião do Otoniel, sujeito lido que detestava o próprio nome. Falava da fatalidade de não se ter a possibilidade de discutir com o pai, no momento zero da vida, as condições de início da trajetória no fio. Fosse possível teria chamado o pai à razão e, certamente, advogado outro nome. Otoniel citava o escritor Anatole France que, em 1908, publicou o livro “A Ilha dos Pinguins”. Viviam os pinguins em paz quando receberam a visita de um padre que os batizou. O batismo das aves não foi bem visto no céu. Instalou-se entre os santos a discussão sobre a validade de se batizar aves. A questão foi decidida pelo Senhor que converteu os pinguins em homens. A partir daí iniciou-se a civilização pinguínea nos moldes das humanas, com surgimento de hábitos humanos, paixões, crises etc. Prezava Otoniel no livro de France a ocasião do nascimento de uma criança. Na hora do parto indaga-se àquele que vai nascer se quer ou não vir ao mundo. A resposta do feto inclui explicações sobre características negativas das personalidades dos pais que por ele seriam herdadas. Assim o feto pode recusar-se a nascer.

Para Otoniel a ficção do escritor francês seria de grande valia caso se tornasse realidade no mundo em que vivemos. Se tivéssemos a oportunidade de decidir se viveríamos ou não muitas desgraças seriam evitadas. Para que percorrer toda a trama de uma longa vida, trazendo do berço uma constituição física e mental fadada ao fracasso?

Ontem encontrei-me com o filho de um amigo.  Eu o conheci quando tinha menos de dez anos de idade. Agora homem na faixa dos quarenta, vinha ele acompanhado de um filho. Eu o reconheci dada a semelhança com a figura do pai, hoje falecido.  Conversamos rapidamente e, ao me despedir, lembrei-me da filosofia do Otoniel que resumia o percurso da vida aos acontecidos entre as duas pontas de um fio. Pareceu-me estranho ter presenciado momentos iniciais da vida do homem a quem encontrei e, agora, a fase distante daquela. Mas, o que teria acontecido a ele ao longo desses anos, enquanto seguia a rota estabelecida pelo fio de sua vida?

Para Otoniel, aquele que detestava o próprio nome, o fio da vida não foi longo. Mas, deixou-me essa interpretação um tanto esdruxula da existência, da qual nunca me livrei por completo.

De fato, não há dia em que, ao abrir a janela do quarto e dar com as novas manhãs, eu não pense no fio de minha vida e a proximidade de seu ponto final. A extremidade do fio que marca o fim da minha vida a cada dia parece se aproximar mais velozmente.

Escrito por Ayrton Marcondes

7 fevereiro, 2018 às 2:17 pm

escreva o seu comentário

Tempo de reformas

escreva o seu comentário

Aguarda-se o resultado das tentativas do governo em convencer parlamentares a votar a aprovação da reforma da previdência. Há um consenso sobre a necessidade da aprovação de vez que o Estado não reúne condições de sustentar o pagamento das aposentadorias do modo em que estão. Por outro lado, a proximidade das eleições gera no meio político receio de consequências nas urnas sobre aqueles que se decidirem a favor da reforma.

Em pauta uma questão de consciência entre deveres em relação ao país e interesses particulares, pelo menos assim a questão vem sendo proposta. Obviamente, existem opiniões contrárias ao processo de reforma, mormente no que diz respeito a direitos do funcionalismo. Partidos de oposição advogam a não aceitação da reforma nos moldes em que está sendo pretendida. Por parte do governo tem havido predisposição a recuos no sentido de atender aos aclamos de grupos que seriam prejudicados com as mudanças a serem adotadas.

Mas, como isso se apresenta ao cidadão comum? Não se ignora que o país atravessa período no qual a escolha dos melhores caminhos em direção ao futuro nem sempre são claros. De todo modo fica a impressão da necessidade das reformas previdenciária e tributária. Não escapa ao cidadão comum a diferença entre tetos de aposentadoria que se mostram muito favoráveis aos que que exercem atividades públicas.

Como se sabe o fim do regime militar, em 1985, ensejou o restabelecimento de liberdades antes sufocadas pela ditadura. Reiniciaram-se as reuniões de grupos, antes dissidentes, agora sob o prisma do restabelecimento da democracia. Creio que terá sido em 1986 ou 1987 que compareci a uma reunião de um desses grupos, levado por um amigo de orientação marxista.

Na ocasião fomos agraciados com a palestra de um economista. Relatou-nos ele sua então recente viagem á Europa na qual fez contato com figuras proeminentes de seu setor. Impressionou-nos sua narrativa de que, na ocasião, via-se a Europa em situação complexa diante do envelhecimento de sua população. As necessidades geradas pelo envelhecimento representavam aos estados europeus custos com os quais não poderiam arcar. Na época esse quadro, ainda sob algum controle, mostrava-se preocupante com o passar do tempo: em futuro não distante não se sabia como ficariam as coisas.

Ainda hoje a dor de cabeça em relação à previdência permanece na Europa. Vários países já optaram pelas reformas previdenciárias. Com a expectativa de vida aumentando parece não haver outro meio de enfrentar o problema.

Naqueles idos dos anos 80 falávamos em um Brasil de população ainda jovem. Entretanto o nosso palestrante já nos advertia que não muito distante no tempo chegaríamos à situação que hoje se nos apresenta. Como enfrentá-la, garantindo a qualidade de vida da população, é o encargo que cabe ao governo e classe política do país.

Agressões

escreva o seu comentário

O ministro Gilmar Mendes é agredido verbalmente durante viagem aérea. No meio do xingatório alguém o classifica como “bosta” e “ca,gão”. O ministro não reage, apenas sorri. Agora solicita à Polícia Federal investigação sobre o caso. Quer identificar seus agressores para processá-los.

Não se ignora e o STF tem despertado crise de confiança em relação aos procedimentos de seus componentes. Decisões difíceis com divisão de opiniões entre os ministros hoje em dia são públicas dada a transmissão televisiva das sessões. Ao cidadão comum parecem demasiado longas as exposições de ministros ao justificarem seus votos. Para quem não entende do assunto as longas exposições, cheias de retórica, chegam a sugerir talvez algum exibicionismo. Será?

O que se fala por aí é sobre as disputas entre ministros. Existem aversões declaradas entre membros do grupo. Causa estranheza observar entre membros da mais alta corte do país debates talvez desnecessários. Há quem acuse ministros de agir segundo interesses pessoais.

Nos EUA a Suprema Corte funciona de modo secreto. Os nove ministros que a compõem mostram aversão à exposição pública. Há quem compare O STF brasileiro a um verdadeiro “reality show” no qual acontecem até mesmo bate-bocas entre ministros.

Entretanto, não se pode negar que o STF age com transparência, embora até isso seja discutido dados os já citados votos prolongados, excesso de retórica e uso de linguagem que nem todo mundo entende.

O falecido ministro Teori Zavascki afirmava que o STF passas por excesso de exposição. Talvez seja o caso de seus pares dimensionarem o problema e agir no sentido de evitar aquilo que muita gente afirma ser excessos de ego.

Não nos cabe opinar sobre o conhecimento de cada ministro nem acerca de suas qualidades enquanto julgadores. Entretanto, não custa lembrar de que ao longo de sua história o STF tem contado com a presença de ministros de alto gabarito que inseriram seus nomes da história do Judiciário do país. A um deles tive a honra de conhecer pessoalmente dado suas relações de amizade com meu falecido pai. Era o Ministro Nelson Hungria que ocupou a presidência do STF. Hungria é conhecido como um dos mais importantes penalistas brasileiros, autor de vários livros, entre eles os “Comentários ao Código Penal”.

Certa ocasião recebemos em nossa casa, no interior de São Paulo, a visita do grande ministro que viera ver meu pai sem, contudo, tê-lo avisado da visita. Encontrou-me Nelson Hungria sozinho em casa. Teria eu entre 13 e 14 anos de idade e, certamente, sem condições de sustentar conversa com o famoso jurista. Mas eis que ele conversou muito comigo, narrando recente viagem que fizera à Rússia, na época sob o regime ditatorial comunista. Contou-me o ministro ter sido confundido no aeroporto e passado por dificuldades na imigração. Segundo ele salvou-o um brasileiro de São Paulo que explicou á s autoridades quem era Nelson Hungria. A partir daí o ministro recebeu todas as atenções, nisso incluindo-se notícias e entrevistas em jornais.

Daquele homem alto e perspicaz guardei na memória a imagem do STF que não consigo adaptar o STF de hoje. Entretanto, por mais que se critiquem as ações de alguns membros do STF não há como não depositar nesse órgão ápice do Judiciário a confiança de que sempre foi merecedor.

Infelizmente esse respeito tem decaído nos últimos tempos. Que o digam as marchinhas carnavalescas cantadas por aí cujas letras trazem citações nada elogiosas a ministros da mais alta corte do país. ministri

Temores na velhice

escreva o seu comentário

Quando se fica velho? Não existe data marcada. Aos cinquenta, sessenta, aos setenta, depende de cada um. Há quem diga que a velhice começa quando a dor aparece.

Pesquisa do Datafolha informa que os brasileiros não temem a morte. O s temores dos idosos relacionam-se com dependências física, mental e econômica. Existe o horror a tornar-se dependente, não ao de simplesmente morrer.

Tornar-se dependente de alguém é de fato um horror. A dependência física é terrível, seja com a dificuldade ou impossibilidade de se locomover, sejam as limitações para alimentar-se ou cuidar-se sozinho. Em relação à dependência mental eis, entre outros, o fantasma da Doença de Alzheimer. O progressivo apagamento das memórias e a triste condição a que se é levado no período final da doença realmente aterrorizam.

Mas, em nosso país a dependência financeira talvez seja a que mais precocemente assuste. O problema está ligado à previdência e aposentadoria. Ao parar de trabalhar o aposentado passa a contar, mensalmente, com valores muito inferiores aos que recebia enquanto em atividade. Por outro lado, sabe-se que o Estado de modo algum pode arcar com os custos da previdência, daí a urgente necessidade de reformas nesse setor. Entretanto, não há como resolver o problema da queda de padrão de vida entre os aposentados. Idoso e sem condições de continuar na ativa resta ao idoso enfrentar situações que chegam a ser humilhantes. A queda de padrão acontece justamente no momento em que surgem os inevitáveis problemas de saúde, consequentes ao desgaste do organismo.

Medo da morte? Talvez o resultado da pesquisa, negando o medo da morte, se relacione com algum conformismo diante do inevitável. Aos setenta anos de idade pode-se olhar retrospectivamente ao passado e constatar a proximidade do fim. O peso de temores como os já apontados, a chegada de limitações tantas vezes irreversíveis, as dificuldades de superação de obstáculos antes mais facilmente transpostos, a ameaçadora possibilidade de dependências inaceitáveis, tudo isso concorre para pelo menos um olhar mais sereno em relação à morte.

Semana passada faleceu um professor de quem fui aluno em meu curso de graduação. Fora excelente profissional ao longo de sua vida, preparando gerações de alunos para o futuro exercício de suas profissões. Já entrado em anos o professor foi subitamente vitimado por um AVC que o prostrou ao leito, tirando dele todo o controle sobre si mesmo. Nesse estado permaneceu por poucos meses até que a morte colocou fim a seu sofrimento.

Há pouco tive a oportunidade de ver uma fotografia do professor, já em seu período final de vida. Ao vê-la lembrei-me do homem em atividade, ministrando suas aulas em laboratório, pleno de energia e longe de suspeitar qual seria a natureza de seu fim de vida. O contraste entre minhas lembranças e a dura realidade mostrada na fotografia impactou-me.

O fim da vida em idades mais avançadas reserva situações das quais queremos a todo custo ser poupados. Talvez por essa razão a morte nos surja como a boa amiga que figura no horizonte para colocar fim ao sofrimento. Mas, enquanto ela não vem o que nos resta é torcer para uma vida longa e boa, longe dos temores que tanto nos incomodam.

A náusea

escreva o seu comentário

Dia de julgamento do ex-presidente Lula. Ele esbraveja, protestando contra o que qualifica como julgamento político. Seus seguidores vivem desesperadamente o momento de transe. Do outro lado dedos acusadores se levantam. Quer-se o ex-presidente não só condenado como preso.

Lula faz o que sabe de melhor. Sua imensa capacidade de persuasão é propagada por todos os ventos. Dizendo-se vitima das elites que querem destruí-lo veste a camisa dos pobres e trabalhadores de quem se qualifica como legítimo representante. Propaga que as elites não podem aceitar alguém vindo de baixo.

Mas, existem as acusações de corrupção. Avolumam-se acusações de vantagens oferecidas em troca de propriedades e dinheiro. Mensalão, petrolão etc. Lula estaria por trás do imenso processo de corrupção que arrastou o país à pior depressão de sua história.

Enquanto isso a vida segue com seus infortúnios. A miséria das classes menos favorecidas permanece inalterada. Os constantes problemas relacionados à saúde, segurança etc. só fazem crescer. Para além dos discursos tão impactantes uma realidade bastante triste persiste.

Publica-se que no Brasil cresce o número de bilionários. A fortuna dos cinco maiores bilionários do país equivale à renda somada de 100 milhões de brasileiros. O quinto bilionário da lista é proprietário de 27,5 bi; o primeiro de mais de 100 bi.

Diga-se o que quiser, mas não existe perspectiva de que a desigualdade venha a desparecer tão cedo. De modo que assistir a tudo o que hoje se passa no país passa a ser motivo de náusea. Não se acredita em ninguém. Pouca gente escapa. Não se trata de crise de confiança.  Está-se vivendo “a desconfiança”.

Escrito por Ayrton Marcondes

24 janeiro, 2018 às 1:29 pm

escreva o seu comentário

Naquela noite

escreva o seu comentário

Pertenciam ao tempo em que se viajava na boleia de caminhões. Não porque precisassem. Eram filhos bem-nascidos e tinham algum dinheiro.  Mas, o convite para uma festa reunia-os em qualquer meio de locomoção.

Chegaram ao anoitecer. O caminhão estacionou na rua de terra, defronte casa de comércio. Um deles pulou da carroceria para obter informações sobre Santana. Onde ficava Santana? No Sul de Minas, uns 30 km à frente na estrada de terra. Ali no Rio Preto que se cuidassem para não seguir direto na estrada que ia dar em São José. No trevo, virar à esquerda e seguir adiante, logo encontrariam Santana.

Bebiam cerveja, cantavam felizes. Iriam à festa. Meu pai sentenciou que era perigoso aquela moçada bebendo em cima do caminhão. Recomendou cuidado à rapaziada. Um deles deu de ombros e sorriu naquele “Deus tá comigo”.

Não sei dizer que horas da madrugada seriam quando ouvimos bater à porta de nossa casa. Meu pai levantou-se e deu com um dos rapazes. Acontecera um desastre. Um deles bebera muito e, na volta, caira do caminhão. Batera a cabeça numa pedra, perdera a consciência e estava mal.

Foi meu pai quem disse aos rapazes que, em verdade, o companheiro de festa estava morto. Seguiram-se os momentos de incredulidade, a busca de um telefone para avisar à família, o desespero dos amigos.

Minha curiosidade de menino me levou à carroceria do caminhão. Encontrei um jovem ensanguentado. Estava deitado e tinha no rosto aspecto sereno. A morte o colhera de improviso, inesperadamente.

Foi o primeiro cadáver que vi. Numa me esquecerei daquela noite. Nem da morte que entrava subitamente na minha vida para nunca mais desaparecer.

Escrito por Ayrton Marcondes

22 janeiro, 2018 às 10:52 am

escreva o seu comentário

Velhice

escreva o seu comentário

Chega pra todo mundo, basta aguardar. Muita gente se declara velho antes da hora. Mulher de cinquenta, em forma, bonita, sedutora, reclamando da velhice que, aliás, para ela ainda não chegou. Antecipa sofrimento.

Mas, dá tristeza observar certos capítulos da velhice. Eis o caso de Pelé que é e sempre será notícia. Nós que o vimos jogando nos estádios, guardamos dele as maravilhosas atuações de que era capaz. Dizer que era um gênio é pouco. Poucos humanos terão nascido com a perfeita compleição física do “Rei”. A combinação de genialidade, esplendor físico, habilidade e outras características fez dele o que se tornou para os amantes do esporte.

De modo que não há como não engolir em seco ao ver fotografias atuais desse senhor de 77 anos que um dia abalou os estádios, admirado em todo mundo. Com a saúde em crise o grande jogador segue adiante, admirável como sempre. Mas, sucumbindo, como os demais mortais, aos caprichos da velhice.

Ontem um casal de idosos, aos 71 anos, foi atropelado por um carro na velocidade de 120 Km/h num lugar onde a permitida era a de 60 km/h. As fotos do casal mostram duas pessoas aparentemente felizes e com alguns anos ainda por desfrutar. A mulher que dirigia o veículo feriu-se gravemente. Mas, nem por isso deixa de ser absurdamente responsável pela morte do casal. Nada mais triste que a interrupção violenta de trajetórias.

Um amigo, militante de esquerda, tem-se mostrado sensível a coisas que antes negava ou abominava. Confessou-me atualmente pensar muito na religião, coisa antes inaceitável. Aterra-o o fim da vida e o que está por vir após a morte. Provoco o amigo, perguntando sobre o que teria acontecido ao ateu inveterado de outros tempos.

O amigo me responde que se trata da velhice. Há nela algo insondável que nos leva a curvar-se sobre o nosso espirito, interrogando-nos sobre o significado de tudo isso. Aconselhe-o a se distrair mais, vida mais leve. Reponde que não sabe se isso será possível.

Agora Pelé se levanta da cadeira, aos 77 anos, e corre em direção ao gol.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 janeiro, 2018 às 11:37 am

escreva o seu comentário

Sempre Canudos

escreva o seu comentário

Não sei se daqui a mil anos não mais e falará sobre Canudos. O fim do arraial, em 1897, permanece vivo nas memórias e vez ou outra reaparece no noticiário. Seguem por aí as muitas interpretações sobre a destruição pelo Exército das forças de Antônio Conselheiro. Os episódios finais relacionados à terceira e quarta expedições continuam entusiasmando pesquisadores e estudiosos.

Mas, este é o Brasil, pátria onde tudo acontece. No momento, a expectativa diz respeito ao julgamento do ex-presidente Lula que está para acontecer. O falatório em torno do caso é grande. Lula se vitimiza, assumindo a posição de perseguido pelas elites. Faz muito bem seu discurso, arrasta atrás de si a confiança de milhares de seguidores que acreditam no que ele diz. Daí a preocupação das autoridades com as possíveis repercussões do julgamento de Lula. Movimentos de trabalhadores ameaçam retaliações. Recomenda-se o fechamento de prédios públicos no dia. No Rio grande do Sul o governo chegou a pedir reforço do Exército o que tem sido tomada como exagero.

Mas, o que Canudos tem a ver com isso tudo? Acontece que num pronunciamento o ex-presidente afirmou que um dos juízes que vai julga-lo é bisneto do general que invadiu Canudos e matou Antônio Conselheiro. O juiz se chama Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e na verdade é sobrinho-trineto do coronel - e não general - Tomás Thompson Flores. Thompson morreu em Canudos durante a ação do Exército no lugar. Mais: o coronel morreu em julho de 1897 e o Conselheiro só morreria em setembro do mesmo ano. Thompson Flores não poderia ter matado Antônio Conselheiro por ter falecido antes dele.

A política envolve um jogo de discursos nos quais inverdades são mais que comuns. Em busca de apoio e aprovação pública usam-se argumentos de toda sorte. Antônio Conselheiro é um ícone dado pertencer ao lado mais fraco e sua comunidade ter sido arrasada pelas forças do Estado. Ninguém enga isso. Mas, não por acaso o ex-presidente cita o Conselheiro. Agora o “neto” do “general” estará incumbido de mais um julgamento em nome das elites.