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Turismo nas profundezas
Na noite de 14 de abril de 1912 o RMS Titanic, navio de passageiros britânico, colidiu com um iceberg e naufragou. Com mais de 1500 pessoas a bordo o Titanic desceu a 3800 metros de profundidade e só anos mais tarde seus destroços foram encontrados a 600 km da costa do Canadá. Mas, desde o naufrágio, o Titanic passou a habitar o imaginário dos homens sendo costumeiramente citado. Para isso também contribuiu a realização do filme “Titanic”, dirigido por James Cameron. Através das imagens do filme, de 1997, os espectadores puderam acompanhar a dimensão da tragédia do grande naufrágio que até os dias atuais chama a atenção.
Desastres, acidentes e acontecimentos afins despertam a curiosidade popular. No caso do Titanic a curiosidade se mantém intacta ainda que passados mais de 100 anos desde o naufrágio. Daí existirem pessoas interessadas em visitar os restos do navio. Entretanto, é preciso lembrar das dificuldades de acesso ao local onde repousam, no fundo do mar. A profundeza de 3800 metros exige a fabricação de uma cápsula capaz de resistir a grande pressão da água no local. Mas, eis que essa cápsula já existe e por ela poderão descer ao fundo do mar algumas pessoas.
Naturalmente, o desejo de ver o Titanic só poderá ser realizado por gente abonada. O preço por pessoa é de cerca de 650 mil reais. E já existem muitos inscritos.
Tempos trás alguém me disse que daria tudo para ver a Terra do espaço. De fato, seria maravilhoso e já existem projetos em andamento para a realização de voos comerciais em torno da órbita terrestre. Mas, tudo isso exige boas condições de saúde, preparo e treinamento. No caso do Titanic o turista deverá preencher formulários e receber treinamento científico.
Por último há que se perguntar se será necessária alguma coragem para participar desse tipo de turismo. No caso da viagem espacial talvez as dúvidas sejam maiores, afinal trata-se de sair da Terra e retornar a ela. Por mais que a ciência tenha evoluído e as viagens espaciais aconteçam a bastante tempo é quase impossível não existir algum receio. Já o turismo em profundezas marítimas talvez não venha a ser tão seguro. Nosso imaginário povoado por cenas cinematográficas de submarinos presos nas profundidades e o desespero de suas tripulações não recomendam aventuras tão perigosas. Talvez nesse caso o melhor seja acomodar-se num confortável sofá e degustar um dos bons e antigos romances de Julio Verne.
Certas linguagens
Nunca fui à Alemanha, mas imagino as dificuldades que teria por não falar alemão. Aprendi um pouquinho de francês no ginásio, durante as aulas de Dona Clara. Era uma francesa que falava português com muito sotaque. Rígida, não admitia descaso em relação á língua mãe de seu país. Na primeira vez que li um texto para ela mostrou paciência, embora o semblante fechado. Como alguém poderia expressar-se tão mal na língua de Victor Hugo e Balzac?
Certa vez em Paris fui à igreja de Sacre Coeur e decidi voltar a pé ao hotel. Naturalmente me perdi, errando por ruas desconhecidas. Até que encontrei um francês e pedi a ele informações. Mas, os anos haviam se passado desde os tempos das aulas de Dona Clara. De modo que se travou ali um diálogo entre surdos o qual, surpreendentemente, acabou por resolver o meu problema.
Os excessos de comunicação a que somos diariamente submetidos proporcionam misturas de linguagens nem sempre concordantes. Torna-se, por vezes, difícil compreender o significado exato de muitas proposições. Veja-se o caso da internet na qual pululam termos importados, em geral em inglês, mas com significados diferentes dos habitualmente utilizados.
Fui criado em cidadezinha do interior na qual falava-se linguagem próxima ao chamado “dialeto caipira”. Além da pronúncia na qual os “r” se destacavam criavam-se ali abreviações, junções de palavras, mais que isso pronúncias incorretas de termos conhecidos. A isso juntava-se a grande velocidade em uso nas conversas nas quais as palavras meio que saiam encavaladas, sobrepondo-se. Eu falei essa língua até os meus catorze anos, quando sai de lá.
Pois bem. Há pouco eis que visito a cidade e encontro um velho amigo, colega do tempo de bancos escolares. Ele permaneceu no lugar e, exceto fisicamente, pouco mudou. De modo que lá veio ele com o nosso antigo ritual de linguagem e dizeres locais. Confesso que me esforcei, mas quase não o entendi. O verniz das cidades e leituras variadas havia comprometido minha língua mãe.
Despedi-me aborrecido. De repente era como se eu tivesse pedido uma parte de mim, soterrada por essa indesejável confluência de novos maneirismos que tanto nos confundem.
De lá para cá tenho me exercitado, buscando na memória o velho linguajar, forçando nos “r”. Luta inglória na tentativa de tornar a ser caipira.
Morre Maradona
Há pouco tempo, em um almoço, falavam sobre Pelé. Gente mais nova que conhecera Pelé através de vídeos sobre seus gols. A certa altura entrei na conversa e disse que vira Pelé jogar. Uma moça perguntou: ao vivo, no campo?
Sim, eu vira Pelé jogar. No Pacaembu, em três inesquecíveis ocasiões. Então as pessoas me olharam com espanto. Era como se seu tivesse o privilégio de um encontro com Deus. Aliás, em termos de futebol, foi isso mesmo.
Diego Armando Maradona morreu hoje. Confesso que já cheguei a odiar o maldito Maradona. Ele era o inferno em campo naquele tempo em que a rivalidade com a Argentina era bem maior que nos dias de hoje. Houve o jogo do Brasil contra a Argentina, na Copa do Mundo de 1990. O Brasil jogou melhor no primeiro tempo que terminou empatado em zero a zero. Maradona não estava bem fisicamente, permanecendo meio parado na região mediana do campo. Mas, bastou a ele um único instante de genialidade. Recebeu abola, livrou-se de vários defensores brasileiros e colocou Caniggia de frente para o gol. Gol da Argentina que venceu por um a zero. Jogada genial de um gênio do futebol.
O silêncio que em seguida se abateu sobre São Paulo - e o Brasil - foi impressionante. Talvez maior tristeza só mesmo com a derrota da Copa de 50 à qual não assisti. Há um programa de TV no qual o entrevistador pergunta sobre qual a primeira impressão de sua vida que o entrevistado guardou na memória. Pois, se me perguntassem, responderia que era a da sala de minha casa no dia da derrota para o Uruguai. Eu tinha três anos e me lembro das pessoas em torno do rádio e dos lamentos no momento do segundo gol do Uruguai. Vi minha mãe, que nunca gostou de futebol, dizer que o Brasil ainda ia virar. Não virou e até hoje fala-se sobre o trauma nacional provocado pela derrota de 50.
Maradona exterminou-nos com aquela jogada que resultou no gol da Argentina em 90. Mas, ele foi muito mais que isso. Com olvidar aquela absoluta atuação contra Inglaterra em que ele fez o fabuloso gol “Mano de Deus”? E dos seus tempos áureos no Napoli?
Maradona foi um ser de exceção. Mais que artista foi um feiticeiro. Maravilhoso com a bola nos pés. Infernal. Elegeram-no Deus ao que ele dizia ser apenas Diego. Afirmava ter linha direta com o “Barba” apelido que atribuía a Deus.
O mundo se comove diante do esquife de Maradona. A escassa galeria de ídolos a quem veneramos perde um grande ícone. Restam-nos suas imagens que nos acompanharão para sempre.
Quando chega a hora
Não sei se ainda se fala, mas, no passado, comentava-se que cada um tem a sua hora marcada e, quando ela chega, babau.
Há casos em que o dito popular se aplica sem retoques. Trata-se de mortes inesperadas, aparentemente absurdas. Trata-se de situações sobre as quais pergunta-se por que, justamente, aquela pessoa estaria naquele lugar, naquele instante, quando algo absolutamente inesperado desencadeou-se e a atingiu. Seja o caso do cidadão que perde a vida atingido pelo tronco de uma árvore que caiu, do rapaz que dormia e recebeu na cabeça a bala perdida que roubou sua vida. Casos estranhos que fazem pensar que talvez aquela pessoa estivesse marcada para encontrar-se com a morte numa circunstância ocasional, inesperada. E fatal.
Dias trás um caso despertou grande atenção, sendo muito divulgado e comentado. Aconteceu a praia de Pipa, Rio Grande do Norte. Nessa praia existem falésias que chamam a atenção pela beleza de suas cores. Pois estavam na praia de Pipa um casal e sus criança de poucos meses. Devido ao Sol ficaram os três junto das falésias, abrigando-se na sombra. Eis que, inesperadamente, parte do morro ruiu, sendo os três soterrados e mortos.
O home que morreu tinha a história de ter abandonado um bom emprego para viajar pelo mundo. Ao voltar fixou-se em Pipa onde tornou-se proprietário de uma pousada. Casou-se e tiveram uma criança, justamente a que estava com eles no momento do acidente.
Eram ele e mulher ainda jovens e o desparecimento de ambos provocou grande comoção. Enfim, estavam no lugar errado, no instante errado, daí terem morrido. É como se a tragédia fora marcada com antecedência, para aquele lugar, naquele instante, para justamente aquelas pessoas.
O sentimento de horror despertado por tragédia de tal magnitude funciona como aviso para a fragilidade da existência humana e a falta de recursos diante de acidentes inesperados.
Há quem diga que se deve, sempre, estar preparado para a morte. Entretanto, enquanto vivos, viva a vida.
A imortalidade
No filme The Old Guard Charlize Teron interpreta Andy, mulher que chefia um pequeno grupo de pessoas que têm a virtude da vida eterna. O grupo se envolve em ações como mercenários, sendo pagos pelos seus serviços.
Andy afirma não se lembrar de sua idade. Fato é que, em seu longo passado, participou de fatos memoráveis na historiada humanidade. No começo ainda não conhecera os atuais integrantes do grupo. Em sua companhia havia um outra imortal, Quynh. Juntas agiram durante alguns séculos. Entretanto, por não morrerem e graças às suas extraordinárias habilidades muitas vezes foram consideradas como bruxas. Enforcadas ou queimadas vivas, ainda assim retornavam à vida. A situação perdurou até que Quynh foi aprisionada dentro de uma armadura de metal da qual seria impossível escapar. Feito isso foi jogada ao mar. Sendo imortal, não poderia morrer, nem escapar. Estava, pois, condenada a uma prisão na qual passaria os séculos subsequentes.
O horror da imortalidade reside, justamente, na impossibilidade de vir a morrer. Vampiros são seres malignos e infelizes porque dependem do sangue para se alimentar e são imortais. Na ficção os seres imortais são sempre infelizes porque vivem apartados da sociedade. Eles simplesmente não envelhecem. Por essa razão não contam com a vida em comum com as demais pessoas. Afinal enquanto o envelhecimento é normal para o comum dos mortais o mesmo não acontece com os imortais. Verdade que nas tramas vampirescas a necessidade da vitória do bem sobre o mal impõe a presença de perseguidores os quais dispõem de estacas de madeira e outros meios para encerrar a carreira e a existência dos vampiros.
Poucas pessoas logram passar dos 100 anos de idade, falecendo antes. Com a evolução da ciência e a abertura de novos campos de pesquisa na genética e produção de medicamentos muito tem se falado sobre meios de prolongamento da vida. Driblar a morte é impossível, mas dilatar o tempo de permanência no planeta é desejo de muita gente. Há que se levar em conta os perigos inerentes a esse tipo de desejo. De todo modo o homem não surgiu na Terra para tornar-se imortal. A imortalidade está aí para ser usada como tema em obras de ficção e divertir-nos ao acompanhá-las. Na mais que isso. Ainda bem.
Tempestade
Joe Biden foi eleito presidente dos EUA. Donald Trump, atual presidente, não foi reeleito e ainda esperneia, alegando fraudes na apuração dos votos. Mas, entregará o cargo em janeiro, a ele não restará outra opção.
Existem expectativas em reação a Biden. Uma delas é quanto à política ambiental que seu governo adotará. Trump pouco se lixava para a questão ambiental. Negou-se assinar acordos e pressionou países em relação à preservação do ambiente.
Não exatamente por conta de Trump, mas como resultado de progressiva e maciça agressão ambiental em todo o mundo tem-se verificado transformações perigosas para o futuro não só da humanidade como de toda a vida existente no planeta. Com frequência são citados problemas como o efeito estufa, a poluição, o degelo das calotas polares, chuvas ácidas etc. Mas, de certa forma tudo isso parece distante ao cidadão comum. Na complexa trama de problemas que cercam a luta pela sobrevivência questões ambientais ligadas ao que acontece em todo o planeta nem sempre merecem a atenção. É como assistir as cenas de um grande incêndio pela televisão. Se um prédio pega fogo na Índia vemos as imagens, ficamos impressionados, mas, convenhamos, o incêndio não é no quarteirão em que moramos.
Entretanto, tudo o que acontece nos afeta diretamente. Não importa achar que a elevação do nível dos mares um dia afetará apenas as populações que vivem nas orlas marítimas. Mas, se eu não moro no litoral que tenho a ver com isso, por que me preocupar?
Se há algo de muito ruim que governos como o de Trump devem ser responsabilizados é justamente o fato de negar problemas inegáveis, levando pessoas a desacreditarem naquilo que a ciência tem como certa.
Neste exato momento o Brasil está sob pressão mundial no tocante à preservação da Amazônia. Responde-se a isso alegando que países destruíram suas florestas e agora acusam o Brasil sem razão de ser. Em meio a isso tudo espera-se pela posse de Joe Biden que já tem avisado sobre a ratificação de acordos ambientais e mais dureza em relação à questão amazônica.
Vem tempestade aí, gente.
Depois da tempestade
Ainda em pauta o resultado das eleições norte-americanas. A incontida satisfação pela vitória de Joe Biden escancara-se no ambiente jornalístico. Obrigados à imparcialidade jornalistas fazem o que podem para disfarçar a alegria pela derrota de Trump. Mas, existem exceções. Jornalistas brasileiros em cobertura nos EUA mostram-se eufóricos, referindo-se ao fim de prolongado período no qual tinham coisas entaladas nas gargantas.
Manchetes de jornais destacam o fim da era Trump. Uma das manchetes de primeira página refere-se ao “fim da escuridão”. Celebra-se por toda parte. Mas, Trump afirma não ter sido derrotado e apela para a Justiça, alegando fraudes na apuração dos votos.
Nesses dias respira-se clima de alívio pela vitória da democracia. Fala-se muito que, no fim das contas, o bom senso prevaleceu. Mas, estaria mesmo a democracia ameaçada?
Sempre citada a declaração de Churchil afirma que a democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela. De fato. Quem viveu sob regimes ditatoriais, extremismos etc. conhece perfeitamente a relação entre democracia e liberdade. Não se tem liberdade fora da democracia e a vida torna-se muito difícil quando cessam os direitos individuais. Por mais que certas correntes procurem negar o período ditatorial no país só quem é por demais surdo e cego pode acreditar em tal versão. Lembrai-vos daqueles dias ó incautos e negacionistas.
Fato é que nos últimos tempos viu-se o renascimento de ideologias que se supunha presas ao passado. Tendências fascistóides e ditatoriais emergiram como se a humanidade desconhecesse os perigos a elas inerentes. O surgimento de políticos causadores de perigosas polarizações, dividindo populações e proporcionando o erguimento de extremismos veio à luz sem nenhum disfarce. Talvez por essa razão a derrota de Trump tenha sido tão comemorada. É ele um expoente de práticas das quais se tem medo e cujas consequências podem afetar a vida de pessoas em todo o planeta.
Não há como negar de que o ar parece mais leve nos dias que correm.
Ainda as eleições
Impossível ser isento diante da massificadora onda de notícias sobre as eleições americanas. Donald Trump esmera-se num jogo considerado sujo, proclamando fraudes na apuração. Mas, aparentemente, não existem indícios de fraudes. A atuação do presidente gera reações perigosas. Seus seguidores acreditam, incondicionalmente, no que ele diz. E reagem. Não se sabe o que acontecerá quando a já prevista vitória de Biden se consolidar.
A polarização norte-americana é endêmica no mundo. Repete-se aqui, entre nós. Entretanto, a quase certa vitória de Biden joga um pote de água fria na atual política externa brasileira. Com Biden no governo do país mais poderoso do mundo manter a atual política externa poderá resultar num completo isolamento do Brasil.
Mas, o que tem a ver o cidadão de um país emergente, como o Brasil, com o resultado de eleições em outro país? Fato é que pessoas não se dão ao trabalho de ponderar que esse jogo, entre cachorros grandes, tem consequências enormes sobre o prato de comida de milhares e milhares de pessoas. Os reflexos sobre a economia global - e do país - são grandes e imediatos. Vejam-se, por exemplo, as oscilações no valor do dólar, na Bolsa de Valores e na retirada de investimentos estrangeiros no país.
Confúcio afirmou que ao examinarmos os erros de um homem conhecemos o se caráter. Nos tempos atuais não será difícil termos ideia sobre o caráter de muita gente que concorre a cargos públicos em eleições.
Eleições americanas
Seguem as notícias sobre as eleições americanas. Joe Biden e Donald Trump até agora têm chances de vitória. As urnas trazem resultados favoráveis a Biden, mas nem tanto. Nos EUA um presidente é eleito se conseguir 270 cadeiras no colégio eleitoral. Diferente do que acontece entre nós: no Brasil o presidente é eleito pela maioria de votos.
No filme “Vassalos da Ambição” (The best man), de 1964, tem-se ótima encenação do processo de escolha de candidatos pelos partidos à presidência da República. O filme é dirigido por Franklin J Shaffner e conta com os atores Henry Fonda e Cliff Robertson como adversários na indicação. O texto e diálogos são de autoria do grande romancista Gore Vidal.
Henry Fonda é Willian Russel, homem que coloca seus princípios acima de tudo. Esconde ser ateu, o que é grave eleitoralmente, e tem, no seu passado, histórico de traições à sua mulher. Entretanto, ela acaba concordando em aparecer ao lado do marido para não atrapalhar seu projeto político. Cliff Robertson é Joe Cantweel, prático e mais agressivo.
A trama se desenrola em torno dessa disputa. As coisas parecem ser mais favoráveis a Russel que dispõe de informação capaz de acabar com as pretensões de seu adversário. Trata-se de casos de homossexualismo do candidato. Os membros da equipe de Russel insistem para que ele divulgue o fato e consiga a indicação. A partir daí será preciso assistir o filme para saber o final.
Em “Vassalos da ambição” tem-se um quadro bastante real das estratégias de ação dos políticos norte-americanos. A tal “ficha limpa”, tão relevante, parece não fazer parte do perfil dos candidatos. É o que estamos a ver, hoje, no noticiário em que o presidente Trump parece disposto a tudo para continuar na presidência. Embora com chances reais de poder vencer ele ameaça parar a apuração e apelar da a Suprema Corte. Interesses bem distantes dos professados pelos eleitores de ambos candidatos afloram num momento em que o que vale é apenas a vitória.
No Brasil acompanha-se com preocupação o desenrolar das apurações. A torcida do atual presidente brasileiro por Trump é conhecida. Mas, pergunta-se, sobre o que se seguirá no país, e na América Latina, caso Biden, o democrata, vença.
A censura
Aconteceu numa viagem de bondinho pela Estrada de Ferro Campos do Jordão. O bonde saia de Pindamonhangaba em direção a Campos do Jordão. Nós, moradores de Santo Antônio do Pinhal, desembarcávamos na Estação de Eugênio Lefreve, no meio da Serra da Mantiqueira. Da estação até Santo Antônio são 4 Km de distância.
Eram os anos sessenta do século passado. Ainda não existia a estrada asfaltada que hoje liga o Vale do Paraíba a Campos do Jordão de modo que o bondinho funcionava como acesso entre as duas regiões. Havia, sim, uma estrada, mas de trânsito difícil. Muitas curvas na serra, sem asfalto, íngreme e, por vezes, intransponível no período de chuvas. Naquela época era grande a produção de produtos hortifrutigranjeiros na região de Santo Antônio. Esses produtos eram transportados, por caminhões, aos mercados de São Paulo. As dificuldades de acesso pela estrada em períodos chuvosos, provocava a paralisação dos transportes. Quantas vezes teremos visto caminhões carregados com cargas a apodrecerem nas suas carrocerias.
Certa ocasião íamos, eu e meu pai, em viagem de bonde na direção de Santo Antônio do Pinhal. A última estação, antes da subida da serra, é a de Piracuama, que ainda existe. Ao chegar ela, avisaram-nos de que deveríamos desembarcar por conta de problemas com o bonde, se bem me lembro defeito nos freios. Anoitecia. A única hipótese plausível seria a de passar a noite sentados nos bancos da plataforma da estação.
Assim foi feito até que, certa hora, passou pela estrada o Paulino tropeiro. Ao vê-lo meu pai gritou por ele que de pronto nos reconheceu. O Paulino comandava sua tropa de burros com os quais realizava o transporte de cargas na região. Era um homem corpulento, mas não gordo. Levava sempre, na altura do pescoço, um lenço vermelho com o qual cobriria a face em momentos de muita poeira. Para mim a figura do Paulino será sempre a de um homem sobre seu cavalo, com o lenço vermelho no pescoço.
Foi o Paulino quem nos salvou de passar a noite na plataforma da estação. Sobre o lombo de burros eu e meu pai, fizemos a travessia da serra numa noite sem luar. Haveria muita coisa a relatar sobre essa estranha viagem numa serra inóspita, na escuridão. Mas, por agora, basta-me lembrar de um momento que guardei para sempre na memória: íamos, serra acima quando, em certo momento e diante do desconforto que experimentávamos, meu pai disse ao Paulino:
- Paulino você já se está acostumado com isso.
Ao que o outro retrucou:
- Meu senhor, nessa vida a gente só se acostuma com o que é bom…
Lembrei-me disso ao ler que um jornalista do site Intercept se demitiu ao ter um artigo censurado e não publicado. O tema do artigo eram atividades do candidato Biden à presidência dos EUA e seu filho. Sendo negativo e às vésperas da eleição o artigo fora censurado pelo fato de que, segundo o demitido, o Intercept ser favorável à vitória de Biden.
Entre 1964 e 1985 o Brasil foi governado por militares. Nesse período, conhecido como Ditadura, foi abolida a liberdade de expressão. A censura agia sobre todas as formas de expressão. Jornais, meios de comunicação em geral, atividades musicais etc. só chegavam ao público após passarem pela censura. Foi a época em que o jornal “O Estado de São Paulo” publicava em suas páginas receitas de alimentos no lugar de textos censurados.
Vivia-se, no país, a censura. Havia medo de falar em público sobre assuntos que seriam comprometedores. Esquerdistas e comunistas, contrários ao regime, eram punidos. Mas, em tantos anos de censura pode-se dizer que nos acostumamos com ela?
A resposta a isso depende de cada um. Mas, é difícil, senão impossível, acomodar-se a algo que fere a liberdade de expressão. De modo que fico com o que aprendi naquela noite, na estrada de terra da Serra da Mantiqueira quando o Paulino, com a sabedoria do homem simples que era, sentenciou:
- A gente só se acostuma com o que é bom.