Cotidiano at Blog Ayrton Marcondes

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O gesto de Rodrigo Caio

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De repente o jogador Rodrigo Caio chega às manchetes, despertando o interesse público. O fato tem gerado muita discussão: no jogo entre São Paulo e Corinthians, no último domingo, Rodrigo Caio envolveu-se numa disputa de bola com o corintiano Jô. No lance o goleiro do São Paulo foi atingido e Jô recebeu o cartão amarelo que significaria sua exclusão do próximo confronto entre as duas equipes. Entretanto, jogo terminado, Rodrigo Caio procurou o árbitro para dizer que Jô não atingira o goleiro Renan Ribeiro. Ele, Rodrigo Caio atingira o goleiro daí o cartão dado a Jô não ter sentido. Diante disso o árbitro retirou o cartão amarelo do corintiano que poderá jogar contra o São Paulo no próximo jogo, decisivo para a classificação de um dos dois times.

Não há nada há se contrapor à atitude de Rodrigo Caio. Tamanho ato de honestidade só pode e deve ser elogiado. A honestidade de um homem revela seu caráter. Rodrigo Caio agiu em nome de sua consciência e honestidade, ponto final. Mas, é futebol…

Destarte que daí por diante o gesto de Rodrigo Caio vem despertando toda sorte de palpites e discussões. Num programa esportivo de rádio dois conhecidos radialistas se desentenderam seriamente sobre o assunto. Entre os próprios companheiros de time de Rodrigo Caio estabeleceu-se a divergência. Há os favoráveis à atitude dele enquanto outros a recriminam de modo algum podendo concordar como favorecimento da equipe adversária. O São Paulo perdeu por dois gols e precisa virar esse placar para se classificar, isso jogando no campo do adversário. Como disse um dos jogadores do São Paulo: prefiro ver a mãe dos adversários chorando que a minha.

Nos comentários correntes alarga-se o espectro da ação de Rodrigo Caio. Pergunta-se, por exemplo, se seria correto alguém encontrar uma mala de dinheiro com a identificação do proprietário e não a devolver. Muitas outras situações têm sido propostas no sentido de compará-las com a possível omissão de Rodrigo Caio, caso tivesse acontecido.

Confesso que enquanto torcedor preferiria que Rodrigo Caio tivesse se “esquecido” de avisar ao árbitro. Jô é centroavante competente e seria melhor não o ter do lado contrário no jogo do próximo domingo. Mas, não há como recriminar Rodrigo Caio. O rapaz agiu em acordo com seu caráter e consciência e isso encerra o assunto.

O fantasma de 50

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Vez ou outra um canal da TV paga exibe um filme sobre a Copa de 50. Não resisto a rever as cenas do Maracanã, com mais de 200 mil pessoas, na final do Brasil contra o Uruguai. A cena de Obdulio Varela correndo na direção do árbitro após o gol do Brasil é emblemática. O uruguaio queria -  e conseguiu -  esfriar o ânimo dos brasileiros. Recomeçasse o jogo em seguida e o Brasil teria massacrado o Uruguai, conforme afirmou Varela posteriormente.

No final, como se sabe, o Uruguai venceu por 2X1 e tornou-se campeão mundial. Considerada a maior tragédia acontecida no país a Copa de 50 só começou a ser menos valorizada após as muitas conquistas de nosso futebol nos anos que viriam.

Discute-se sobre a idade em que crianças guardam recordações que podem ser relembradas mais tarde. Em geral nos esquecemos de fatos acontecidos quando somos muito pequenos. Entretanto, posso dizer que o fato mais longínquo do qual guardo memória é justamente sobre a final de 50. Eu teria quase 4 anos de idade. Naquela época o rádio era o meio de comunicação que se tinha nas casas. Na sala de minha casa havia uma rádio vitrola na qual à sintonia das emissoras acrescentava-se a reprodução de discos de vinil. No dia do jogo reuniam-se algumas pessoas em torno do rádio, ouvindo a narração da partida. É clara na minha mente a imagem de minha mãe dizendo, após o gol de Ghiggia, que o Brasil ainda ganharia o jogo. Também inesquecíveis as faces das pessoas após o fim do jogo. Havia consternação. Aquele país atrasado perdera oportunidade única, coisa que a mim escapava na época. Mas, era a derrota.

Alguns anos tarde andava eu pela Rua São Bento, em São Paulo, em companhia de meu irmão. A certa altura ele parou e disse, apontando para um homem que atravessava a rua:

- É o Bauer. Veja como está moço.

Bauer já se aposentara do futebol. Fora o lateral da seleção brasileira no jogo contra o Uruguai. Estivera em campo naquela fatídica partida. Considerado o melhor jogador da Copa de 50 nem ele conseguira, ao lado de Jair, Zizinho e outros, evitar o grande debacle.

Os mais jovens não saberão o peso que a derrota de 50 teve sobre os brasileiros. Na Copa de 70, antes do jogo contra o Uruguai, assustava-nos o fantasma de 50. Felizmente vencemos e fomos campeões do mundo.

Haverá um tempo em que o jogo de 50 terá sido esquecido. Então, o fantasma da Copa perdida enfim poderá descansar em paz. A lembrança daquele Brasil governado por Dutra resistirá apenas nos manuais de história. Talvez, então, as lágrimas e a tristeza que torturaram milhões de brasileiros se apaguem para sempre. Restarão, contudo, as imagens de desespero cravadas nas faces daqueles que foram ao Maracanã para ver um Brasil campeão. Ainda poderão ser vistas nos filmes sobre a nossa gente.

Governo paralelo

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Afirma-se que o atual caso de corrupção no Brasil é o maior na história da humanidade. Deve mesmo ser. As cifras de desvios são de fato inacreditáveis.

Tanto que ao ouví-las corre-se o risco de tomá-las como peça de ficção. Aliás, não creio que nem o mais inventivo dramaturgo se arriscaria a escrever peça cujo enredo seria semelhante ao desdobramento da crise brasileira. O público provavelmente sairia do teatro antes do fim do primeiro ato: excesso de invenção, ficção exagerada?

Mas, infelizmente, eis ai um caso em que a realidade ultrapassa os moldes ficcionais. Depoimentos de conteúdo inacreditáveis deixam-nos estarrecidos. Para o homem comum cujas despesas mensais a custo são quitadas os números da ladroagem soam inacreditáveis. No exercício da ladroagem a unidade é o milhão.

Estabeleceu-se no país o culto pelo desvio de grandes dinheiros. Os atores desse crime não se locupletam com pouco. Por detrás dessa orgia criminosa funciona uma bem montada organização reguladora de todas as ações. Tão organizada que nos faz perguntar: afinal quem corrompe quem nesse mar de lama?

A impressão que fica é a de que a grande empreiteira comprou todo mundo. Inudando o meio político com haveres ilícitos pode executar manobras segundo seus interesses. Financiando campanhas eleitorais e dando dinheiro a rodo a importantes personagens da vida pública manteve-os sob controle. Tão alta a hieraquia dos políticos mancomunados com a empreiteira que não é demais falar-se em governo paralelo. A empreiteira fez-se governo.

Por outro lado há que se considerar a atuação dos políticos envolvidos ao exigir sempre mais da empreiteira. A via de mão dupla resultou no desvio de milhões compartilhados através do pagamento de propinas.

Ficam as imagens dos diretores e funcionários da empreiteira em suas delações. Entram em nossas casas exposições claras dos mecanismos de corrupção sempre ditas com enorme naturalidade. Desnuda-se um mundo de falcatruas. Pouco importa se as montanhas de dinheiro público roubados serviriam para melhorar a vida de milhões de brasileiros. A todos eles o que importa é apenas o grande jogo, doa a quem doer.

Ainda o assédio

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Só mesmo Donald Trump ao atacar a Síria com mísseis consegue desviar a atenção do que se fala nas redes sociais: o assédio do ator  da Globo sobre a figurinista da mesma emissora em que ele trabalha.

Com protestos crescentes - atrizes e funcionárias da Globo vestiram a camiseta “mexeu com uma, mexeu com todas” - o ator veio a público para pedir desculpas. E o fez divulgando uma carta que começa por um “Errei”. Mas, por que errou o assediador? Ele explica: por pertencer a uma geração habituada a brincadeiras que hoje não se aplicam mais. Enfim: o mundo mudou, é preciso integrar-se à nova realidade. Daí a promessa do ator em renovar-se. A partir de agora ele será um novo homem, aliás um homem melhor. Sem as tais brincadeiras.

Não sei a idade do ator nem a que geração ele pertence. Entretanto, folgo em saber que certos delizes que cometemos podem ser atribuídos à geração à qual pertencemos. A coisa funciona assim: certas atititudes acabam se tornando padronizadas, daí serem tidas como normais dentro de uma época. Até a pouco era, por exemplo, normal um homem brincar com uma mulher tendo como tema da brincadeira algo relacionado à possibilidade de vir a fazer sexo com ela. Isso fazia parte de um modo de ser dos homens educados dentro de uma sociedade machista que era a eles muito favorável. O problema  é que o mundo mudou e o que era comum, deixou de ser. Resta, portanto, aos garanhões de plantão, tomar consciência desse fato  e prometer mudar seu comportamento, adaptando-se à nova ordem.

Quem somos nós para desdizer o famoso ator que se apresenta convicto do que diz? Teria ele agido no bom sentido, infelizmente utilizando uma brincadeira que assim não foi entendida pela figurinista? Ela o acusa de ter tocado na sua genitália e proferido palavras ofensivas à sua condição de mulher. Isso diante de testemunhas. Desse ato nasceu o embate de opiniões que circulam sobre o assunto. No geral condena-se o ator embora encontre-se quem o defenda.

Diante disso resta-nos vasculhar o passado e perguntar se em algum momento transgredimos a linha do respeito às mulheres com quem convivemos. Será que por pertencermos a uma geração na qual certas brincadeiras eram tidas como normais não teríamos ferido fundo o orgulho de mulheres pelas quais momentaneamente nos interessamos?

Difícil aceitar a versão do ator.

Há 50 anos

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Exatamente há 50 anos, no dia 06 de abril de 1967, o Coronel Fontenelle foi demitido da diretoria de trânsito na cidade de São Paulo. Designado para o cargo pelo então governador Abreu Sodré Fontenelle permaneceu no comando do trânsito apenas 57 dias. Mas, aquilo foi o diabo.

Controverso, irreverente, determinado, gênio, maluco, violento, Fontenelle era adjetivado de muitas maneiras pela população.  Seu norte era botar ordem no trânsito caótico da cidade. Com suas medidas a cidade iria pegar fogo, dizia. Sabia ser violento, afirmava. E não era sujeito de ficar atrás da mesa. Saia às ruas, fechava estacionamentos irregulares, esvaziava pneus de carros estacionados irregularmente. Odiava filas duplas etc. O carioca Fontenelle era o cão.

Fontenelle desativou a estação Júlio Prestes, ponto de convergência dos ônibus que chegavam à cidade. Os ônibus foram remanejados para 4 pontos diferentes conforme a rodovia que utilizavam. As agências de venda de passagem ficavam na rua, em casinhas de madeira. Foi o caos.

Naquele Brasil de 1967 a ousadia de Fontenelle era inaceitável. A imprensa paulista batia duro no diretor de trânsito. Daí que não pode durar no cargo. Demitido, a cidade respirou.

É difícil ou até impossível reconstruir o passado. Dar vida a um momento, animar as personagens de um tempo que se foi é tarefa complexa mesmo para quem presenciou a evolução dos fatos. Ao tempo de Fontenelle no trânsito eu era um rapazote que morava em casa de um tio. A toda manhã meu tio praticamente enlouquecia com um exemplar de jornal nas mãos. Perguntava por que o governador biônico do Estado não demitia aquele louco. Era inaceitável que uma pretensa autoridade esvaziasse pneus nas ruas, infringindo a lei. E isso publicamente, sem punição. Afora o péssimo exemplo para a nova geração que se formava.

Mas, havia quem concordasse com Fontenelle. Eu não tinha noção de como resolver o problema do trânsito na capital, mas simpatizava com aquele transgressor de normas numa época em que o país era governado por uma ditadura militar. Mas, o ano era 1967 e ainda não chegáramos a 1968 quando o AI-5 seria decretado, restringindo as liberdades. Iniciava-se o período de exceção no qual os governantes podiam punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. Mas isso já é outra história.

Vida curta

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Um dos jornalistas do programa Manhattan Connection desabafa: a vida é curta. De fato, a vida é curta. Mas, nem todo mundo concorda. Onde nasci era voz do povo: a vida é curta e comprida. Também não há como não concordar. Existem situações. Há momentos em que um par de minutos tornam-se a eternidade. E longos períodos que não significam nada. A vida é curta e comprida, acredite.

Quando se chega à tal terceira idade - que alguns insistem em chamar de “melhor idade” - torna-se impossível não olhar para o que foi vivido e especular sobre o tempo que nos resta. A sensação não é boa diante da verificação de ter-se deixado para trás trajetória nem sempre agradável. Viver é complicado - dizia Riobaldo. Viver é muito complicado. E morrer? Bem, responder a isso só estando nos estertores da morte. E a morte que nos parece tão comum – afinal todo mundo morre - talvez se manifeste com particularidades próprias a cada ser humano. O melhor é não pensar sobre o fim. Como será o fim? Ora, não interessa. A ver quando chegar a hora.

A tão ignorada pequenez do homem é assustadora. Vivemos por um curto hiato de tempo num planeta que existe a 4,5 bilhões de anos. Se pensarmos a vida em termos de duração veremos que nossa passagem por aqui é insignificante. E levamos tudo tão a sério. Fazemos as coisas como se fossem as últimas. Guerreamos. Matamos. Amamos. Então a vida nos parece eterna.

Certas notícias incomodam. Noticia-se a descoberta, no Egito, de ruínas de uma pirâmide construída há 3,7 mil anos. As ruínas localizam-se em Dahshur, situada a 400 km do Cairo. Dahshur é onde o faraó Seneferu, da 4ª dinastia, construiu a primeira pirâmide de paredes lisas do antigo Egito, a Pirâmide Vermelha, de 104 metros de altura, há cerca de 4,6 mil anos.

Imagino o que pensava Seneferu ao construir a sua pirâmide. Imagino os milhares de homens que a ergueram num esforço supremo. Todos mortos. Mortos a milênios. Restaram as ruínas para atestar a passagem desse povo pela Terra. Nada mais sobre seus amores, sofrimentos etc.

As últimas palavras de Machado de Assis em seu leito de morte foram: a vida é boa. É, a vida é boa.vida curta e comprida

Assédios

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Não sei dizer se as velhas “cantadas” podem ser caracterizadas como casos de assédio sexual. Muito comum propor a uma mulher sair para jantar, por exemplo. Não é assédio. Mas, a convidada pode interpretar o convite de outra forma.

Uma senhora de cerca de 40 anos de idade, funcionária de banco estrangeiro com agências no Brasil, sofreu assédio de seu chefe. Mãe de duas crianças, separada. Ocupando alto cargo na hierarquia do banco eis que ela não sabia o que fazer. O chefão era muito claro: não cedesse a ele seria demitida. Os irmãos da senhora chegaram a pensar na aplicação de um corretivo no tal sujeito. Desistiram, não saberiam agir como bandidos.

Não sei dizer se a senhora em questão cedeu ou não. Sei que viveu período atribulado, nervosa a ponto de isso afetar seu rendimento no trabalho. Mas, a história do assédio ficou no ambiente da família. Nem passou pela cabeça da senhora denunciar o chefe. Havia muita coisa em jogo para que viesse a perder o emprego.

Quem viaja no metrô corre o risco de presenciar a ação de sujeitos mal-intencionados que atacam mulheres. Na cidade do México existem vagões exclusivos para mulheres, tal o índice de casos de assédio nos trens. Há quem diga que essa solução não resolve. No metrô de São Paulo os casos de assédio acontecem com frequência. Vez ou outra agressores são detidos e levados à polícia. Infelizmente, não permanecem muito tempo atrás das grades.

Certa vez contou-me uma moça estar na praia e ser abordada por rapaz muito educado. Conversa vai, conversa vem, ela deixou que ele a acompanhasse até o prédio onde morava. O estupro aconteceu na garagem do prédio.

No momento um caso de assédio ocupa o noticiário. Conhecido ator é acusado de assédio por uma figurinista. Teria ele colocado a mão na genitália da moça e perguntado se ela iria ou não dar para ele. O ator nega. O canal de TV em que ele trabalha decidiu afastá-lo da próxima novela. Caso em aberto.

Casos de assédio sexual repetem-se no dia-a-dia. Infelizmente pessoas assediadas nem sempre denunciam seus agressores. Mas, é preciso diferenciar assédio de flerte ou simples brincadeira.

O pão “enlameado”

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Não gosto do funcionário da padaria. Me parece um sujeito desatento ao serviço. Não se orgulha do que faz. Meu tio dizia que na vida há que se fazer tudo com amor. Mesmo as pequenas coisas. O velho falava que é pelas pequenas coisas que se conhece uma pessoa. Se o cara é ruim nas pequenas coisas que dizer nas grandes.

Peço sempre um misto quente na padaria da esquina. No horário em que vou lá o funcionário que prepara os sanduíches é um baixinho que sempre parece estar de mal com a vida. Pega o queijo e o presunto com o descaso de quem toca um inimigo. Depois atira-os na chapa quente sem nem mesmo limpá-la.  Minutos depois queijo e presunto são arrastados para dentro do pãozinho e o misto é servido ao freguês.

Já me questionei se no fundo a minha repulsa ao rapaz não tem um pouco de implicância desnecessária. Todo mundo sabe que não custa encontrar pela frente alguém com quem não se combina de jeito nenhum. Uma amiga, por exemplo, tem aflição quando vê homens barbudos. Diz que se no mundo só existissem homens com barba, não se aproximaria de nenhum deles.

Não tenho a menor ideia de quem seja o baixinho fazedor de sanduíches. Sei que o cara passa algumas horas do dia em pé, ao lado da chapa, trabalhando numa função que deve ser bem enfadonha. Talvez a vida dele seja bem desinteressante, talvez more num bairro pobre e distante, tenha mulher e filhos a sustentar, doença em casa, sei lá. Mas, que tem a ver o misto quente com a história do baixinho que prepara sanduíches?

O fato é que existem pessoas que incomodam, às vezes por simplesmente existir. Nos meus tempos de residente tinha uma médica que não podia me ver. Para ela eu era a imagem do desamor. Como ela era minha superiora tratava de me designar para as piores funções. Ela me detestava simplesmente por detestar. Foi um alívio para ambos quando deixamos de nos ver para sempre.

Mas, e o pão enlameado? A história é breve. O Zé trabalhava na lavoura e toda manhã passava pela padaria para tomar café. Ele sempre fazia o mesmo pedido: um pão “enlameado” com manteiga. Tanto repetiu isso que passou a ser conhecido como Zé Lameado. Esse Zé Lameado morreu ainda jovem não sei dizer a razão de seu desaparecimento, se doença, acidente, sei lá.

Conheci muito bem o Zé Lameado, um tipo alegrão e muito falante. Trabalhador incansável destacava-se na lavoura e ia melhorando de vida. Mas, morreu.

Ontem fui à padaria e não resisti a fazer o pedido do Zé Lameado ao baixinho da chapa. Pedi a ele o pão “enlameado” com manteiga. Obviamente ele não entendeu. Aproximou-se de mim, olhou-me fixamente e solicitou que eu repetisse o meu pedido. Ao ouvir a mesma coisa pela primeira vez o vi sorrir e dizer que não sabia fazer o que eu pedira.

Entendi que eu fora chato e desagradável demais, projetando no rapaz a minha inexplicável intolerância em relação a ele. Meio envergonhado mudei meu pedido:

- Por favor, um misto quente.

Questão de fé

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O filme “Silêncio” de Martin Scorsese incomoda porque traz à tona o problema da fé. A trama se passa no Japão medieval onde o catolicismo tinha sido proibido. Dois padres, Rodrigues e Garupe, decidem ir ao Japão em procura do padre Ferreira sob quem não haviam mais notícias.

Mas, as coisas não se passam como na Europa. A entrada dos padres no país é ilegal. Os japoneses não querem padres contaminando a crença dos camponeses. A realidade do país é outra. A religião é o budismo. O catolicismo seria um corpo estranho às tradições japonesas cujo modo de agir e pensar difere do europeu.

A partir daí Rodrigues e Garupe enfrentam situações de perigo, impossíveis de ser solucionadas. A fé que propagam revela-se um desastre para os camponeses que se recusam a negá-la e, por isso, são torturados até a morte. Basta a um católico pisar sobre uma imagem de Cristo. Os que se recusam a negar sua fé são mortos.

O enigma que envolve o padre Rodrigues torna-se a essência do filme. Preso e não se dispondo a negar sua fé Rodrigues é submetido a situações nas quais a razão se interpõe à crença. Por que em nome da fé deixar que pessoas sofram e morram? Qual o sentido de não negar a fé a custo do sofrimento alheio?

O padre Rodrigues resiste. Submetido ao interrogatório de um hábil inquisidor o padre aferra-se em sua fé a qual, a seu ver, tudo justifica. É obrigado a assistir ao suplício de japoneses católicos e vê Garupe afogar-se, tentando salvar alguns deles. Por fim é levado a encontrar-se com o padre Ferreira, agora homem casado que renegou o catolicismo. Em vão Ferreira tenta demover Rodrigues de sua posição, explicando a ele que no Japão a cultura é outra e mesmo Francisco de Assis não teria conseguido implantar o catolicismo em sua passagem pelo país.

Mas, contra a força não existe resistência duradora. Rodrigues acaba por sucumbir justamente para salvar alguns de seus seguidores já próximos da morte sob tortura. Enfim o padre Rodrigues pisa sobre a imagem de Cristo. Passa ser um monge budista, como Ferreira havia se tornado.

Em nenhum momento Deus responde a Ferreira sobre suas constantes indagações. O silêncio de Deus ocupa grande espaço na vida desse homem preso às suas convicções. O mesmo Deus não ouvira ao próprio filho, traído por Judas, e crucificado. Pai, por que me abandonastes - dissera Jesus. O silêncio de Deus que em nenhum momento interferiu sobre a desdita do padre Rodrigues não serviu como alicerce à sua fé. Deus não respondeu às preces do padre que o invocou a todo tempo.

“Silêncio” é um filme sobre a fé que tivemos, temos ou perdemos. Retrata o conflito entre a crença e situações cotidianas às quais tantas vezes ela se opõe. Ilumina o fato de que a fé está sujeita a circunstâncias, embora seja comum negar-se essa condição.

Rodrigues vive com sua mulher e trabalha com Ferreira para impedir a entrada de materiais ligados à Igreja no Japão. Envelhece e morre. No último instante, sendo seu corpo cremado, ainda se pode ver, entre suas mãos, um crucifixo. Era um home de fé.

Velórios digitais

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Dias trás fui ao velório do filho de um amigo. Coisa triste. O pai diante da irreversibilidade do fato mostrava-se perdido. Nessas ocasiões não se sabe bem o que dizer. A todos que o cumprimentavam o pai lembrava que morte de filhos, antes dos pais, representa inversão do caminho natural da vida.

Hoje em dia os velórios acontecem fora das residências em capelas ou lugares apropriados. Em casa de minha avó havia uma sala grande pela qual passaram muitos defuntos da família. Ali se velavam os mortos. Mas, a sala também servia como ponto de encontro dos familiares que ali se reuniam para conversar e, mais tarde, para assistir televisão. Creio que foi naquela sala que vi, pela primeira vez, imagens de programas televisivos. Se bem me lembro tratava-se de um jogo de futebol narrado pelo Ari Barroso.

Mas, aos velórios. Leio que algumas funerárias atualmente oferecem cobertura digital de velórios e enterros. Filmadas em tempo real as cerimônias podem ser assistidas por pessoas em locais distantes. Segundo informa-se o novo serviço tem sido requisitado por várias famílias. Existe muito interesse quando parte dos familiares da pessoa desparecida vivem, por exemplo, no exterior. Nesse caso basta a elas acessaram o site da funerária para acompanhar as exéquias do parente desaparecido.

Para quem participou de velórios realizados nas casas das famílias os velórios digitais não deixam de parecer estranhos. Alias, o mesmo pode se dizer em relação aos casos em que opção é a cremação. Tempos atrás compareci ao enterro de pessoa conhecida e estranhei a falta da parte em que o caixão é colocado dentro da cova. No caso o caixão ficou sobre um palco e, após as despedidas, foi abaixado lentamente, até desparecer. Ora que tipo de estranhamento pode haver em relação a isso, procedimento tão comum nos dias de hoje? Talvez o fato de ter presenciado tantos enterros nos quais os caixões desciam à cova e eram cobertos com terra. Nada mais que isso.

Certa vez perguntaram-me se preferia ser cremado ou enterrado. Ainda tenho certa preferência pelo enterro. Além do que não me imagino transformado em pó dentro de um vidro, suscitando nos parentes a dúvida do lugar onde o pó deverá ser descartado.

Quanto ao velório digital espero que quando chegar a minha vez os interessados estejam presentes. Nada de filmagens e, depois, a entrega aos familiares de um DVD com imagens do meu passamento.