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Como nunca antes?
Pensar sobre a história do Brasil dá arrepios. Estabilidade mesmo talvez apenas a do Segundo Reinado. Tanto que monarquistas de carteirinha ainda acham que só a monarquia salvaria o país.
Não me lembro de ficar muito desesperado na época em que a inflação de dois dígitos era altíssima. Era o inferno, mas inferno com alguma lógica. Não havia a desconfiança nos homens que dirigiam o país. Podiam errar, mas a corrupção - que deveria existir - não vinha a público. A culpa era da dívida externa, do FMI, dos americanos…
Hoje em dia jogamos o tal “resta um” embora talvez não venha a restar ninguém. A primeira delação de um executivo da Odebrecht fez tremer o país. Consta existirem mais 76 funcionários da construtora para esclareceram as falcatruas que envolvem a classe política. Restará pelo menos um? A ver o resultado do jogo.
O Brasil é um país formal regido pela informalidade. O “por fora” enriquece a minoria que tem acesso aos mais variados contratos públicos. Nada no que se toca permanece. Estruturas de belas aparências estão corroídas por dentro. Chegou-se ao limite.
Há quem diga que é preciso recuperar a esperança. Na Wikipédia lê-se que “a esperança requer uma certa perseverança - i.e., acreditar que algo é possível mesmo quando há indicações do contrário”. Mas como perseverar se a cada manhã as notícias de hoje são piores que a de ontem?
O rei está nu. Levantaram-se as cortinas que escondiam a podridão. O ano termina melancolicamente. Avisam-nos de que a queima de fogos na praia será menor que a da última passagem. Por economia, por falta de dinheiro.
Às vezes penso que o país só sobrevive - e sobreviverá - por conta da natureza de seu povo. O brasileiro não é um sujeito triste. Sabe como ninguém rir da própria desgraça e só a fome o derruba de verdade. É da fome que temos medo. O resto vamos levando.
Previsões
Que dirão os astrólogos e numerólogos sobre o futuro imediato do Brasil? 2017? O que se fala por aí é que não se precisa de videntes para saber no que essa confusão geral vai dar. País atolado é país atolado e ponto final.
Você acredita em videntes? Sou da opinião de que os videntes têm papel importante nas nossas vidas. Em situações difíceis ouvir de alguém ligado ao futuro que as coisas vão melhorar ajuda muito a pegar no sono. Não importa se a pessoa que fala está a improvisar sobre possibilidades futuras.
Nunca acreditei em bolas de cristal, nem em mentes abertas ao que poderá acontecer. Difícil acreditar que alguém possa enxergar o que ainda não aconteceu. Como prever?
Quando menino se dizia alguma bobagem minha mãe me repreendia advertindo sobre o perigo de algum anjo dizer “amém”. Se anjos dizem “amém” o fato está consumado. Meu protesto incluía a pergunta de por que o anjo nunca diria “amém” caso eu afirmasse que ganharia na loteria. Então anjos só dizem “amém” para coisas ruins?
Conheci uma vidente famosa que fazia previsões para gente importante, empresários, artistas etc. Perguntei a ela se suas previsões costumavam se realizar. Explicou-me que desde pequena descobrira-se capaz de ver coisas não acessíveis ao comum dos mortais. Tanto que em certa época colaborara com a polícia na investigação de crimes de difícil solução. Essa atividade custara-lhe caro. Era levada a ambientes nos quais ocorreram crimes horríveis para neles exercer suas aptidões de sensitiva. Segundo afirmou essa atividade era extremamente extenuante. Ao retornar à casa quedava-se prostrada por mais de um dia. Entretanto, ajudara a solucionar muitos crimes.
Certa ocasião a vidente que me referi propôs que consultássemos o meu futuro. Embora não acreditasse na validade disso acabei topando. Confesso que algumas coisas que a vidente me disse naquela ocasião vieram a ocorrer anos depois, aliás para minha surpresa.
Em todo final de ano surgem na mídia videntes conhecidos que fazem previsões sobre o período vindouro. Mortes, tragédias, conquistas e muitos outros fatos são narrados e datados para quando acontecerão. Não me consta que tenham boa média de acertos.
Enfim, resta-nos esperar pelo que os videntes de plantão preverão para o próximo ano. Quem sabe nos animarão com algumas boas doses de ilusão.
Morrer em paz
Ferreira Gullar pediu à mulher que o deixasse partir em paz. Que não o submetessem a procedimentos para prolongar a vida. Queria evitar o sofrimento inútil, morrer com dignidade.
Por razões profissionais estive presente no momento da morte de muita gente. Ao lado do leito vi de perto o último suspiro de pessoas cuja vida não se prolongaria dadas suas condições de saúde. Nem todas morreram em paz. Muitas delas não queriam morrer.
Suponho que a morte em paz exija desapego à vida pelo menos no curto período que antecede o fim. Talvez tudo se passe ao ritmo de missão cumprida. Ou ao simples cansaço de tudo, aceitando-se a morte como epílogo ao que quer que seja.
Ainda hoje, passados tantos anos, impressiona-me a morte de minha mãe. Esquálida, consumida pela doença, restrita ao leito no qual as feridas pelo corpo a impediam de acomodar-se, sofrendo, ainda assim agarrava-se à vida e ao mundo do qual não queria se despedir. Quando já não havia mais o que fazer, quando todo tratamento revelou-se ineficaz, parecia-nos que ela se recusava a partir. Constrangidos pelo sofrimento dela tornáramo-nos espectadores de uma peça de duração incerta cujo fim, entretanto, era previsto. Mas, a situação se prolongava demais.
A circunstância da morte de minha mãe deu-se de modo imprevisto. Certa noite abordou-nos uma velha senhora que, segundo disse, costumava visitar leitos de pessoas muito doentes para rezar por elas. Ao ver a minha mãe essa senhora nos disse que enquanto ficássemos ao lado de dela não morreria porque não se desligaria dos filhos. Ora, era uma explicação inusitada, difícil de acreditar. Em verdade não deixávamos a mãe nunca sozinha, havia sempre um de nós ao lado do leito. Mas acreditar em que se saíssemos ela morreria?
Em primeiro lugar levantava-se uma questão. Afinal, queríamos que ela morresse? De minha parte confesso que sim. Apesar da dor da perda parecia-me egoísmo sustentar situação na qual minha mãe sofria tanto, sem qualquer perspectiva de melhora. Enfim, também cansados e atônitos diante de situação tão difícil, decidimos sair do hospital para passar a madrugada em casa.
Creio que mal tivemos tempo de chegar à casa. Soubemos que, pouco depois que saímos, minha mãe enfim faleceu.
Tempos depois tive que retornar ao hospital em busca de documentos e perguntei sobre aquela senhora que nas madrugadas visitava os doentes terminais para orar por eles. Estranhamente ninguém soube dizer nada sobre ela. Pessoas que há muito trabalhavam no setor em que minha mãe estivera internada me garantiram jamais ter passado por lá alguém que visitasse e orasse pelos pacientes moribundos.
O último grito
Tragédias marcam, impressionam. Sabemos que podem acontecer, mas preferimos pensar que não. Então, quando acontecem, instala-se o desespero diante do incompreensível. A morte nunca é benvinda, nem mesmo quando ela nos parece a melhor solução como em casos de pacientes terminais. Afinal, é ela, a caveira com a foice que se ocupa em ceifar vidas. Com a morte não existe acordo possível.
De um momento para outro divulga-se que a equipe da Chapecoense simplesmente desapareceu. Jogadores, comissão técnica, médicos, jornalistas que participavam de um voo a Medelín morreram num acidente aéreo. A alegria pela próxima disputa de um título sul-americano subitamente é substituída pelo desconsolo provocado pelo imponderável.
O Brasil se comove. A cidade de Chapecó paralisa-se. O mundo recebe a notícia com estupefação. O esporte mundial declara-se em luto. Nada, absolutamente nada, pode ser feito para remediar acontecimento imprevisível, absurdo. Por toda parte dor, muita dor.
Nos meios de comunicação especialistas buscam razões para o acidente aéreo. Ouvimos hipóteses enquanto assistimos cenas pungentes do resgate de corpos. A imagem do avião espatifado numa região montanhosa faz-nos pensar nos últimos momentos dos passageiros ao se perceberem perdidos. Como será estar diante da morte, em situação que se reconheça como irreversível?
Mas, em meio a tamanha desgraça eis que a morte houve por bem poupar umas poucas testemunhas. Uma delas, um comissário de bordo, milagrosamente salvo, relatou ter ficado em posição fetal, daí ter saído praticamente ileso. Entretanto, disse que no momento da queda os passageiros entraram em desespero, ficaram em pé, gritando e assim morreram.
Sempre penso nos segundos que antecedem o momento final de uma tragédia, o instante no qual nada mais pode ser feito e fica-se à mercê de uma situação sobre a qual perdeu-se o controle. Imagino que no grande desespero do momento não exista tempo para qualquer tipo de reflexão. Trata-se do encontro com a morte não anunciada e de repente presente. Resta ao homem o grito. O último grito.
Ano após ano
O bom na passagem do tempo é o fato de que devagar vamos nos esquecendo dos acontecimentos do passado. Você é capaz de, sem consultar o Google, se lembrar de como seguia a vida em novembro de 2011? Pois é decorridos apenas cinco anos eis que as memórias se confundem. Talvez alguém para quem algum fato marcante na vida pessoal tenha ocorrido naquele mês do ano citado seja mais fácil lembrar-se. Mas….
O mundo sempre será o mesmo apesar das mudanças e conquistas alcançadas pelos homens. Se olharmos para uma fotografia da Avenida Paulista nos anos 20 do século passado certamente nos causará estranhamento a ausência das altas edificações a que estamos cotidianamente habituados. Então o mundo era assim, diríamos. Mas se pensarmos nas pessoas que viviam naquele mundo, naquela circunstância, talvez o nosso estranhamento se reduza. Era como se vivia então sem que a gente da época pudesse supor o mundo em que hoje vivemos.
E daí, perguntarão. Daí que toda a febre do momento atual, todas as lutas e questões intestinas que presenciamos são nada mais que episódios passageiros. Os humanos de ontem, assim como os de hoje, conviveram com as questões de suas épocas e as vivenciaram como se fossem eternas. Aliás, tal como fazemos hoje enquanto somos solicitados a opinar sobre os acontecimentos atuais.
Não nos é possível reconstituir com absoluta fidelidade o que terá se passado com o presidente Getúlio Vargas no dia em que se matou. Nenhum fato que pertença à vida de outra pessoa poderá ser integralmente revivido por outra. As impressões que tenho sobre acontecimentos de nosso dia-a-dia poderão no máximo coincidir com as de outra pessoa, mas certamente discordaremos pelo menos em algum ponto. O que tenho como verdade absoluta nem sempre coincidirá com o modo de ver de alguém, ainda que se trate de pessoa muito próxima a mim.
Talvez por tudo isso o melhor seja considerar, pelo menos um pouco, que a vida é passageira e os mundo gira depressa. Esse modo de ver as cosias talvez nos ajude a atravessar esse período de crise no qual somos a toda hora informados de falcatruas nessa voragem que parece não ter fim.
Daqui a cinco anos talvez tenhamos nos esquecido desse tempo confuso. Quem viver verá.
Fidel
No início doa anos 60 do século passado Fidel Castro já era o vitorioso de Sierra Maestra quando desalojara Fulgêncio Batista do poder em Cuba. Governava a ilha, situada a apenas 150 km dos EUA, e inspirava intelectuais e jovens em todo mundo. O filósofo Jean Paul Sartre, acompanhado de Simone de Beauvoir, passara um mês na ilha. A invasão da Baia dos Porcos em 61 e a Crise dos Mísseis em 62 levaram ao rompimento dos EUA com Cuba e à decretação do Bloqueio Continental contra a ilha. Rapidamente, Fidel transformara-se num ícone da esquerda em todo o mundo, estreitando-se as relações de Cuba com o governo soviético.
Fidel já visitara o Brasil no governo de Juscelino Kubistchek, mas não me lembro de ter dado maior importância à Revolução Cubana. Entretanto, um episódio viria a chamar a minha atenção para o que se passava na ilha. Na época preparava-me para futuros exames vestibulares. Morando no interior e não dispondo em casa da tranquilidade necessária ao estudo, consegui permissão para passar algumas horas do dia no claustro de uma ordem religiosa. O espaço a mim reservado era uma cela na qual havia uma mesa e uma cadeira, nada mais. Reinava ali o mais absoluto silêncio, condição ideal para quem se dedicava à compreensão da matéria a ser exigida nas provas.
Entretanto, vez ou outra era eu interrompido pela presença de um frade. Vinha ele cheio e dívidas e me propunha questões para as quais eu não estava apto a opinar. Na época o frade escrevia, justamente, uma peça cujo tema era a Revolução Cubana. Em certas partes da trama faltava ele talvez inspiração para as falas das personagens. Não me recordo de pelo menos em uma única vez ter contribuído para ajuda-lo em sua empresa.
Foi desse modo que ouvi falar sobre Fidel, Raul, Guevara, Cienfuegos e outras personagens da revolução. De todo modo o frade - de cujo nome não me recordo - completou a peça que foi encenada por um grupo de atores amadores. A peça fez sucesso, passando por várias cidades. Se não me falha a memória o dramaturgo Joracy Camargo assistiu a uma dessas apresentações e elogiou o trabalho de toda a equipe.
Anos depois me encontrei com um dos atores da peça. Disse-me ele que o grupo ficara ligado até 1964 quando o golpe militar colocou fim ao regime democrático no Brasil. Depois disso e com o perigo de identificação com qualquer coisa que sugerisse comunismo a peça não foi mais encenada. Fidel era, notoriamente, marxista-leninista. O governo militar pós-64 rompera relações diplomáticas com Cuba e Fidel ajudava revolucionários no Brasil, na Argentina e na Venezuela.
Não se pode negar a Fidel ter sido um calo nos pés dos americanos cuja política imperialista vigorava fortemente sobre o bloco latino-americano ao tempo da Guerra Fria. Sua atitude de desafio frente a um adversário infinitamente mais poderoso é digna de nota. Por aqui fomos direcionados a não simpatizar com Fidel sempre apontado como um perigo para democracia e a liberdade.
O tempo e a história julgarão melhor a personagem que hoje desaparece.
Esquecimentos
Pessoas acima dos 60 anos de idade reclamam de esquecimentos. Outro dia telefonei a um amigo que comemorava seu septuagésimo aniversário. Conversa vai, conversa vem, perguntei a ele se estava bem. Ótimo, respondeu. Entretanto, reclamou de esquecimentos. Estava se tornando um sujeito meio esquecido. De coisas menos importantes então nem se fala.
A preocupação, obviamente, é com a doença de Alzheimer. Seriam sintomas iniciais da doença? No sábado ouvi entrevista de um neurologista que falou sobre o Alzheimer. Explicou que até o momento a medicina não dispõe de meios para combater a doença. De repente no córtex cerebral verifica-se a perda de neurônios ligados à memória. As lembranças vão se apagando progressivamente. Até o nada, o alheamento total. Na ocasião da entrevista um jornalista perguntou sobre a eficácia de exercícios de memória como meio de evitar a progressão do mal. Completou, dizendo que ouviu falar sobre a importância de fazerem-se até mesmo palavras cruzadas para manter-se o cérebro ativo. Outro jornalista citou o caso do empresário Antônio Ermírio de Moraes, conhecido por sua intensa atividade e que sofreu, ao final da vida, da doença de Alzheimer. Mas, na opinião do médico nada de realmente efetivo se pode fazer para evitar a perda final da memória.
Assisti ao filme “Alice” no qual a protagonista perde progressivamente a memória. O alheamento progressivo em relação aos membros de sua família e ao mundo que a cerca é chocante. A fase na qual a pessoa percebe estar com dificuldades de memória é dolorosa. É a despedida da própria razão pessoal, lenta e progressivamente anulando-se. Não dá para ver o filme sem sair com algum receio de que um dia venhamos a ter a doença.
Esquecimentos são mais ou menos corriqueiros com o avanço da idade. Sempre tive excelente memória em relação a fisionomias, mas péssima no tocante a nomes. Não posso dizer se essa situação tem-se agravado. De todo modo assusta-me não me lembrar de nomes ouvidos a pouco. Conheço uma pessoa, retenho a imagem de seu rosto, mas o nome…
Também acontece lembrar-me com detalhes de coisas do passado. Às vezes me recordo de situações vividas a muito tempo. Lembro-me delas com tal riqueza de detalhes que fico impressionado. Não deixo de me lembrar de fatos recentes, mas em geral me esqueço, por exemplo, de ter trancado uma porta, isso minutos após tê-la trancado.
O cérebro humano continua sendo um continente desconhecido apesar dos grandes avanços de conhecimentos sobre ele e técnicas para examiná-lo. A doença de Alzheimer é um mal para o qual não existem armas para combatê-la. Enfim o que se pode fazer é torcer para que estejamos livres desse mal. Torcer e esperar.
Cenas chocantes
A expressão “O Brasil não conhece o Brasil está acontecendo”. Em tempos de “Operação Lava Lato” a toda hora somos sacudidos por surpresas. O Brasil de hoje não reconhece o Brasil de ontem no qual a imunidade campeava solta nos quatro cantos do país.
A surpresa mais recente foi a notícia da prisão de dois ex-governadores do Rio de Janeiro. O primeiro, Sergio Cabral, foi preso nas primeiras horas da manhã em seu luxuoso apartamento, no Rio. Contra ele pesa a acusação de desvio de 220 mi em negociatas durante seus oito anos de governo. Aliás, Cabral há muito despertava atenção pública pelo modo nababesco em que vivia. Ficaram célebres as fotografias de suas estadias em Paris, exibindo riqueza em hospedagens e festas nos restaurantes mais chiques da cidade. Contra o segundo, Anthony Garotinho, existe a acusação de compra de votos nas últimas eleições. De todo modo ambos foram conduzidos ao Complexo Penitenciário de Bangu de onde não há data marcada para saírem.
Como não poderia deixar de ser a condução de pessoas tão importantes à prisão causa espanto. Não só os pobres são punidos, chegou a vez dos poderosos, isso é o que se fala por aí. Entretanto, as cenas das prisões dos dois políticos não deixam de ser chocantes. O momento em que Sérgio Cabral chega a Bangu, desce do veículo da polícia, coloca a mochila nas costas e caminha seguido por alguns policiais é impactante. Impossível não racionar naquele momento que também o poder é efêmero, que existe um limite para falcatruas. O poderoso governador de ontem, aquele que víamos com largos sorrisos na mídia, ele, ele mesmo, está preso. Descontrói-se a imagem do poder. É o fracasso do poder que choca nas imagens que não nos saem da memória.
Com Garotinho as coisas se passaram de modo mais teatral, nem por isso menos chocantes. Levado ao hospital por problemas cardíacos ali esteve até que fosse ordenada a remoção para o presídio. Seguiram-se cenas lamentáveis nas quais o ex-governador, conduzido numa maca, negava-se a ser levado ao presídio. A dramaticidade da filha de Garotinho ao chorar e gritar que o pai não era um bandido, a dificuldade de colocar Garotinho na ambulância dado que a todo momento tentava levantar-se protestando, os homens que a custo o seguravam, tudo isso compunha uma sequência de cenas lamentáveis, chocantes. Mais uma vez o poder de outrora sucumbia diante de nova realidade até pouco tempo inimaginável.
De fato este novo Brasil está diferente.
Robert Mapplethorpe
O que não se pode negar a Robert Mapplethorpe (1946-89) é o fato de ser um grande fotógrafo. Seu olhar lúcido e inquisitivo paira sobre os humanos e objetos inanimados que mereceram a sua atenção. Armado de uma polaróide Mapplethorpe ousou visitar territórios, desnudando espaços nunca antes tão profundamente considerados por outros artistas. Centrado na necessidade de criação que inevitavelmente conduz à fama o grande fotógrafo projetou obra com o intuito de ser sempre lembrado. Para ele era de suma importância não só realizar-se como ser reconhecido. Ao fim da vida engendrou a sua Foundation que perpetuaria o seu nome.
A obra de Robert Mapplethorpe consiste na elaboração de estranhamentos capazes de prender a atenção do observador. É de um mundo conhecido, mas cujo detalhes prefere-se ignorar, que o fotógrafo extrai as essências de suas criações. Mapplethorpe entrega-se a uma devassa do mundo do sexo, nada poupando, demolindo o que encontra pela frente. Suas incursões no universo das relações sexuais, mesmo as mais bizarras, não encontra paralelo nas obras de artistas de qualquer época. Nem sempre suas fotos primam pela beleza, tantas vezes ligadas à mais desenfreada escatologia. O braço enfiado no ânus e o dedo mínimo introduzido na uretra do pênis provocam mal-estar e indignação em seus detratores. Mas o fotógrafo parece flutuar noutra esfera, aquela em que colhe suas imagens e as divulga, doa a quem doer.
O documentário sobre a vida de Mapplethorpe (Mapplethorpe: Look at the Pictures, realizado pela HBO) é revelador. Ilustra a trajetória do grande fotógrafo e liberta-nos da dúvida sobre quem, afinal, terá sido esse sujeito cuja arte rompeu fronteiras a ponto de até mesmo suscitar a questão: afinal da obra de Mapplethorpe pode-se dizer que se trata de arte?
O gigante da fotografia morreu jovem aos 41 anos. Pagou caro tributo à devassidão de seus desenfreados encontros homossexuais que lhe renderam o diagnóstico de AIDS. A imagem de seus últimos dias, sentado em meio à multidão que silenciosamente compareçou à galeria pera a derradeira exposição do artista, mostra um homem vencido. Consumido pela doença. Esgotara-se sua força. Mas, se o corpo já não era o mesmo os olhos do fotógrafo permaneciam vivos. Neles as últimas chamas de um olhar que ousou ver o que ninguém antes vira, apagava-se devagar.
Ainda hoje a obra de Mapplethorpe incomoda.
Viver na periferia
Honestamente, não perco um só minuto para pensar na minha condição de periférico. Habitante do terceiro-mundo habituei-me ao estado de coisas nessa parte do planeta, ao vai-e-vem da economia sempre claudicante, aos percalços impostos à democracia que, entre nós, chegou a ser suprimida nos longos anos da ditadura.
Ao tempo da crise da Baia dos Porcos estivemos a um passo de uma guerra nuclear. Naquela ocasião o imbróglio envolvendo americanos e russos atingira o seu clímax. Eis que, então, decidiu-se o governo brasileiro a enviar aos EUA um mediador para tentar acertos entre as partes. Ao que me consta o ilustre brasileiro foi ignorado. Os jornais da época criticaram a iniciativa do país em jactanciar-se, tentando impor-se em território para o qual não fora solicitado. Ou seja: aquilo era briga de cachorro grande na qual não teríamos participação.
Agora o imprevisível Donald Trump torna-se o homem mais poderoso do mundo ao vencer as eleições norte-americanas. A inesperada vitória do businessman gera uma reação em cadeia mundo afora. Governos apressam-se em solidarizar-se com Trump, declarando-se abertos a negociações e entendimentos. Mesmo a poderosa Alemanha, embora comedidamente, se diz pronta a negociações. Aqui o presidente não foge à regra e faz as saudações protocolares, dispondo-se a futuros entendimentos.
Bem, nem poderia ser de oura forma. O povo do país mais rico do mundo, o mais poderoso, decidiu-se por um bufão na presidência e isso preocupa os outros povos do mundo. Entretanto, impossível fugir à constatação de colunas vertebrais curvando-se diante do país detentor da maior economia do planeta.
Mas, a apreensão é maior entre os chamados periféricos. Trump não dará importância á América Latina, dizem os jornais. Ou: o Brasil não estará nos planos de Trump. Ou ainda: a crise brasileira enfrentará mais dificuldades com a vitória de Trump.
Eis aí um momento no qual sou convidado a me lembrar da minha condição de viver numa região periférica do mundo. País emergente, uma das maiores economia s do mundo, mas periférico. Sujeito às diabruras do cara de topete amarelo que no começo do ano vindouro assumirá a presidência. Ele que já promete de cara mandar embora dos EUA três milhões de imigrantes ilegais. Ele que imporá regras duras na imigração aos EUA etc.
A ver no que tudo isso vai dar.