Cotidiano at Blog Ayrton Marcondes

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1969

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- Pegaram o Marighela.

Era o que se falava na manhã seguinte quando a notícia se espalhou. Anos mais tarde um conhecido me disse que pegaram Marighela quando quiseram porque sabiam o tempo todo por onde ele andava. Esse conhecido servira o exército na época e trabalhava junto a um coronel nas dependências do DOI-CODI. Teria, portanto, acesso a informações privilegiadas.

Nunca acreditei no relato do meu conhecido. Até porque ele pertenceria ao baixo escalão e dificilmente teria acesso a informações relevantes. O ano era 1969 e a repressão promovida pela ditadura terrível. Em São Paulo a turma do delegado Fleury fazia e acontecia. O Esquadrão da Morte não perdoava.

Somos pessoas diferentes em cada época da vida. Não sou capaz de recompor o rapazote que fui em 1969. Vivia em São Paulo, cursando o primeiro ano da faculdade. Lembro-me bem do dia em que passava, dentro de um ônibus, pelo Largo de São Francisco e, de repente, vi a praça entrar em guerra. Das Arcadas saíram estudantes portando cartazes de protesto. Entretanto, forças policiais estavam a postos para reprimir a manifestação. O confronto foi imediato. Estudantes viraram um carro ao qual atearam fogo. A polícia lançava bombas de efeito moral. Um estudante entrou no ônibus, gritando sobre liberdade. Houve um momento em que os passageiros se jogaram no chão pelo medo de serem atingidos. Mas, a confusão não demorou. Estrondos por toda parte e os estudantes se recolheram sob a proteção da faculdade. Só então o trânsito fluiu.

Era um tempo de silêncios. O melhor era não se falar em política em lugar público. Em outubro Médici assumiu a presidência iniciando-se período turvo da história nacional no qual a repressão e a censura atingiram graus elevados. No início de novembro Marighela foi morto em São Paulo por agentes do DOPS.

Até hoje persistem dúvidas sobre as circunstâncias da morte de Marighela.  Passados 47 anos do desparecimento do líder da ALN o Ministério Público Federal decide investigar a morte do guerrilheiro. Consta que foi atraído a um encontro com dois frades que o esperavam num carro. Não sabia ele que os frades na verdade já estavam presos e seriam usados como isca. Ao se aproximar do carro, desarmado, Marighela foi morto a tiros. É a versão corrente.

Os desaparecidos

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Dizia-se dos que deixam este mundo: “foi pro caixa-prego”. Ou: “bateu as botas”. E outros ditos. O estranhamento diante da morte é inevitável. De um minuto para outro tudo para, tudo cessa. O homem que até aquele instante pensava e agia simplesmente apaga-se. No deixar de existir talvez a razão maior do estranhamento em relação a morte. Aquela pessoa que ainda agora…

Moro no 9º andar. Até poucos anos, ao acordar e abrir a janela do meu quarto dava com um casal de velhos na janela do prédio situado no outro lado da rua. Era um predinho de poucos andares, mas quando abria a minha janela, atraídos pelo ruido, os dois levantavam suas cabeças e me olhavam. Nunca reparei nas faces dos velhos nenhuma mudança de fisionomia. Pareciam ter olhares fixos, mecânicos. Observavam tudo o que acontecia na rua e talvez isso fosse um tipo de diversão para eles. Quando eu saia para o trabalho eles já tinham abandonado o posto de observação. Encontrava-os, no mesmo lugar, no fim do dia, quando tornava à casa. Estavam ali, quase imóveis, sem trocar palavras, absortos na vida que corria fora de sua janela.

Estranhei quando, certo dia, ao abrir a janela não os encontrei. Eles cumpriam rigorosamente seus horários. E a janela esteve fechada por quase um mês até, certa manhã, a mulher reassumir seu posto. Séria, parecia ainda mais envelhecida. Supus que naquele período não tivessem vindo à janela por alguma doença. Foi quando decidi perguntar ao porteiro do meu prédio sobre o que teria acontecido ao casal. E ele me respondeu:

- O velho morreu. Desapareceu.

Foi a palavra “desapareceu” que me intrigou. Desapareceu de onde? Ora, da janela. Da vida! Da paisagem. Só então percebi que havia tomado o casal de idosos como uma espécie de figurantes de um teatro da realidade. Havia-os incorporado ao meu cotidiano como se fossem autômatos cuja presença seria obrigatória a cada vez que eu abrisse a janela do meu quarto, após me levantar.

Somos seres que fazem parte da paisagem cotidiana. Desaparecemos sem aviso prévio, deixando lacunas que logo serão preenchidas. A velha da janela também não demorou a desaparecer. Como aconteceu em relação ao marido, a janela permaneceu fechada durante algum tempo. Até que certa manhã a vi aberta e um homem com um pincel na mão a coloria com tons alegres. Dias depois percebi que agora, no apartamento, viviam dois jovens que só vez ou outra se aproximavam da janela. Talvez, nessas ocasiões me vissem. Então, compreendi que eu seria incorporado à paisagem deles. Até que eu viesse a desaparecer, certamente antes deles tão mais jovens que eu.

É a ansiedade de chegar ao dia do meu inesperado desaparecimento o que tem me incomodado tanto.

O perde-ganha

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As fotos de políticos vencedores nas eleições ocupam primeiros planos nos meios de comunicação. Faces iluminadas por largos sorrisos retratam a alegria da vitória. Expandem-se as almas que se projetam em promessas de futuras realizações. Mar calmo na superfície, como serão as ondas nas profundidades? Mas, não há que se pensar nisso. A vitória empolga. O vitorioso se transcende. Tudo azul em céu de brigadeiro.

Nas sombras transitam os derrotados. Semblantes tensos, cabeças baixas, economia de declarações. Não há o que dizer quando a rejeição do eleitorado se revela. Análise de erros, autocrítica? Seguir adiante ou desistir? Quem sabe. Nada como um dia após o outro. O ferro que fere também poderá servir como arma no futuro. Se houver futuro.

A classe política está em baixa. Mas políticos são políticos e deles tudo se espera. É como se o ser político se diferenciasse do homem comum do dia-a-dia. O cidadão que discursa no palanque comporta-se de outro modo quando se despe da condição de político. Parece que na política tudo se justifica. Em casa a moral pode ser outra.

Dirão que nem sempre é assim. Verdade. É preciso separar os bons dos maus. Também verdade. Há gente séria e honesta militando nas hostes partidárias. Claro que sim. Mas, então, por que parece ser tão difícil identificá-los?

Entretanto, existem personagens políticas que permanecem nas memórias. Nem sempre são os melhores, mas o carisma natural que possuem contribui para seu sucesso.

Lembro-me de relatos sobre um controvertido político do passado que foi governador de São Paulo. O Sr. Adhemar de Barros notabilizou-se por seu estilo inconfundível. Um antigo juiz, na época em atividade numa comarca do interior, relatou-me de seu encontro com o então governador que passava pela sua cidade. Por obrigação o juiz foi visitar o governador no hotel onde se hospedava. Conduzido por um assessor o juiz foi levado ao quarto onde estava o governador. Ao entrar deu com o governador inteiramente nu. Após o que se sentaram e seguiu-se a conversa protocolar. O juiz metido num terno, o governador nu. Até a despedida.

Minha tia me contou sobre a passagem de Adhemar pela cidade onde ela morava. Moça na ocasião, minha tia teve a oportunidade de apertar a mão do conhecido político. Depois disso relatou-me ela não ter lavado a mão por uma semana… Eram outros tempos.

Políticos e seus seguidores…

Viagem no tempo

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Os gibis do Brucutu eram demais. O personagem Brucutu criado pelo desenhista V. T. Hamlin era um sujeito pré-histórico que preferia lutar contra dinossauros perigosos a viver entre seus conterrâneos no reino de Mu. Mas, algumas das aventuras do herói se passavam em outras épocas para onde era levado pela máquina do tempo, inventada por um cientista. Aliás, Brucutu fazia várias viagens por essa máquina, visitando épocas diferentes nas quais nos deliciava com estranhas aventuras. Vestindo apenas um calção de couro e sempre levando na mão um martelo de pedra o personagem de quadrinhos encantou gerações.

Viagens no tempo tem sido temas recorrentes no cinema. Como se esquecer daquele primeiro “Planeta dos Macacos” no qual o personagem vivido por Charlton Heston chega a um planeta após ter ficado no espaço e o encontra dominado por uma civilização de macacos? A última cena do filme na qual o personagem segue numa praia e, finalmente, descobre onde esta é inesquecível. “De volta para o futuro”, “Os 12 macacos”,”Looper”, são muitos os filmes que se servem do tema.  Sem nunca esquecer aquele primeiro “Superman” no qual o personagem vivido pelo ator Christopher Reeves voa em sentido contrário aos dos movimentos da Terra para fazer o tempo voltar e recuperar sua amada.

Mas, existem mesmo viagens no tempo? Os cientistas consideram a possibilidade como bastante improvável dado não se dispor de tecnologia para executá-las. O físico Stephen Hawking ressalta que o fato de não recebermos visitantes do futuro é um excelente argumento contra viagens no tempo. Entretanto, vez ou outra aparece alguém que se diz vindo do futuro. Divulga-se agora que um homem afirma ser viajante do tempo, vindo do ano de 2062 e fazendo previsões de como será o futuro. Teria chegado à nossa época em 2010 para alertar os japoneses sobre a ocorrência de terremotos.

O viajante do tempo esteve em nossa época até 30 de agosto de 2016 e, antes de partir, concedeu entrevistas a jornais do Japão nas quais, entre previsões, falou sobre a sua máquina do tempo sem, entretanto, explicar tudo. Sobre o futuro que nos aguarda disse que a energia utilizada será a solar, viagens interplanetárias passarão a serem comuns, carros voadores circularão com gasto mínimo de combustível, a genética será a área dominante da medicina e poucas mortes ocorrerão devido a enfermidades.

Anos atrás outro viajante do tempo se tornou famoso. John Titor teria vindo do ano de 2036 onde atuava como soldado do exército americano. Titor postava na internet suas previsões que até o momento se mostraram erradas.

Não se pode dizer que viagens no tempo não possam ocorrer. O universo nos fascina e a possibilidade da existência de seres extraterrestres alimenta nossas imaginações. Visitar tempos passados, conhecer o futuro, receber turistas de outras épocas são temas de fato inebriantes, mas que, ainda hoje, pertencem ao mundo da ficção.

Barbeiro italiano

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Há cabeleireiros que se ofendem ao serem identificamos como babeiros. Mas há anos quem cortava cabelos de homens eram barbeiros. Aliás, barbeiro também é pessoa que dirige mal veículos. Quem bate carro faz barbeiragem. Sem esquecer os barbeiros-cirurgiões que na Idade Média faziam cirurgias, principalmente em soldados feridos em campos de batalhas. Os barbeiros-cirugiões não eram considerados médicos. Só mais tarde surgiram os médicos cirurgiões.

O Guido era um italiano que imigrou para o Brasil. Veio sozinho, deixando país e irmãos no interior da Itália. Fez vida aqui cortando cabelos. Casou-se com uma brasileira e com ela teve filhos. Separou-se quando descobriu que ela o traíra com um amigo. Estavam os três num hotel quando o Guido teve que retornar a São Paulo, deixando a mulher e os filhos. Quando tornou ao hotel acabou sabendo pelas crianças ainda pequenas que o “tio” dormira no lugar dele, ao lado da mãe.

O Guido não gostava, mas não chegava a se incomodar quando se dizia que ele era barbeiro. Preferia o cabeleireiro. Casou-se pela segunda vez e vivia bem. Certo dia o encontrei no salão onde trabalhava. Estava eufórico. Ao me ver foi logo me participando sobre a razão da sua euforia: batera na mulher. Enfiara a mão na cara daquela desgraçada que tanto enchia o saco dele. Mulher ciumenta. Ouvi estarrecido. Acontece que o italiano era um cara de sangue quente, mas de boa paz. Bater na mulher? Não ele. Mas, estranhamento tinha feito isso.

Cerca de um mês depois soube que o Guido fora diagnosticado com tumor cerebral. Operado, sobreviveu pouco mais de um mês. Explicava-se a mudança de comportamento que o levara a agredir a mulher e tomar outras atitudes inesperadas.

Guido foi um “bon vivant”. Perdía-se com mulheres e gabava-se de suas conquistas.  A mulher com quem se casara tinha razão em seu ciúme. Não faz muito encontrei-me com ela na rua. Falou-me do falecido com alguma ternura. Mas, a roda da vida não para. Estava grávida. Agora vivia com um turco, um anjo de homem…

Lembrei-me do Guido. Embora mulherengo não admitia ser traído. Era do tipo que acredita que homens são feitos para terem várias mulheres. Agora, mulher casada só pode ter é amar um homem: o marido. O Guido era assim.

As Cataratas do Iguaçu

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Na casas de meus país havia um livro sobre curiosidades.  Continha informações consideradas indispensáveis a um cidadão de cultura mínima. Era um tempo no qual não se podia fazer feio caso algum desconhecido propusesse um tema para conversa. Em casa me diziam: leia, adquira conhecimentos, evite passar vergonha diante de estranhos. Preservava-se a cultura.

Nos ermos em que vivíamos, na passagem da década de 50 para a de 60, os livros eram grande fonte de informação, aprendizado e distração. A televisão ainda engatinhava e o sinal de vídeo era bastante limitado. De modo que só nos restava mesmo ler. Livros e jornais chegavam dias depois de sua publicação. Seu Brás assinava o Correio da Manhã do Rio que chegava a ele com dias de atraso. Mas ele o devorava, fervorosamente. E não se esquecia de recortar os quadrinhos do “Mutt e Jeff” os quais me dava após ler o “Correio da Manhã”.

No livro sobre curiosidades havia um memorável capítulo sobre as sete maravilhas do mundo antigo. Ali me inteirei sobre o Farol de Alexandria, o Colosso de Rodes e os outros cinco. O assunto me fascinava porque se referia a terras e épocas distantes. De modo que eu sabia detalhes sobre cada uma daquelas maravilhas.

Em julho de 2007 foram anunciadas, em Lisboa, as sete maravilhas do mundo moderno entre as quais o nosso Cristo Redentor. Ao lado dele a Muralha da China, o Taj Hamal e outras. Não sei qual o critério para a escolha. Talvez as maravilhas se restrinjam àquelas realizadas pelo homem. Mas, e as naturais? O mundo tem lugares belíssimos, tantos que seria difícil selecionar sete entre eles. Entretanto, a nenhuma lista de maravilhas naturais poderiam faltar as cataratas o Iguaçu cuja beleza é estonteante. Seguir pelas trilhas nas cataratas brasileiras e argentinas representa o contato com o maravilhoso. Ali o homem apequena-se diante da monumental volúpia das águas incansáveis que se projetam num show de cores e luzes. O Diabo anda solto nos redemoinhos de águas turbulentas que se curvam ante a magia do Criador que as engendrou. Ao observador resta entregar-se diante de tamanha beleza. São momentos nos quais a interação entre homem e natureza completa-se, deixando-se de lado a utopia da vida agitada em sociedade. As cataratas fazem renascer nos que têm o privilégio de visitá-las a simbologia primitiva que ligou o homem ao ambiente natural ao qual se adaptou.

Seguindo trilhas nas cataratas e inspirado pelo ambiente natural lembrei-me de José de Alencar. “0 Guarani” talvez tenha sido o primeiro romance que li. Nunca me esqueci do terrível Loredano que inferniza a vida de Ceci e Poti. Alencar foi um mestre da descrição, embora hoje me pareça excessivo e um pouco cansativo. Na primeira página de “O Guarani” Alencar descreve o trajeto sinuoso de um rio que finalmente nos diz ser o Paquequer. Trata-se de uma esmerada descrição nascida da pena de um mestre.

As cataratas são assim, encontro de forças que nos falam de perto. Despertam evocações, lembram-nos de que somos seres ligados à natureza que, em geral, desprezamos. A beleza das cataratas nos faz lembrar de que somos humanos, animais diferenciados, dotados de inteligência, construtores do mundo, ainda assim dependentes do meio que naquela região do Brasil se expõe com força e beleza.

Spoilers

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Os chamados “spoilers” não passam de uns chatos. São mesmo os tais estraga-prazeres. Não sei se ainda acontece, mas era comum encontrá-los nas filas de cinema que exibiam filmes de arte. Falando alto para que todos ouvissem e reparassem neles os “spoilers” difundiam sua pretensa intelectualidade. O problema maior relacionava-se com aqueles caras que já tinham assistido ao filme e voltavam para averiguar algum detalhe numa nova sessão. Então discorriam sobre a cena e a interpretavam. Obviamente, sendo “spoilers”, não deixavam de lado a oportunidade de estragar a diversão dos outros, contando o fim do filme. Certa vez presenciei um sujeito partir para cima de um “spoiler” que tinha narrado, em detalhes, o fim de uma trama de suspense.

Mas, reconheça-se, existe bons “spoilers”. Conheci um deles, frequentador assíduo de cinemas, que tinha por hábito narrar todo o enredo dos filmes. Educado, o rapaz sempre perguntava aos presentes na conversa se alguém teria assistido ao filme ou se pretenderia assisti-lo. Só quando os presentes o autorizavam começava sua narração.

Ocorre que o tal “spoiler” era um verdadeiro artista. Tanto que, na verdade, o modo como narrava acabava por descaracterizá-lo enquanto “spoiler”. Tal era sua aptidão em contar o enredo do filme, a riqueza de detalhes, que não se podia ouvi-lo sem prazer. Como isso acontecia nos intervalos de trabalho para almoço ou café as narrativas do nosso “spoiler” eram muito aguardadas. Se em uma ocasião não se dispunha a contar nada era abordado com a mesma pergunta: e aí, não viu nenhum filme?

Pois “assisti” a vários filmes através da prosa desse notável contador de histórias. Inesquecível a narrativa do filme “ A gaiola das loucas” que nos levou a risadas delirantes. Víamos os atores e cenas jocosas através das palavras de nosso hábil narrador.

Anos depois assisti no cinema à segunda versão do filme “A gaiola das loucas”. Pareceu-me inferior a primeira a qual “assisti” através da narrativa de nosso companheiro de trabalho.  Saí do cinema intrigado. Há pessoas que nascem com dons incomuns como esse de narrar histórias. Alguns contam enredos de filmes. Outros se tornam escritores. Há, também, aqueles que fazem uso de sua inegável capacidade de comunicação para engabelar os demais. Aliás, esses últimos, com alguma frequência, se tornam políticos.

Raindrops keep falling on my head

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Éramos cinco.  Chegáramos à casa do Baixinho por volta de oito da noite. A prova de Fisiologia seria na manhã seguinte e a matéria todos os capítulos relacionados ao sistema nervoso do livro do Guyton. Uma enormidade de conceitos e detalhes que deveríamos absorver até a madrugada.

Foi o que aconteceu. Cada um de nós lia um capítulo inteiro com muitas paradas para discussão de aspectos que não nos pareciam claros. Estudávamos sem espaço para distrações ou piadas. A missão era difícil, a coisa séria.

Lembro-me de que, no meio da madrugada, bateu-me o sono. Um dos amigos chamou-me a atenção dizendo: esse cara tá dormindo. Abri os olhos e protestei. Seguiu-se o desafio: então sobre o que estávamos falando? Repeti quase palavra por palavra o conteúdo da matéria. Admiraram-se da minha memória. Eu tinha boa memória.

Pelas cinco da manhã estávamos cansados. O pai do Baixinho havia se levantado e, pouco depois, reapareceu trazendo pão quentinho, vindo da padaria. Tomamos café, voltamos ao texto. Mas, não dava mais. Então o baixinho ligou o rádio. Subitamente, como se vinda de outro mundo, começaram a soar os acordes de um grande sucesso da época: Raindrops keep falling on my head.

Foi automático. Quatro de nós deram-se os braços e começamos a dançar como se estivéssemos num palco, apresentando-nos. O Gonzaga não dançou. Permaneceu sentado, olhando-nos, rindo daquilo, talvez extasiado com nossa juventude.

Hoje de manhã liguei o rádio do carro e comecei a ouvir Raindrops keep falling on my head. Quase 40 anos depois revi com nitidez a cena de nós quatro, cansados, dançando. Éramos jovens e não conhecíamos nada sobre nosso futuro. Mais tarde formam-nos na mesma faculdade e depois nos afastamos. Não sei como terá siso a vida de meus grandes amigos a quem deixei ao logo da estrada. O Gonzaga, aquele que ria nos vendo dançando ao final da louca madruga, o Gonzaga morreu. Nós, os demais, continuamos por aí. Com gotas de lembranças caindo sobre as nossas cabeças. Saudosas.

A manga talha o leite

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Não se podia ingerir manga com leite sob risco de danos à saúde. Ouvia-se isso em meus tempos de menino. Aliás, a manga não desfrutava de boa fama: junto com cachaça causava intoxicação; com ovo a manga provocava indigestão; era comer manga com jaca e ter dores de barriga.

Tabus alimentares sempre existiram, creio que ainda hoje vigorem nos interiores do país. Segundo Câmara Cascudo foi o formalismo religioso português o culpado pela existência desses tabus. Impondo obrigações ao corpo as almas permanecem seguras. O tabu da manga que misturada com leite daria congestão tem origem no período colonial. Com a produção abundante de mangas os senhores criaram o tabu para que os escravos não ingerissem a fruta e, depois, tomassem escondido o leite produzido nas ordenhas.

Existem inúmeros tabus relacionados a grande variedade de alimentos. Não me lembro bem porque, mas o pepino não era muito bem-visto. Com cachaça, por exemplo, provocaria congestão.

Medo de congestão era comum. Lembro-me de um cunhado do Juca que talvez tenha sido o homem mais feio que já vi. Creio que ali a feiura seria de nascença. Mas, dizia-se que ele ficara feio por ter sofrido congestão. Tomara banho logo depois de almoçar e deu no que deu.

Não é do assunto em questão, mas vale o parágrafo: o Juca. Um senhor com farta cabeleira e vasto bigode, sempre de terno escuro, nunca com gravata. Gorducho. Amava o boxe. Eu menino conversava com o Juca sobre os grandes campeões do passado. Ele sabia tudo sobre as lutas de Joe Louis. E conhecia bem a trajetória de Rocky Marciano. O Juca descrevia as técnicas utilizadas pelos lutadores, falava sobre o estilo de luta de cada um. Um dia lá se foi o Juca com a família, mudaram-se. O cunhado feio também desapareceu. Nunca mais os vi. Do Juca ainda vim a saber, anos depois, através de um sobrinho dele. Estava vivo, mas enfermo. Eram os anos 70.

Parágrafo encerrado de volta aos tabus. Lembrei-me do caso da manga ao ler que uma nutricionista justamente compareceu a um programa de TV para encarecer que o mito da mistura com leite não passa de uma bobagem. Aliás, completou informando que uma boa mistura para o leite é com morangos.

Comer é bom. Vale não exagerar.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 setembro, 2016 às 2:19 pm

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Afogamentos

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Minha irmã liga, falando sobre o afogamento do ator Domingos Montagner.  O desaparecimento do conhecido ator comove o país. Ao banhar-se nas águas do Rio São Francisco Montagner não resistiu à violência da correnteza. Seu corpo foi encontrado, horas depois, submerso, junto a pedras.

Minha irmã diz que o afogamento do ator nos trouxe a morte de nosso irmão nas águas do Rio Paraíba, região de Pindamonhangaba. O então rapaz de pouco amis que 20 anos de idade se afogou ao nadar durante um piquenique com amigos. O relato foi de que pouco antes almoçara e, depois, resolvera nadar. Em vão os amigos esperaram pelo seu retorno.

Na época vivíamos num lugarejo situado nos altos da Mantiqueira. Meu pai recebeu o telefonema sobre o desaparecimento do filho no final da tarde. Em seguida viajamos para Pinda num jipe que enfrentou a difícil estrada de terra da serra.

Já noite chegamos à casa de minha avó onde encontramos familiares consternados. Mas, mantinha-se a esperança de uma boa notícia. Com o passar das horas o temor acentuava-se. Tarde da noite um tio, militar de profissão, chegou de São Paulo, trazendo dois escafandristas.

Meu pai seguiu com meu tio e os escafandristas para o local do desaparecimento. Ficamos à espera. Eu era um menino de sete anos e só me lembro de que, na madrugada, meu pai reapareceu e, enfim, tivemos a notícia. O corpo de meu irmão fora encontrado no fundo de um braço do rio, preso a uma cerca de arame.

O restante é inenarrável. Seguiram-se os trâmites da morte. O corpo trazido para casa foi banhado, seguindo o costume da época. Cena forte presenciei no banheiro no qual entrei inadvertidamente. Trago na retina a imagem de meu irmão morto, nu, rosto inexpressivo, braços caídos, sendo banhado pelos parentes.

O corpo foi velado na sala grande. Minha mãe demorou-se a ver o filho no caixão. Permaneceu o tempo todo num cômodo ao lado. A certa altura decidiu-se. Acompanhei minha mãe nesse momento inesquecível. Guardo a imagem dela acariciando a cabeça do filho, despedindo-se dele.
Jovem e muito conhecido, o enterro de meu irmão movimentou a cidade. Pela primeira vez presenciei a despedida de alguém a quem amamos no cemitério. Entardecia. Depois as pessoas foram saindo. Fomos os últimos. Iniciava-se o triste período no qual, em vão, os familiares tentariam consolar-se.

Todos morrem um dia, mas vivemos como se não acreditássemos nisso.