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Ainda e sempre: Cauby
As imagens de Cauby Peixoto em seus últimos anos, envelhecido, cioso das palavras, ajudado para se locomover, apresentando-se sentado em seus shows, todas elas de certo modo foram apagando as memórias de outro Cauby, mais jovem e ativo, sempre excepcional intérprete.
Infelizmente, a memória nos prega peças desse tipo. Fortalecem-se as impressões recentes, muitas vezes em conflito com o passado. Em boa hora o documentário de Nelson Hoineff intitulado “Cauby, começaria tudo outra vez” devolve-nos Cauby por inteiro, recompondo a trajetória do cantor ao longo do tempo, devolvendo-nos a dimensão de seu incrível talento e de sua verdadeiramente assombrosa voz. Cauby é bom que se repita, foi um grande artista, muito grande. Aliás, há no filme um momento no qual Cauby diz para que o ouçamos: sou um artista, sou só um artista. Aliás, um artista completo, dedicado a fazer a aquilo que adorava fazer, ou seja: cantar. A imagem de Cauby é indissociável de sua voz, de vê-lo cantando. Numa de suas apresentações no Bar Brahma Cauby confessa seu a amor à música e ao ato de cantar. Ele diz que os problemas de sua vida foram pequenos, foi muito bom cantar.
Cauby foi um dos maiores - senão o maior – cantores brasileiros. Seu timbre musical permitiu que se adaptasse a vários gêneros musicais. No filme o revemos o Cauby dos anos 60, ídolo da Rádio Nacional, o Ron Coby em atividade nos EUA, o Cauby trazendo para o Brasil o Rock’n Roll, cantando de boleros a sambas, bossa nova e jazz, enfim um múltiplo intérprete cuja voz se manteve até o momento de sua morte. Aliás, pode-se dizer que Cauby morreu cantando porque, aos 85 anos de idade, tinha apresentações marcadas para o próximo fim de semana.
Um documentário é um conjunto de registros, alguns mais salientes que outros. Entre tantos registros torna-se inesquecível a figura de Cauby em seus mais de 80 anos de idade, sendo conduzido ao palco e, cortinas ainda abaixadas, preparando-se para apresentar-se. Ele quase não fala, seus olhos passam de uma pessoa a outra como se a indagar o que que se passa. Então soa o terceiro sinal, as cortinas se abrem, o cantor surge iluminado e algo nele se transforma. É como se todo o organismo se encontrasse na poderosa voz que ainda conserva apesar da passagem dos anos. Cauby rejuvenesce, repentinamente. Sua voz encanta o público, seu rosto exibe felicidade. Está no seu melhor, indiferente ao mundo, fiel à sua arte e seu público.
Cauby foi muito grande. Deixa saudades.
Os 33
Há cerca de quatro anos o mundo ficou estarrecido pela ocorrência de um estupro na Índia. Membros de uma gangue estupraram uma jovem dentro de um ônibus, submetendo-a a toda sorte de sevícias. Depois de usá-la jogaram-na fora do ônibus. A jovem morreu devido aos ferimentos. Simples assim, em nome do direito dos machos. A reação ao terrível ato deu-se em escala global. O crime praticado na Índia infelizmente somou-se a tantos outros do mesmo gênero contra os quais os protestos nada têm conseguido. Estrupadores não têm se mostrado sensíveis aos protestos e ações contra seus pérfidos atos.
Agora chegou a nossa vez. Da Índia para o Brasil. Uma jovem acordou nua, drogada, e contou 33 homens que, segundo ela, a estruparam. O caso, por si só inimaginável, alcançou repúdio para além das nossas fronteiras. Somou- se a uns série de más notícias sobre o país que, dia a dia, se avolumam na mídia internacional.
Para que se tenha ideia os últimos dias têm sido pródigos em matéria de péssimos acontecimentos. Não apenas a crise política e econômica atravessada pelo país e a corrupção têm chamado a atenção no exterior. Ontem mesmo 150 cientistas recomendaram a não realização ou transferência para outro país das Olimpíadas a se realizarem no Rio. Segundo eles as Olimpíadas do Rio podem ser o início de uma epidemia global provocada pelo vírus zica. Entretanto, o comitê responsável pelas Olimpíadas decidiu não atender à sugestão dos cientistas. E a OMS (Organização mundial de Saúde) alertou que não existe justificativa para adiar os Jogos Olímpicos.
A “cultura do estupro” comentada no exterior ganha foros de prática cotidiana no país, afetando a imagem dos brasileiros. O inominável ato praticado por esse bando de meliantes, que se deram ao luxo de publicar vídeo na internet, exige pronta resposta das autoridades e punição dos envolvidos. O desrespeito às mulheres, tantas vezes machucadas e perseguidas, está a clamar por atitudes firmes. Infelizmente, o caso dessa pobre moça violentada por um bando apenas se soma a outros sobre os quais não se têm notícias.
A ver como se portam as autoridades daqui pra frente em relação a práticas tão hediondas.
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Homens que matam
Em cidade do interior de São Paulo um médico chega ao refeitório de uma unidade clínica onde está um colega, seu chefe no serviço. Inesperadamente, saca um revólver e atira no chefe, matando-o. Em seguida o médico aponta a arma contra si mesmo e dispara, matando-se. O assassinato de um médico e o suicídio de outro, provavelmente por razões ligadas ao trabalho, impressiona. Não se trata de mortes devidas à violência que ocasionalmente pode nos atingir nas ruas, nem de crimes praticados por bandidos que nada têm a perder. Dois homens morrem em circunstância incomum, um deles determinado a matar e morrer.
Uma apresentadora de TV está na capital mineira, hospedada em quarto de hotel. Um fã da apresentadora chega ao andar onde ela está hospedada, domina o cunhado dela e o obriga a leva-lo ao quarto. O fã obriga a apresentadora, seu cunhado e a cunhada, a ficarem de costas para ele, sob a mira do revólver. Veio para matar a apresentadora por quem está apaixonado. Acusa-a de ignorar suas mensagens, por isso vai morrer. Mas, o cunhado reage, entra em luta corporal com o fã, toma a arma dele e o mata. A família do rapaz morto não consegue acreditar que tenha sido possível a participação dele nessa louca ação. O irmão se desespera, diz que ele era um bom rapaz, que a família não sabia de sua paranoia em relação à apresentadora.
Há tempos, conversando com um desconhecido na praia ele me falava sobre o caso, acontecido no Rio, no qual uma caloura de medicina foi assassinada durante assalto. Estava ela num carro quando foi atingida pelo tiro que roubou sua vida. O desconhecido comentava sobre a dor da família, recentemente muito feliz pela jovem ter passado no vestibular. A brutal interrupção da vida de alguém tão jovem e em tal circunstância é inadmissível. Inaceitável. Meu interlocutor dizia que num caso assim nada pode se esperar da justiça, sempre demorada e branda com os assassinos. Então afirmou que se fosse com ele, caso fosse o filho dele, não teria dúvidas, mataria o bandido.
Não sei dizer se meu o meu interlocutor de fato teria coragem para tanto. Nada nele sugeria a capacidade de elaborar um plano de assassinato e seguir em frente com a realização de um crime premeditado. Fala mansa e extremamente educado não se esperaria de homem daquele perfil algum tipo de violência.
Entretanto, há que se lembrar: existem homens que matam…
A perda de 100%
Há um mês um homem exercitava-se, junto ao mar, no Rio de Janeiro. Ele corria na ciclovia há pouco construída, na Av. Niemayer. Inesperadamente, ergueu-se do mar uma grande onda que atingiu a ciclovia quebrando-a. O homem que corria foi tragado pelas águas do mar e morreu. Pouco depois seu corpo, sem vida, foi resgatado. O acidente revelou a fraca estrutura da ciclovia mal construída. Técnicos avaliaram que a estrutura deveria ser doze vezes mais forte para ser segura.
Um mês depois a esposa do falecido concede entrevista. Não há como dimensionar a dor de alguém que, certa manhã, despediu-se do marido e saiu para trabalhar sem imaginar que, pouco tempo depois, iria perdê-lo. A brutalidade do fato prostra essa mulher que, a duras penas, segue resistindo. Um dia depois do outro. A dor que não passa ao lado do único filho que perdeu o pai tão inesperadamente.
Das lágrimas e palavras da viúva, do desespero incontido, destaca-se a expectativa de que os responsáveis sejam punidos. A repórter pergunta se a mulher espera por justiça. Responde, dizendo que para ela de nada adiantam as estatísticas. Tanto faz que se destaque o fato de ser uma morte em meio a um milhão de pessoas. Para ela e o filho a estatística da perda é de 100%. Eles perderam tudo.
A dimensão de uma perda certamente se liga a quem é afetado por ela. A imagem do sofrimento da mulher que descreve como veio a ser avisada de que a notícia do acidente da ciclovia, ouvida no rádio, justamente relacionava-se com a perda de seu marido, emociona. Não há limites para a dor estampada na face de alguém que sofre e resiste, buscando superar algo incontornável.
É humanamente impossível lidar com perdas como a dessa senhora que chora pelo marido morto na destruição de um trecho da ciclovia.
Acidentes aéreos
Não adianta dizerem que o transporte aéreo é o mais seguro que existe. Morre-se mais no trânsito que é muito mais perigoso. Todas essas afirmações tornam-se nulas quando você está sentadinho na poltrona X, de banco reclinável, e sente algum tipo de abalo na aeronave. Turbulência né? Que bom, turbulências não derrubam aviões. O que faz avião cair é falha de piloto, pane de motor, ataque terrorista etc. Não teve o caso daquele sujeito que se trancou na cabine de pilotagem e arremessou o jato numa montanha? O cara queria se matar, mas não queria morrer sozinho. Desses que tem na cabeça a ideia de levar muita gente com ele. Então, concordem: tudo pode acontecer.
Os acidentes de trânsito têm a “vantagem” de ocorrerem aqui embaixo. Pisar sobre a terra garante alguma segurança. Os aéreos começam acima das nuvens, mais de 8 mil metros distantes de nosso amado solo. Esse detalhe gera a incerteza, daí existirem pessoas que não entram em avião de jeito nenhum. Nem que mate. Um grande time de São Paulo teve em suas fileiras um meia armador dos bons cuja carreira foi prejudicada porque ele não viajava em avião de jeito nenhum. O time deslocava-se por via aérea, o jogador enfrentava longos trajetos de buzum.
Notícias sobre acidentes aéreos impressionam. A cada vez que um avião cai vem a impressão sobre como teriam sido os últimos instantes dos passageiros. Os segundos finais de puro desespero diante do inacreditável fim, como teriam sido? Ninguém quer pensar nisso, mas se eu estivesse numa aeronave, sabendo-a em rota de colisão? Caramba!
Ontem um avião decolou do aeroporto Charles de Gaule, Paris, em direção ao Cairo. A bordo 66 pessoas entre passageiros e tripulantes. A aeronave desapareceu no momento em que sobrevoava o mar Mediterrâneo. Até agora não se sabe o que aconteceu, mas coloca-se como causa possível um atentado terrorista. De todo modo os terroristas do Estado Islâmico (EI) podem bem ter sido os autores do atentado. Recorde-se que no final do ano passado um avião russo explodiu, matando 224 pessoas. O EI assumiu a autoria do atentado. Até agora organizações terroristas não assumiram a culpa pelo acidente de ontem.
Há credos religiosos que ligam o modo da morte às ações e obras realizadas em vida. No espiritismo acredita-se que cada pessoa teria sua morte em acordo com suas necessidades de redenção. Entretanto, a morte de 200 pessoas num acidente aéreo as iguala na circunstância de um mesmo fim comum. É inimaginável que os passageiros de um avião acidentado tenham sio “escolhidos” para estarem ali, merecendo o mesmo tipo de morte dadas as semelhanças de suas necessidades de redenção no post-mortem. Mas, segundo a doutrina espírita as coisas não passam desse modo. Embora a circunstância do desastre seja a mesma, para cada um está reservada uma morte diferente e específica. Aliás, segundo o espiritismo, esse princípio é válido para qualquer tipo de morte.
Há ocasiões em que viajamos em aviões com aspecto envelhecido o que nos causa temor. Numa viagem entre Atlanta e Los Angeles, realizada há muitos anos, cheguei a encomendar minha alma porque aquele avião balançava e não paravam os ruídos de coisas batendo umas contra as outras. Mas chegamos bem, não morri como prova a minha presença aqui.
Lembranças
Há as boas. E as ruins. Lembrança ruim quase sempre é forte, chega a se sobrepor a boas recordações. Da Paris dos anos 90 ficou-me um segurança me acompanhando durante todo o tempo em que estive dentro de uma grande loja. Eu e minha mulher talvez figurássemos como algum tipo de meliantes prontos para roubar tudo. De Sidney restou o oficial da imigração que, ao identificar-nos como brasileiros, disse em bom inglês ao colega de trabalho: monkeys.
No mais nenhuma reclamação. Paris sempre fantástica, muito além de seus vinhos e queijos. Andanças inesquecíveis em museus e catedrais. Noites regadas aos bons vinhos dos franceses. Sem esquecer os Picassos, Rodins… e a torre Eiffel, porque não? E Sidney, hein? A beleza da chegada pelo mar vindo de Manley, a Opera House à esquerda, os barcos ancorados, os prédios ao fundo, tanta beleza. Então por que persistem as lembranças ruins, hiatos curtíssimos em meio a tantas coisas tão gratas que em nada empalaram estadias tão felizes?
Talvez porque sejamos humanos e suscetíveis ao que nos desagrada e marca, situações que nos constrangem porque ligadas à nossa origem e nacionalidade. O homem da imigração australiana na verdade nem nos viu. Recebeu os passaportes com indiferença e, para ele, o que pesou foi a origem dos viajantes: Brasil. Leu o nome do país e emitiu seu comentário como se fora juiz de povos e nacionalidades. Certamente, não fazia ele ideia de nosso país, de sua grandeza, de um povo que sobrevive a altos e baixos, mas tem orgulho de sua terra. Quando ao segurança de loja, tratava-se um sujeito simplão que, ao ver faces diferentes daquelas a que se habituara, decidiu-se a agir tão zelosamente.
Não sei se acontece a todo mundo, mas há uma idade em que nossos pecados começam a pesar mais. Lembramo-nos com frequência dos deslizes a que estão sujeitas todas as pessoas, só que os nossos tornam-se de repente tão grandes. Aquele prefeito da cidade de São Paulo a quem pedi uma garrafa de vinho quando em sua casa, hoje me causa vergonha pelo fora de propósito do ato. Mas, na época, não fora tão natural pedir ao dono da casa um pouco mais de vinho?
Sabemos que as memórias são gravadas em circuitos formados por neurônios interligados. A cada vez que nos recordamos de algo esses circuitos são ativados e se tornam mais fortes as lembranças. Imagino que ainda descobrirão haver nesses circuitos características hoje desconhecidas. Não me surpreenderia se descobrissem que circuitos de lembranças ruins são mais resistentes, daí as memórias por eles armazenadas se tornarem mais duradouras. Quem sabe não seria essa a explicação para tantas coisas que gostaríamos de esquecer, mas que nos retornam com frequência, roubando-nos tranquilidade e sono.
Cauby
Emocionado ao receber a notícia da morte de Cauby Peixoto. O cantor que desaparece fez parte da história de vida de milhões de brasileiros nas últimas seis décadas. Com ele aprendemos a cantar músicas inesquecíveis como a famosa “Conceição” e essa maravilha chamada “Bastidores”.
Cauby era proprietário de uma das maiores vozes entre intérpretes brasileiros. Os mais velhos o colocavam junto de Orlando Silva que, para muitos, terá sido o maior cantor do país. Mas, Cauby sempre se mostrou eclético. Variando entre samba, canções, jazz, músicas de carnaval, foxtrotes, músicas italianas, bossa nova e até rock Cauby notabilizou-se pela voz à qual nenhum ritmo parecia estranho.
Às novas gerações certamente escapará a dimensão do fenômeno Cauby. Ele tornou-se ídolo numa época anterior à da televisão na qual predominava o rádio. Era o grande Cauby da Rádio Nacional, sempre espalhafatoso, atraindo multidões de fãs que simplesmente o atacavam. É conhecido o fato de seu empresário mandar fazer costuras frágeis em seus ternos para que as fãs pudessem rasgá-lo quando em contato com o grande ídolo. Sempre cantando, Cauby resistiu aos modismos, tantas vezes incorporando-os ao seu repertório. Morto aos 85 anos de idade, pode-se dizer que Cauby desaparece em plena atividade, ainda se apresentando em duos com sua sempre querida Ângela Maria.
Lembro-me de que no final dos anos 50 do século passado Cauby excursionava apresentando-se em várias cidades do interior do país. Certa ocasião o cantor apresentou-se numa cidade de São Paulo na qual eu cursava a primeira série do então ginásio. A expectativa e o frenesi pela presença de Cauby na cidade são inesquecíveis. Não se falava noutra coisa. O grande Cauby despertava em fãs não só curiosidade e admiração, mas puro fascínio. Era o ídolo vindo da capital federal, aquele que frequentava as capas de revistas e reinava como cantor na época das Rainhas do Rádio como Emilinha Borba, Angela Maria e Dalva de Oliveira.
Poucas vezes o país terá tido uma estrela da grandeza do cantor que hoje desaparece, deixando órfãos a nós, seus eternos fãs.
Um time de homens
Na cerimônia de posse um time de homens: nenhuma mulher. Respiravam-se andrógenos. No conjunto a turma assemelhava-se a uma daquelas defesas fechadas de time do interior: algo confusa com todo mundo atrás para garantir o resultado. Nada de eufemismos. O negócio era pegar pesado, acabar com os adversários. Assim, um a um os ministros foram empossados. À frente deles um baixinho maneiroso, cheio de sorrisos, quase saltitante. Mais parecia uma criança no momento de apagar as velinhas do bolo de aniversário.
Apagou-as com relevo. À frente de dois pequenos microfones o novo presidente foi se abrindo. Tinha classe, isso se percebia. Gerado em forno diferente dos de seus antecessores mais parecia um pequeno mágico de cuja cartola, de repente, poderiam sair coisas inesperadas.
Mas o novo presidente recolheu-se. Preferiu mostrar-se simples, sem afetação. Hábil fez e desfez no uso de maneirismos cultivados em longa trajetória parlamentar. Era um sujeito curtido na rinha das disputas e acordos aquele que se dirigia ao país, aparentando magnanimidade.
Era o Temer. No discurso falsamente improvisado foi dizendo justamente aquilo que se queria ouvir. Pôs luz em aspectos duvidosos, garantindo respeito a acordos já estabelecidos. Segurou firme no leme da Lava-Jato agora verdadeira instituição. Acenou aos desvalidos com a continuidade dos programas sociais a serem aprimorados. Chamou todos ao trabalho para vencer a crise, pedindo união. Foi leve, direto, preciso, enfim fez o papel do político exigido pela hora.
Dará certo ou não: são outros quinhentos. Mas, alavancou-se alguma esperança naquele bando de homens de terno que, de repente, substituíam faces das quais estávamos cansados. Deu para lembrar de que aquela gente não pisava no palácio do governo a mais de uma década. Talvez por isso se mostrassem tão eufóricos. Desembarcavam no poder como um bando de exilados, subitamente devolvidos à sua terra.
Era, sim, um time de homens atrás de um baixinho muito discreto e feliz.
Chegadas e partidas
Dilma está na TV, afastada da presidência, dizendo-se vítima de um golpe. Importante: ela parece acreditar piamente nisso. Referências genéricas a possíveis erros em seu governo. Mas, vítima, sim, vítima de grande injustiça. Ela que é mulher, que foi torturada, que lutou por esse Brasil e continuará lutando. Assim fala a presidente.
Fora o governo, os políticos que o apoiam e os militantes sempre ativos, respira-se. Quem sabe com a mudança de governo o país possa começar a sair do abismo em que foi jogado por tantas tramoias, roubos, corrupção, políticas erradas, decisões absurdas e por aí vai.
Difícil compreender o que se passa na alma de alguém cuja derrota não deixa de ser monumental, exibida ao vivo e a cores aos olhos do mundo. O afastamento, recomendado como, talvez, a única forma de tentar tirar o país do atoleiro, certamente será incompreensível para a presidente que se revela ciosa de seus deveres e nega a prática de qualquer crime ou irregularidade. Trata-se do conflito entre a fé pessoal e a participação coletiva. O que parece haver em Dilma é uma enraizada fé em seu caráter que jamais poderá admitir possa ser questionado por ninguém.
A presidente do Brasil deixa o cargo e avisa que lutará contra o golpe. Não parece estar preocupada com o coletivo do país, mas, sim, em preservar sua história pessoal. Personagem de complexa avaliação a mulher que deixa a presidência.
E chega aquele de quem pouco se espera e reza-se para que possa surpreender. Tido como político hábil, comparado a mordomo de filmes de terror pelo aspecto pessoal, tem o presidente que assume enorme barreira, quase intransponível, à sua frente. Para conseguir alguma cosia contará com odientas reações e oposição permanente dos adversários que ora são apeados do poder.
O Brasil nunca foi, ao longo de sua história, um país de tantas chegadas e partidas.
Controlando o medo
Não sei se ainda se educam crianças na base do medo. Será lamentável se assim for. Quando criança meus medos relacionavam-se a possibilidade de encontrar almas do outro mundo. Medo de fantasmas, portanto. Acrescidos de medos de personagens fantásticos como vampiros e lobisomens. Filmes de vampiros, em preto-e-branco, causavam-me arrepios. Mas, para que assistir se só faziam alimentar o medo? Acontece que o medo atrai. Dele nasce o conflito entre o provável e o improvável. Os filmes de terror usam e abusam de clichês muito conhecidos. Aquela mulher frágil a quem acompanhamos, circulando numa casa escura e vazia, que adentra um cômodo no qual o horror fatalmente a espera, ela somos nós diante de nossos medos, atraídos pelo insondável que queremos evitar, mas ao qual somos levados pela curiosidade.
Agora divulga-se que a drª. Merel Kindt, da Universidade de Amsterdã, encontrou um meio de apagar as memórias do medo. Como se sabe as memórias nada mais são que circuitos neuronais que se tornam cada vez mais fortes cada vez que entramos em contato com o fato que proporcionou as ligações entre os neurônios que os formam. Acontece que no momento em que algum fator os estimula - o novo contato com algo de que se tem medo, por exemplo - esses circuitos se tornam temporariamente instáveis. A técnica da drª. Kindt consiste em utilizar a conhecida droga propranolol, justamente nesse momento de instabilidade para bloquear o circuito do medo.
A drª. Kindt reuniu um grupo de pessoas com medo de aranhas e testou com elas o efeito de sua tese com o propranolol. Incialmente essas pessoas foram colocadas em contato com uma tarântula e, obviamente, não se aproximaram dela. Estava dado o estímulo inicial para desestabilizar o circuito do medo de aranhas. Então procedeu-se à ingestão do propranolol. Os resultados foram os esperados: as pessoas perderam o medo de aranhas e aproximaram-se das tarântulas, algumas delas chegando a tocá-las.
O propranolol é um betabloqueador que age no coração e na circulação, sendo usado para dores no peito (angina), pressão alta e outras situações. Note-se que em sua experiência a drª. Kindt fez uso de dois grupos de controle que também tiveram contato inicial com as aranhas, mas não receberam posteriormente o propranolol. Os membros desses grupos de controle continuaram com seu medo de aranhas, diferentemente dos que receberam o propranolol.
De modo que existe um meio de zerar certos medos que temos e muitas vezes levamos por toda a vida. Conhecemos, por exemplo, pessoas que de modo algum dormem no escuro, outras que temem encontrar-se com mortos e assim por diante. Seria interessante submetê-las ao apagamento de suas memórias relacionadas a medos específicos através do uso do propranolol.
Sinceramente, não sei se ainda me resta algum medo de vampiros, mas não custaria assistir a uma daqueles horríveis filmes com o Bela Lugosi ou o Peter Kushing - em preto-branco – no papel de vampiros para reestimular os circuitos dos meus medos e apagá-los com um comprimido de propranolol. Quem sabe…