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Piada de alemão
Erdogan está muito puto. Exige reparação da Alemanha. O governo de Erdogan, presidente turco, entrou com ação na Procuradoria alemã para processar o comediante alemão Jan Böhmermann, apresentador de TV, por um poema satírico recitado em seu programa. O fato gerou discussão na Alemanha sobre a liberdade expressão no país. A chanceler alemã, Angela Merkel, viu-se obrigada a se defender de críticas pela dependência em relação à Turquia após acordo pela contenção de refugiados.
Mas, o que diz, sobre Erdogan o poema do comediante? O que diz a ponto de ser considerado ofensa ao povo turco? Bem. O comediante apenas afirmou que o líder turco tem “pinto pequeno”, assiste a filmes de pornografia infantil e gosta de fazer sexo com cabras. Só.
O caso faz lembrar as piadas do Charlie Hebdo que tão funestas consequências tiveram. Todo mundo se lembra da reação de terroristas muçulmanos que invadiram a redação do jornal e assassinaram vários jornalistas. O caso estarreceu o mundo. Nasceu o “Eu sou Charlie” com milhares de franceses nas ruas de Paris, protestando contra o terrível ataque. E o jornal não se intimidou, continuando com as sátiras às crenças muçulmanas.
É complicada a relação da palavra “limite” com “liberdade de expressão” dado que liberdade não se casa bem com limites. Por outro lado, existe a questão do bom senso. Quando um jornalista do Charlie desenha sua caricatura ofensiva sabe que ela despertará reações. Ao publicá-la ele faz uso de sua liberdade de expressão, mesmo que isso possa colocar em risco a segurança de seus conterrâneos e do próprio país. Não se pode negar ao jornalista o direito de publicar, dado que vive num país democrático onde as prerrogativas dos cidadãos são previstas na Constituição. Mas… Mas, o quê? Ainda acho que cabe ao jornalista julgar ou estabelecer até onde deve fazer uso de sua liberdade.
No caso do comediante alemão não se pode furtar a dizer que, no mínimo, o rapaz carece de bom gosto e imaginação. Há piadas mais engraçadas e inteligentes. Afirma-se que Erdogan não deu a mínima para a piada, mas está usando o caso para destacar a dependência alemã em relação a seu governo. Pode até ser. Entretanto, homens não gostam, nem por brincadeira, de afirmações públicas sobre o tamanho de seus bilaus. Quanto às demais citações, são horríveis, mas deixa pra lá. Agora, “pinto pequeno”…
Sim ou não
Na briga Batman X Superman não tenho dúvidas: sou Batman. Batman é um cara dos nossos. Depois daquela série de quatro gibis que anunciaram o “novo Batman” passamos a ter um super-herói mais humano, problemático, com dramas de consciência, marcado por ter assistido ao assassinato dos pais em criança. Já Superman é Superman. Gosto dele, mas o cara veio de Kripton, enviado pelo pai Jor-El quando o planeta explodia. Chegou aqui já com superpoderes tais como o de voar e a grande força. Sua fragilidade está no uso do mineral kriptonita ao qual é sensível, perdendo os poderes quando exposto a ela. Batman não voa, aceita porrada, tem o batmóvel que é fantástico e precisa, muito, do apoio de seu mordomo Alfred que o criou depois da morte de seus pais.
Poderia citar outras situações nas quais é bem possível optar por um dos lados sem medo de errar. Agora não me peçam para escolher entre impeachment ou não. Como saber o que de fato é melhor na grave situação que parece não ter fim?
O governo da presidenta está acabado, não restam dúvidas. A presidenta deu mostra de que não tem como reorganizar o poder, dado incorrer numa lamentável sequência de erros primários. O governo e o partido situacionista não sabem fazer outra coisa que não a de negar diariamente acusações que se acumulam. A tudo rotulam como mentira deslavada. Não sei, nunca soube! O companheiro de véspera a quem se dava toda credibilidade passa a ser um mentiroso no dia seguinte em que confessa através de delação premiada. O companheiro que tinha reputação ilibada até a noite anterior passa a não se moralmente confiável na manhã seguinte quando decide delatar.
Razões não faltam para que se queira o fim do atual governo. A crise econômica, a recessão, o desemprego galopante, a paralisia da indústria, a retração do consumo, a queda nos investimentos, o dólar alto, o PIB que despenca, a inflação, a espantosa corrupção, a demolição da Petrobrás, a negociata das empreiteiras, a lista de descalabros parece não ter fim. O Brasil agoniza e faz-se preciso salvá-lo porque este é o barco em que estamos e morreremos juntos.
Por outro lado, as perspectivas do impeachment, após consumado, não são animadoras. O fim do governo não representa o fim da crise. Tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes. Quem assumir o governo terá nas mãos o maior abacaxi de nossa história. Abacaxi amargo e nas mãos de quem? Esse “quem” é o maior problema. O Brasil de hoje não tem “quem”. De tal modo deturparam-se as ações dos políticos que não se sabe em quem confiar. As sessões da Câmara Federal mais parecem disputas entre grupos de jovens nos diretórios acadêmicos. Situação e oposição se apossam do hino nacional que, afinal, pertence mesmo é ao povo. Leiloam-se cargos, estabelece-se um comércio de compra e venda de cargos em troca de votos. No meio disso, em quem acreditar?
Algo precisa ser feito, com urgência, para recolocar o país nos trilhos. Mas, assim parece, sempre será um trem sem maquinista confiável. De modo que se tivesse que votar entre o sim e o não do impeachment ficaria em grande dúvida. Talvez votasse no sim pelo nojo à desfaçatez por tanta corrupção. Quem trabalha e ganha o suado e restrito salário do mês não pode se conformar com as fabulosas cifras de desvios praticados por um bando de ladrões.
Herança maldita
A expressão “herança maldita” tomou corpo no campo político brasileiro. Partidários do PT passaram a usá-la para dizer que receberam o Estado em péssimas condições ao assumir o poder depois do período FHC. Há que se reconhecer a inventividade dos marqueteiros sempre muito hábeis em criar expressões que se tornam populares. A qualquer coisa que não dá certo lá vem a tal “herança maldita” para explicar o fato. Não se sabe como hoje a expressão não vem sendo usada contra os que a cunharam, isso depois de tanta falcatrua exposta diariamente nas ações da polícia federal.
Mas, falar em herança nos remete ao que acontece no Peru onde a filha de Fujimori é candidata à presidência da República. Fujimori, o “El Chino” foi aquele que derrotou Vargas Lhosa, tornando-se presidente da República. Foi também aquele que promoveu a esterilização de 250 mil pessoas no Peru numa política de controle populacional. Agora Fujimori está preso, mas, sua filha, permanece como forte candidata e provável futura presidente da República peruana.
O Peru está dividido. Há grande rejeição à filha de Fujimori, justamente pelo que ele fez. Será ela continuação dele? Terá “herdado” as características do antigo presidente? Se eleita anistiará o pai tirando-o da cadeia?
Obviamente, essas perguntas não têm respostas e só o futuro poderá esclarecê-las. Os casos de personalidades públicas que participaram de malefícios a grande número de pessoas não parecem ter tido continuidade nas gerações seguintes de suas famílias. Talvez até mesmo porque filhos e netos dessas pessoas não tenham conseguido assumir posições de relevo na sociedade. Três filhos de um sobrinho de Hitler vivem nos EUA com nomes trocados e parece haver entre eles pacto para não deixar descendentes.
É provável que a filha de Fujimori venha a ser a próxima presidente peruana. De todo modo o mundo de hoje é bem diferente daquele em que o pai dela ocupou a presidência. A América Latina respira os últimos fôlegos de disfarçado despotismo na Venezuela cujo regime balança e parece não haver mais espaço para mãos fortes no continente. Entretanto, repostas concretas, como se disse, pertencem ao futuro.
Videntes e cartomantes
Não sei se você acredita em videntes e cartomantes. Há quem as visite com frequência. Basta um probleminha para procurar-se previsões sobre o futuro. Cartas e búzios parecem responder às perguntas de quem as faz. O que dizem as cartas? A resposta e o encaminhamento dos problemas podem estar bem ali, ao alcance do interessado, na configuração do baralho ou distribuição dos búzios.
O caso era contado pelos mais velhos da família. Moça bonita recebeu de cartomante informação de que se casaria com ricaço, seria feliz e conheceria o mundo. Foi cortejada por dois rapazes, ótimos pretendentes, nenhum deles rico. Dispensou-os, sempre à espera do príncipe prometido. Envelheceu à espera. No fim da vida contava sobre sua sina, sem jamais perder a esperança. Morreu sozinha, sem ver cumprida a previsão. Chamava-se Glorinha. No velório diziam: Glorinha, a que morreu esperando pela glória.
Mas, existem cartomantes que acertam. Coincidência? Sabe-se lá. Há cartomantes especializadas. Algumas são boas para negócios, outras para o amor. Conta-se que empresários importantes não fecham grandes negócios sem antes consultarem famosas cartomantes. Políticos também fazem uso desse expediente.
Em Brasília - conta-se - é grande o comércio de videntes e cartomantes. Videntes famosas cobram caro por uma consulta. Políticos importantes calibram seus passos segundo a previsão de videntes. Muita gente não resiste ao fascínio de uma consulta ao “outro lado”. É o que corre sobre o assunto.
Podem rir mas, talvez, a solução para a crise brasileira que se arrasta e complica a cada dia dependa da participação dessas boas almas que se entregam à previsão do futuro. De uma coisa estamos certos: não existe solução à vista. Brasília transformou-se numa gigantesca Babel onde cada um diz coisa diferente dos outros e ninguém se entende. Não será que uma vidente…
Conheci uma vidente que operava junto a grandes empresários. Certa vez perguntei a ela sobre como se tornara vidente. Disse-me que pessoas nascem com a sensibilidade, não se trata de escolha pessoal. No passado trabalhara com a polícia, ajudando na solução de crimes complexos. Era levada por policiais a cenas de crimes e sua missão era a de esclarecer o que ali ocorrera. Mas, parara com isso dado o choque a que era submetida nessas missões. Voltava para casa em péssimo estado e só três dias depois sentia-se recomposta. A partir daí tornara-se vidente estabelecida. Coisa de filme.
Mas, sobre a crise brasileira, será mesmo que uma boa vidente…
Torcida única
Na final do Brasileirão de 1977- realizada no Mineirão, em março de 1978 - fui a Belo Horizonte para ver o jogo. Já no avião a vitória do Galo era cantada em prosa e verso. Repórteres esportivos cariocas diziam, para quem quisesse ouvir, que se tratava de jogo para cumprir tabela. O grande time do Galo já era o campeão.
Como se sabe futebol se ganha dentro das quatro linhas e só depois do apito final do juiz. Deu São Paulo nos pênaltis. No Mineirão lotado de atleticanos o silêncio era ensurdecedor. A torcida são-paulina ficara num canto, espremida entre os rivais. Éramos não mais que uns 500 diante da avassaladora maioria atleticana.
Terminado o jogo saímos, eu e mais dois amigos, muito quietos. Receávamos extravasar a alegria pelo título, afinal pisávamos território inimigo. Mas, nem assim passamos despercebidos. Já na rua um atleticano nos parou e, dirigindo-se a mim, disse: vocês tiveram muita sorte hoje, tanta que podem passar sem risco.
Como aquele mineiro descobriu três paulistas em meio à multidão até hoje não sei. Mas, não creio que houvesse perigo. Brigas no futebol sempre existiram. Assisti a jogos em que ocorreram grandes quebras entre torcidas. A paixão pelo o time do coração leva muita gente ao descontrole e dá no que dá.
Entretanto, não havia essa coisa tremenda de torcedores de equipes contrárias marcarem encontros, pela internet, para simplesmente brigarem. Violência atrás de violência, com gente ferida e até mortes muitas vezes de pessoas que, por acaso passavam pelo local da ocorrência. Homes armados com pedaços de pau, facas etc. digladiando-se, animalmente, pelo simples prazer do confronto.
Segue-se que a Justiça determinou, em São Paulo, a obrigatoriedade da presença de torcidas únicas nos jogos. Evita-se, assim, a progressão de cenas lamentáveis, nas quais destaca-se a pura bandidagem empenhada em agressões a quem quer que seja. Mas, com isso, perde todo mundo. Perde o futebol muito em vibração. Perdem as equipes com redução das rendas dos jogos. Perde o torcedor impedido de acompanhar o seu time nos jogos em que não figura como mandante.
Mas, que fazer diante da violência incontida? Como controlar a sede de luta de grupos que marcam seus embates até mesmo em lugares afastados dos estádios? De grupos que organizam emboscadas?
Está na internet a fotografia de um homem atingido e morto quando passava por lugar de conflito entre torcedores de clubes rivais. Pede-se a quem por acaso o conheça o favor de identificá-lo. Vítima da bestialidade permanece ele à espera de que venha a ser devolvido à família para a realização do funeral.
Escafandristas
Essa palavra “escafandrista” tornou-se para mim natural de repente. Morávamos num distrito, distante cerca de 40 km da cidade mais próxima. Não sei dizer que dia da semana seria. No fim de tarde meus pais receberam telefonema sobre meu irmão, mais velho que eu. A notícia não era boa: o rapaz de 21 anos fora nadar e desaparecera sob a água.
Ainda me lembro do sufoco de minha mãe para juntar umas tralhas. Meu pai corria atrás de uma condução que nos levasse na viagem. Eram os anos 50 do século passado. No fim fomos num jipe que se esgueirou pelas curvas da estrada de terra que cortava a serra.
Na casa de minha avó o ambiente era de apreensão. Falava-se baixo, vez ou outra alguém disfarçava lágrimas a custo contidas. Sobre a mesa da copa minha avó deixava alguma comida para os parentes que iam e vinham atrás de notícias. Noite adentro a situação se agravava. Ninguém se deitara. Meu pai fora para o lugar onde o filho desparecera e, desde então, não soubéramos mais nada sobre ele.
Foi em meio a madrugada que pela primeira vez na vida ouvi falar sobre escafandristas. Meu tio vinha de São Paulo, trazendo dois escafandristas que procurariam por meu irmão no fundo do lago. Nos meus poucos anos de vida aquela palavra “escafandrista” gravou-se em minha mente como sinônimo de “herói”. Escafandristas eram heróis com aqueles das páginas dos gibis, seres capazes de feitos miraculosos como o de trazer do fundo de um lago um irmão desaparecido, quem sabe milagrosamente vivo.
Devo ter adormecido. Quando acordei ouvi a voz de meu pai que voltava para a casa de minha avó. Amanhecia. Com dificuldade ele narrou detalhes sobre os acontecimentos. Os escafandristas ficaram algumas horas procurando. No fim encontraram o corpo preso a uma antiga cerca de arame, no fundo do lago.
Trouxeram meu irmão já dia claro. Naquela época costumava-se banhar os mortos antes de vesti-los e coloca-los no caixão. Na banheira da casa de minha avó meus tios depositaram o cadáver de meu irmão e deram-lhe o último banho. Não prestaram atenção ao menino pequeno que ficou num canto observando a cena. Ainda tenho na memória a expressão estática do rosto de meu irmão e os braços desgovernados que obedeciam aos movimentos provocados pelos homens que o manipulavam.
Seguiram-se o velório na sala grande, o afluxo de pessoas, a inesquecível imagem de minha mãe despedindo-se do filho. Era o fim do dia quando o cortejo, seguido por multidão, chegou ao cemitério.
Depois do enterro perguntei a um primo mais velho pelos escafandristas. Não seriam eles capazes de perfurar a terra e retirar de lá o meu irmão, trazendo-o de volta para casa?
Indignação
Tal a voragem de notícias que só resta o atordoamento diante de tanta confusão. As coisas mudam a cada instante. Idas e vindas, pronunciamentos, revelações, novas versões, nesta “Terra do tudo pode” onde os freios acionados parecem não ter forças para conter tanta corrupção. A TV da sala converteu-se em nada mais que um esgoto de onde brotam conteúdos cujos odores são insuportáveis. Já não se aguenta mais tudo isso.
Mas, existe o outro lado. Existe a vida comum, a trajetória do cidadão desconhecido, aquele que rala todo dia pra levar para casa pelo menos o mínimo necessário a si e aos seus. É o caso desse motorista de táxi com quem o passageiro se encontra ,fortuitamente, e dele ouve histórias que poderiam pertencer a qualquer cidadão.
O táxi é velho, o homem ao volante parece dirigi-lo com raiva. É um homem alto, de meia idade, atento ao trânsito contra o qual, vez ou outra, pragueja baixinho. A certa altura, depois da travessia do canal, o telefone toca. O motorista atende, ouve a alguém que fala e praticamente não responde. Antes de desligar avisa que logo estará em casa, vai achar um jeito.
Pelo retrovisor o passageiro vê parte do rosto contraído do homem a quem não conhece. Dá-lhe vontade de puxar conversa, mas o motorista começa primeiro. Fala sobre a saúde da mulher que tem doença grave, mas está em casa porque não se consegue internação em hospital. Explica que até a pouco a família tinha plano médico, mas com a crise tornou-se impossível continuar. Relata que passara a madrugada num Pronto-Socorro com a mulher, esperando por atendimento. Ao amanhecer desistira e voltara para casa: a multidão que aguardava as chamadas era numerosa demais.
Não será preciso repetir os detalhes relatados sobre a precariedade de recursos e a luta pela sobrevivência desse homem que se agarra ao volante como se pudesse dirigir para outro lugar, outro planeta talvez.
Quando a corrida termina o motorista recebe o dinheiro e destrava a porta. Ao se despedir comenta que não consegue entender direito o que se passa. Diz que ouve falar sobre o desvio de milhões e milhões, muito dinheiro que bem usado poderia melhorar a vida de gente como ele e sua família. Não consegue entender como para ele o dinheiro tem que ser conquistado a duras penas, honestamente, enquanto que muita gente o consegue através de roubos e desvios. Nesse momento vira-se e o passageiro se defronta com a face de um homem indignado.
O passageiro desce do carro e para na calçada, observando o homem que se afasta, desaparecendo. Por alguns instantes pesa ao passageiro a dor do outro, mas é só mesmo por alguns instantes, porque a vida segue e nada se pode fazer quando ase vive num país mortalmente ferido pela corrupção.
Lhosa
Mario Vargas Lhosa faz hoje 80 anos e nós o vemos, entre sério e divertido, olhando-nos da foto em que apoia o braço sobre a cabeça de um leão de concreto ao pé de uma escada. Está ali o premiado escritor a quem tanto admiramos e devemos páginas e páginas de grande literatura. Não por acaso a Academia do Nobel o premiou em 2010: fez-se ali justiça a um incansável trabalhador das letras, dotado de incrível capacidade inventiva e enorme domínio da língua. O Nobel curvou-se a mais um dos poucos sul-americanos que vieram a merecer sua atenção. Basta dizer que o grande Jorge Luís Borges nunca recebeu o prêmio que de direito teria sido seu em várias ocasiões, tal a magnitude de seus escritos.
De Lhosa sempre se fala sobre sua desavença com o até então seu amigo Gabriel Garcia Márques a quem agrediu com um murro na cara. Márques- que mais tarde também receberia o Nobel - jamais falou sobre o assunto de modo que a razão para a briga permanece insondável aos admiradores dos dois escritores, embora muita fofoca exista sobre o assunto. Aliás, a data como a de hoje nos proporciona a oportunidade de um olhar sobre o homem Lhosa, para além do premiado escritor. O Lhosa sempre combativo se destaca, seja através de seus artigos publicados na imprensa ou em sua incursão na política como candidato à presidência da República do Peru. Naquela ocasião Lhosa foi derrotado por Fujimori. Ainda bem. Perdeu o Peru, ganhamos nós, amantes da literatura.
O primeiro livro que li de Lhosa foi “Pantaleão e as visitadoras”. Lembro-me de que na época um amigo me falou sobre o livro e instou comigo para que o adquirisse. De fato, comprei o livro que li quase sem parar. Fantástico e divertidíssimo. O jovem capitão Pantaleão Pantoja é designado para organizar um bordel em plena selva para atender às necessidades de soldados que, no isolamento da floresta, atacavam mulheres, violentando-as e manchando a reputação do exército. Muito bem treinado, organizado, Pantaleão esmerou-se na sua função. De início solicitou informações com as quais montou um relatório detalhado no qual estabeleceu normas relativas à quantidade de prostitutas, pagamento da cafetina, desempenhos sexuais e assim por diante. A escrita de Lhosa, permeada por diálogos entre os quais se interpõem documentos oficiais do exército, faz a delícia dos leitores.
Vida longa a esse grande escritor que hoje festeja seus 80 anos de idade.
Arte desrrespeitada
Se bem me lembro do ano foi em 1960 - ou 61 - que, pela primeira vez estive em Minas, tendo oportunidade de visitar Congonhas, Mariana, Ouro Preto e Belo Horizonte. Éramos um grupo de formandos de ginásio e ganháramos do governo estadual a viagem, de ônibus, ao estado vizinho.
Naquela época, bastante jovem, não tinha eu ciência da importância das obras artísticas que visitava. De modo que em Congonhas do Campo talvez mais tenha me impressionado o fato de presenciar uma cirurgia realizada pelo famoso médium Zé Arigó que as monumentais obras do Aleijadinho. De resto, vale lembrar de que pudemos adentrar o interior das capelas dos Passos da Paixão, ficando ao lado das esculturas do grande artista. Hoje em dia - ainda bem - as capelas são fechadas e bem vigiadas dado o perigo da ação de vândalos sempre dispostos a destruir aquilo de que não respeitam, nem entendem.
Lembro-me, também, do momento em que chegamos à Pampulha, em Belo Horizonte, e nos foi apresentada a monumental obra de Oscar Niemayer na qual Cândido Portinari deixou gravada a grandeza e ousadia de sua arte. Na ocasião, um preceptor explicou-nos a natureza dos desenhos de Portinari, destacando o fato de ter colocado um cão ao lado de São Francisco, ao invés do tradicional lobo que sempre acompanha o santo. Como se sabe o arrojo da obra de Niemayer e a obra de Portinari não foram bem aceitas pela comunidade eclesiástica da cidade à época da construção da igreja de São Francisco. Decorreram-se 17 anos até que, pela primeira vez e na presença do então presidente da República Sr. Juscelino Kubitscheck, fosse realizada a primeira consagração na igreja.
De que a formação cultural dos brasileiros infelizmente é deficiente não é segredo para ninguém. A juventude de nosso país em relação às nações europeias confere-nos diferenças inquestionáveis em relação à presença de museus e obras de arte em geral. Em Paris, por exemplo, crianças de baixa idade têm aulas de arte dentro de museus, como o D’orsay , recebendo explicações sobre pintores e quadros originais ali expostos. Talvez por isso por aqui não se valorizem tanto obras de arte por mais importantes e reconhecidas que venham a ser.
Não sei se o raciocínio acima é correto, mas talvez sirva para pelo menos explicar a ação do vândalo que ousou pichar a capela de São Francisco na Pampulha, imprimindo traços negros sobre os desenhos de Cândido Portinari. Certamente, o elemento desconheceria a importância e valor da obra que em poucos minutos maculou com seus tristes rabiscos. Ao ser identificado declarou o vândalo que fizera aquilo como protesto à recente inundação provocada pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana…
A restauração do painel pintado por Portinari é possível. Ainda bem. Mas, resiste essa sensação de inconformismo contra um ato não só de desrespeito a um patrimônio cultural do país como produto de tão grande imbecilidade.
Tintim degolado
Assassinatos são comemorados. Alegram-se seus executores, comemorando com distribuição de doces. O Estado Islâmico (EI) comemora o ataque terrorista realizado em Bruxelas, no qual mais de 30 pessoas morreram e cerca de 100 foram feridas. Na chamada internet profunda pululam mensagens de regozijo e promessas de novos ataques. Enquanto na internet de superfície lamenta-se mais esse ato desumano, nas profundezas a tônica dos comentários é outra.
Há poucos dias, justamente em Bruxelas, foi preso um dos mandantes do terrível atentado ocorrido em Paris no qual pereceram inúmeras pessoas. Esse terrorista tinha a missão de explodir bombas em seu próprio corpo, mas, arrependeu-se e desistiu do suicídio.
A verdade é que não se sabe como colocar fim a essa série de atentados. Combate-se um tipo de extremismo no qual os terroristas tratam a própria vida com descaso. O homem-bomba aceita seu sacrifício como missão e espera sua recompensa após a morte. A partir daí orgulha-se por levar consigo o máximo número de pessoas que conseguir atingir. O regozijo é tanto maior quanto mais vítimas se conseguirem num atentado.
Entre as imagens divulgadas pelos terroristas em sua celebração pelo último atentado destaca-se a do personagem Tintim degolado. Tintim, como se sabe, é belga daí ter sido lembrado pelos terroristas que cortaram o seu pescoço.
De nada valeram as manobras do repórter Tintim junto a seu inseparável cão, Milu, com quem há mais de 70 anos enfrenta situações complexas e perigosas. Nem mesmo amigo de Tintim, o capitão Haddock, marinheiro beberrão e rabugento, mas de bom coração, parece ter sido bastante para evitar a degola.
Ficam assim os fãs da personagem dos quadrinhos - habituados às conquistas de Tintim - estarrecidos. Nem o pequeno herói imaginário foi poupado pelas hostes do EI.