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A delação
Assisti ao filme “Trumbo” e me impressionei com a cena na qual o grande ator Edward G. Robinson delatou seus amigos da indústria cinematográfica ao Comitê de Atividades Antiamericanas. Era a transição dos anos 40 para os 50 do século passado. Terminada a Segunda Guerra Mundial iniciara-se a Guerra Fria. Nos EUA cresceu a paranoia da infiltração do comunismo e comunistas passaram a ser perseguidos. O senador Eugene McCarthy liderou a caça aos comunistas que, delatados, eram submetidos a interrogatórios diante da Comissão.
Dalton Trumbo foi um roteirista de cinema, conhecido como um dos 10 amais de Hollywood. Brilhante e extremamente produtivo era, também, comunista. Em seu interrogatório negou-se a responder quando questionado e acabou condenado à prisão. Quando saiu, sem emprego, acabou escrevendo roteiros para um pequeno produtor de filmes B. Mas, fez, também bons roteiros. Ganhou dois prêmios Oscar que não pode receber porque usara pseudônimos: ninguém se arriscaria a colocar o nome de Trumbo nos filmes daquela época.
Trumbo já estava preso quando Edward G. Robinson entregou o seu nome durante interrogatório da Comissão. Mais tarde Robinson diria a Trumbo que precisava trabalhar e ninguém dava a ele emprego pela sua proximidade com comunistas. Demais - disse Robinson – a Comissão já dispunha dos nomes por ele citados.
Hoje divulga-se que o senador Delcídio Amaral optou pela delação premiada. O senador foi preso por ter proposto a fuga de Nestor Cerveró, via Paraguai, para fugir à operação Lava Jato. A delação de Delcídio estarrece e movimenta o mundo político do país. Por que um senador até a pouco líder do governo, ligado ao primeiro escalão e ciente de tudo o que se passa no âmbito político do país decidiu-se a entregar seus companheiros? Por que atingir até mesmo a presidente da República e o ex-presidente Lula?
Eis aí um caso no qual o envolvido vê-se entre se calar ou salvar a própria pele. Para o senador calar-se representaria assumir sozinho culpas que provavelmente entende nãos serem só dele. A isso some-se a possibilidade de vir a ser condenado e amargar bom tempo na prisão. Por outro lado, aderir à delação premiada torna-se uma espécie de salvação dado o abrandamento de penas que lhe seriam impostas.
Em espécie as delações de Robinson e Delcídio se assemelham embora as variantes não sejam as mesmas. Robinson queria trabalhar, recuperar seu lugar de astro nas telas. Delcício optou por sobreviver a qualquer custo, ainda que contribuindo para diminuir ainda mais a confiança em nossos homens públicos.
O cheiro da morte
Dirão que a morte não tem cheiro. Será? Pois, meu pai contava história de seus tempos de menino sobre o assunto. Na cidade do interior onde ele crescera havia um velho capaz de sentir o cheiro da morte.
Meu pai ilustrava o estranho fato. Contava que o velho morava num sitiozinho próximo. Dizia-se que no passado fora homem de posses. Casara-se com moça bonita e prendada e ficara imensamente feliz com a gravidez dela. Entretanto, a sorte lhe fora madrasta: a mulher e o filho morreram durante o parto difícil. Desde então desanimara. Passara a viver solitário e deixara perder a lavoura que, aliás, nunca mais replantara. Foi depois disso que se tornara capaz de sentir o cheiro da morte.
O velho era respeitado pelo seu estranho dom. Quando alguém da comunidade adoecia gravemente ele era chamado. Entrava ele na casa do doente e obedecia ao ritual de visitar todos os cômodos, deixando por último aquele em que repousava a pessoa que suscitara o chamado.
No derradeiro cômodo, junto ao leito, aspirava ao ar profundamente três vezes. Então saia da casa, meditava durante algum tempo e, só depois, compartilhava sua previsão: o doente faleceria em um, dois ou tantos dias.
O certo é que nunca errava. Tal fama granjeou que passou a ser chamado até em localidades vizinhas. Chegava a contrariar opiniões médicas como no caso de um rapaz dado como caso perdido e que ele anunciou que não morreria. Como sempre sua previsão se confirmou.
Certo dia o velho que cheirava a morte confidenciou a um vizinho que sentira o odor em sua própria casa. Como morava sozinho soube que iria morrer. Entretanto, estava bem de saúde e sua previsão da própria morte não se confirmou nos sete dias que previra.
Certo de que perdera seu singular dom, alegrara-se. Confessara ao vizinho que já não suportava a proximidade com a morte com a qual vivera ao longo dos anos. Entretanto, passado um mês desde que sentira o odor em sua casa o velho foi surpreendido por inesperado acidente. Voltava ao sítio em seu cavalo quando caiu da sela, ficando o pé preso ao estribo. Perdendo a consciência o cavalo seguiu naturalmente o seu curso, arrastando-o até a casa.
Encontraram-no desfigurado, imerso numa poça de sangue, ainda preso ao cavalo.
Meu pai contava essa história e sentenciava:
- Com a morte não se brinca.
Futuro (im)previsto
Há muitos anos um amigo viajou aos Estados Unidos para visitar a família com a qual morara na juventude. Ele fizera intercâmbio numa cidade de pequeno porte de cujo nome não me recordo.
Quando o amigo retornou batemos um papo sobre o que havia ele achado dos EUA. A coisa que mais o impressionara foi o fato de que os preços dos produtos se encontravam no mesmo patamar do tempo em que ele morara nos EUA. Anos passados o dólar mantinha-se estável e os preços também.
Ora, o que ele me dizia era simplesmente inimaginável. Estávamos em 1990, pouco depois do início do governo Collor. A inflação passara de cerca de 50% em dezembro de 1989 a 100% ao mês em março de 1990. O descontrole dos preços tornara-se insuportável. A cada semana os preços eram remarcados. Então Collor assumiu e colocou em prática seu terrível Plano Collor com o qual pretendia controlar a inflação. Sua medida mais drástica foi o confisco da poupança com bloqueio de investimentos acima de NCz$ 50 mil. Criava-se, também, nova moeda o Cruzeiro.
Foi o diabo. As pessoas tinham direito de retirar de suas contas valores de NCz$ até 50 mil o que era pouco. Aposentados se desesperaram. Nos bancos as filas eram gigantescas. A nova ordem gerou um caos que os responsáveis a custo tentaram contornar. Uma equipe de ministros comparecia seguidamente na TV para explicar ao povo a natureza do que estava se fazendo. Como se sabe, não deu certo.
Quem viveu a hiperinflação não tem saudades. De modo que se torna assustadora a evolução da atual crise brasileira. Especialistas garantem que o país está irremediavelmente quebrado. O PIB não faz frente ao crescimento da enorme dívida pública majorada pelos juros. A essa altura restam duas possibilidades ao governo: a elevação da inflação ou a moratória. É o que dizem os entendidos que não veem a curto ou a médio prazo remédio para o mau governo que dirige o Brasil.
Os brasileiros mais jovens não experimentaram o fel da hiperinflação. Talvez por isso discursos inflamados de defesa da situação atual façam eco em seus espíritos. É pena.
Tomara estejam errados os arautos do cataclismo econômico de que se avizinha o país. Não dá para viver outra vez tudo pelo que já passamos.
Coisas estranhas
Vi pela TV o momento em que Neil Armstrong pisou na Lua. Era o dia 20 de junho de 1969. Na sala todos os olhos estavam pregados na telinha onde corriam as imagens em preto e branco. Era o grande passo da humanidade dado na superfície do querido satélite.
Dos presentes apenas um senhor idoso desconfiou das cenas da TV. Era coisa de americanos - disse ele. Eles são muito bons em fazer filmes - completou.
Não discordei dele. Quem era eu - então rapazote -para me dirigir em tom de reprovação a um senhor como aquele? Havia respeito. Eram outros tempos.
Agora se divulga que naquela viagem os astronautas ouviram estranha música quando passavam pelo lado escuro da Lua. Eles gravaram o som, semelhante a um chiado contínuo. Explica-se que o som foi gerado por interferência na própria nave. Há quem discorde: o som que se ouviu lá seria de lá mesmo.
Os moradores da cidade americana de Forest Grove estão intrigados com um estranho ruído cuja origem ainda não foi localizada apesar dos esforços das autoridades. É um barulho chato, estridente, que surge principalmente à noite e atrapalha o sono e a tranquilidade da população. Como a origem é desconhecida há quem suponha tratar-se de sons emitidos por naves alienígenas. Aliás, noticia-se que sons estranhos têm sido ouvidos em várias partes do planeta, inclusive em algumas cidades brasileiras.
É o espaço que se manifesta, às vezes com violência. No início deste mês um meteoro entrou na atmosfera e liberou o equivalente a 13 toneladas de TNT. Aconteceu a mil quilômetros da costa brasileira. O meteoro se desintegrou cerca de 30 km da superfície do mar.
São sinais.
Os curiosos
Quando meu primeiro filho nasceu fui ao cartório para registrá-lo. Na ocasião o cartorário perguntou-me se trouxera comigo alguma testemunha. Como não viera acompanhado perguntei a um senhor se poderia me fazer a gentileza de testemunhar para mim. Ele sorriu e concordou. Então o cartorário perguntou à minha testemunha o nome e a sua profissão. Era um homem bastante simples de cujo nome não me recordo embora conste da certidão de nascimento de meu filho. Entretanto, nunca me esqueci da profissão daquele homem. Quando perguntado sobre o que fazia ele respondeu prontamente: sou um curioso.
Não sei se hoje em dia existem curiosos por esse vasto Brasil afora. Houve tempo, porém, em que havia muitos curiosos em plena atividade. Para quem não sabe o curioso é um sujeito sem formação específica, mas que se aplica a variadas funções. Trata-se dos tais servicinhos como consertos, instalações simples, vazamentos, pinturas, enfim coisas de pequena monta, mas que exigem habilidade. Aliás, é bom que se diga: o curioso é sempre dotado de habilidade, tanto que acaba por resolver situações muitas vezes complexas.
Tínhamos um vizinho que era um curioso. Era chamado às casas para resolver problemas de toda sorte. Habilidoso tinha algum conhecimento de carpintaria de modo que consertos de móveis, fechaduras e mesmo a construção de objetos de madeira de uso comum faziam parte do seu arsenal de serviços.
O nosso vizinho era um bom sujeito e contava com prestígio entre a população local que o queria muito bem. Certa vez foi necessário substituir aa porta de minha casa, aquela que dava para a rua. A porta envergara e não havia outro remédio senão trocá-la. Para isso meu pai confiou o serviço ao nosso vizinho. No dia combinado apareceu ele em nossa casa com suas ferramentas e pôs-se a trabalhar. Horas depois, porta colocada, o vinho chamou meu pai para conferir o serviço. Quando se aproximou da porta meu pai reparou que a tranca de segurança fora colocada do lado de fora. Ora, nessa posição a tranca era inútil, dado que o correto seria instalá-la dentro para reforçar a segurança da casa.
Ao ouvir as considerações de meu pai, o vizinho discordou. Parecia a ele que o correto era a tranca do lado de fora. Em vão meu pai insistiu sobre a obviedade de se colocar uma tranca interna para fechar a casa. No fim o vizinho se aborreceu, pegou suas ferramentas e saiu de casa bufando.
Na época não sabíamos, mas não fora essa a primeira manifestação da loucura de nosso vizinho que já vinha tendo comportamento estranho há algum tempo. Depois dessa ocasião ele piorou, chegando a ser internado em hospício, como se recomendava na época. A partir daí passou a viver entre idas e vindas ao hospício. Na última vez em que retornou para junto dos seus era um homem acabado cujo olhar vago perdia-se no horizonte.
O vizinho da casa de meus pais morreu cerca de dois anos depois do episódio da tranca externa da porta. Ficou-me esse homem na memória como um curioso de excelência, tamanha sua habilidade e presteza.
Perto do fim
Antes que a morte se mudasse para os leitos hospitalares morría-se mais em casa. De minha infância trago imagens dos últimos momentos de pessoas conhecidas em geral levadas pelas doenças. Os mais velhos estavam familiarizamos com os sinais da morte. Sabiam quando ela se aproximava, sentiam-na invadir as casas, acercando-se dos leitos onde os doentes exalavam seus últimos suspiros. Tratavam com respeito a intrusa que se encarregava de ceifar vidas. As mulheres rezavam. Os homens permaneciam nas cozinhas, sentados em torno de uma mesa na qual reinava um bule de café. Aceitava-se o inevitável com relutância, mas as coisas eram como eram e nada mais havia a se fazer.
Quando aquele que ia morrer começava a emitir sons metódicos a cada inspiração sabia-se que o desenlace estava próximo. Era a “sororóca”. Da sororóca ninguém jamais voltara. Ela era a cadência da morte, o trajeto regular em direção ao derradeiro suspiro. Mas, outro sinal de que o fim seria iminente eram certas coisas que o doente dizia. Vi, por exemplo, gente de minha família referir-se à presença de pessoas já mortas que estariam próximas, no mesmo cômodo. Num desses casos a parenta moribunda apontava em direção à porta do quarto, dizendo estarem ali, fulano, fulana, etc. Eram os mortos que compareciam ao seio da família para acompanhar a travessia de um dos seus ao outro lado, acreditava-se nisso.
Em artigo publicado nesta semana no NYT Jan Hoffman escreve: “Há milênios, os sonhos e as visões dos moribundos cativam as culturas, que lhes atribuem um significado oculto e sagrado. Antropólogos, teólogos e sociólogos já estudaram os ditos fenômenos do leito de morte … mas os médicos tendem a evitá-los porque não sabem que diabo eles são”.
Hoffman relata que uma equipe médica está tentando desmistificar essas experiências e compreender seu significado no apoio a “uma boa morte” para o paciente e para os que ficam. Os pesquisadores concluíram que sonhos dos moribundos e outras manifestações oferecem conforto a eles e aos que os pranteiam.
Até hoje ninguém retornou efetivamente da morte, isso sem falar nas experiências de quase morte. De modo que a despeito de pesquisas e suposições nunca teremos certeza sobre o significado dos fenômenos que antecedem o instante da morte. Quanto a mim, realmente não sei o que dizer dado que até hoje me impressiona a lembrança da moribunda em seus últimos momentos, apontando em direção à porta e descrevendo as pessoas que ali estariam presentes, todas elas mortas, absolutamente mortas. Vieram me buscar - foram suas últimas palavras.
Vida longa
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Um conhecido, autoridade do Judiciário e hoje aposentado, certa vez me confessou ser o seu barbeiro - ele dizia “barbeiro” e não “cabeleireiro” - a pessoa que talvez soubesse mais sobre a sua vida. Mais que a minha mulher - acrescentou.
De fato as relações que mantemos com os “barbeiros” são incomuns. Talvez a cadeira onde nos sentamos para o corte tenha algo de mágico porque depois de algumas visitas ao profissional a intimidade se instala. Sei, por exemplo, de detalhes da vida de meu “barbeiro” que, certamente, ele confia a poucas pessoas. Por outro lado já contei a ele particularidades pessoais que nunca abri a ninguém. Pode-se estranhar o fato, mas é muito comum – acredite.
Outro lugar que se presta bem a confissões é a mesa de bar. Reunir-se com um amigo num bar para uns goles pode resultar numa curiosa troca de informações sobre as mais escabrosas aventuras. Não há lugar onde a confiança mútua entre bons amigos se revele tão intensa como numa mesa de bar.
Há pouco tempo fui almoçar com um amigo que insistia muito em me rever. Conversamos sobre tudo. Entretanto, houve um momento em que ele se mostrou muito sério e reflexivo. Perguntei se dissera a ele algo inconveniente. Responde-me que não. Na verdade nos últimos tempos vinha se digladiando com sensação ruim da qual não conseguia se livrar. Contou-me que desde dois meses antes de nosso almoço sofria ao ver as pessoas com quem cruzava na ruas. Não entendi bem e perguntei se não estaria ele sofrendo da tal “dor do mundo”. Tem gente que carrega nas costas a “dor do mundo” e sofre por isso. Dizem que Glauber Rocha era assim, não sei se verdade.
Meu amigo arriscou meio sorriso e negou sentir a tal ‘dor do mundo”. Relatou-me que com ele acontecia ver pessoas vivas e imaginá-las mortas. Topava com alguém, observava o rosto da pessoa e já compunha o quadro dela morta, dentro do caixão, coberta com flores, terço nas mãos imóveis. Ora, isso tirava a graça do mundo - disse ele. Pensar a todo instante na precariedade da vida, saber que aquela moça tão cheia de força e beleza estaria morta um dia, vê-la dentro do caixão, observar a face sem vida, isso era demais. A vida perdia o encanto. Estávamos todos condenados. A vida nada mais era que uma grosseira simulação de fatalidades inevitáveis.
Não soube bem o que dizer ao meu amigo. Lembrei-o de que já não éramos jovens e, talvez, a maior proximidade com a possibilidade da morte o estivesse afetando. No fim notei que meus argumentos naufragavam diante de realidade sobre a qual o melhor para os vivos é nem pensar.
Quando nos despedimos desejei vida longa ao meu amigo. Ele sorriu, deu-me um abraço e partiu. Fiquei um tempo parado vendo-o afastar-se. Lá ia ele matando as pessoas a quem encontrava nas ruas, reduzindo-as a cadáveres dentro de seus esquifes, apartadas precocemente desta vida nem sempre prazerosa, mas à qual nos agarramos tanto.
Personagens secundárias
Viajar em ônibus coloca-nos diante da contingência de nos sentarmos ao lado de algum estranho. Fica-se ombro a ombro com alguém que não sabemos, como se dizia no passado, que apito toca.
Houve época em que fiz viagens semanais em ônibus e participei das mais diferentes, senão estranhas, conversas. Às vezes queremos apenas cochilar, mas o sujeito ao lado simplesmente não deixa. Certa vez meu companheiro de viagem era um baixinho de terno que logo que me viu se propôs a me doutrinar com a “palavra’. Eu precisava ouvir a “palavra” para repensar a minha vida, modificar-me. Assim, o baixinho de terno abriu a bíblia que trazia nas mãos e me orientou com uma passagem sobre os irmãos Macabeus. A tortura e morte do último dos Macabeus que recusara todas as riquezas oferecidas a ele pelo tirano fez correrem lágrimas na face do baixinho de terno. Era o ensinamento da “palavra” que mostrava aos homens o pouco valor da vida e assim por diante.
Recentemente, fiz viagem em ônibus tendo ao meu lado um outro baixinho, este sem terno. Era dessas pessoas agradáveis. Fala mansa, que gostam de conversar. Na verdade começou o papo sendo indiscreto, perguntando-me sobre o que eu fazia na vida. Depois, aproveitou o gancho e passou a falar sobre as aventuras dele.
O baixinho fora ator, desde logo destacando suas participações como coadjuvante. Explicou-me ele que nos papéis secundários reside toda a força das tramas exibidas nos palcos e em filmes. A personagem secundária, tantas vezes ignorada, abre caminho pra que as principais possam atuar com todo o esplendor. Por isso orgulhava-se o baixinho de sua trajetória. Contou-me que fizera inúmeras pontas em peças teatrais e trabalhara em companhias circenses de renome. Substituíra palhaços em várias ocasiões, trouxera pelas rédeas cavalos que adentravam o picadeiro e até mesmo tratara dos bichos em épocas de bilheterias magras. Orgulhava-se por ser aquele sempre pronto para o que desse e viesse.
Durante a longa exposição do baixinho lembrei-me de um faroeste estrelado por Henry Fonda e Anthony Quinn. Trata-se de “Minha vontade é a lei” no qual Fonda faz o papel de um pistoleiro contratado para defender uma cidadezinha contra bandidos. Fonda é sempre acompanhado por um auxiliar interpretado por Quinn. Numa noite o auxiliar bebe muito e diz que só a proteção que confere ao grande pistoleiro o mantém vivo. Ato continuo desafia o pistoleiro para um duelo, no qual promete provar ser melhor que ele. A personagem secundária insurgindo-se contra a principal é um dos grandes momentos de “Minha vontade é a lei”.
Foram muitas as peripécias narradas pelo baixinho em sua carreira de personagem secundária. Tantas e tão interessantes que mal percebi e já chegávamos ao fim da viagem. Entretanto, ao final, perguntei a ele porque não atuava mais como ator. Disse-me que pagava por um grande erro. Num de seus últimos trabalhos apaixonara-se pela mulher do dono de um circo. Tornara-se amante dela. Foi o mais saboroso e também perigoso papel que encarou como personagem secundária. Tanto que a principal, o dono do circo, ferira-o com tiro de revólver, daí a perna com a qual mancava.
Assim terminou a minha conversa com o baixinho. Esqueci-me dizer sobre o fim do papo com o baixinho de terno. Aquilo não era diálogo, antes monólogo no qual o baixinho de terno falava e falava sobre a palavra. Até que me cansei de tanta doutrinação inútil. Foi difícil, mas fiz o homem se calar após muitos protestos dele.
Em meio às cinzas
Pergunto ao garçom se o preço da caipirosca está correto. Ele me explica que a de vodka Smirnoff custa 14 reais. Já ao preço da preparada com Absolut é calculado da seguinte forma: preço da com Smirnoff mais 16 reais. Portanto, 30 reais. Digo a ele que então o cliente paga 14 reais apenas pelo preço do limão já que na caipirosca de Absolut não se coloca a Smirnoff. O garçom não entende a minha reclamação e repete: preço da Smirnoff mais 16 reais é o preço da com Absolut.
Desisto. São três da madrugada da quarta-feira de cinzas. Peço mais uma caipirosca, a saideira. Os bailes da terça gorda continuam. Os blocos seguem nas ruas. Multidões são embaladas no Recife dentro da alucinação do frevo que não para nunca. No farol da Barra em Salvador foliões ensandecidos entregam seus corpos ao ritmo feroz de um trio elétrico. Ninguém se dá conta de que já estamos em cinzas e a austeridade bate às nossas portas. Mas, eia, damos-lhe as costas. Não queremos a realidade ameaçadora que a essa altura já posicionou suas tropas no horizonte. Esperam esses soldados fortemente armados o primeiro raio de sol para invadir o mundo restabelecer a ordem. Não importa que não queiramos a ordem, essa ordem cheia de problemas e dor. Ordem de trabalho, falta de dinheiro, filhos perdidos, desgraças e mais desgraças. Em pouco os arautos de um novo dia difícil iniciarão o ataque. Poucos de nós resistirão. Em Salvador o último bloco resistirá até o meio do dia, mas seus membros finalmente se darão por vencidos. Então o carnaval estará finalmente encerrado.
Nas primeiras horas do novo dia as igrejas se abrirão e os fiéis receberão as cinzas. Homens e mulheres com a testa marcada em negro deixarão as igrejas e sairão altivos na resplandecente manhã. O carnaval ficou para trás, os foliões dormem e o mundo segue na toada de sempre.
Mas, ainda são três da manhã e só mais uma rodada de caipirosca, a penúltima, poderá me ajudar no sufoco da espera pela nova manhã.
Deu zica
Um vírus que assusta tanto, perigoso como é não poderia ter outro nome: zika. Acumulam-se novas informações sobre possibilidades de contágio como zika vírus. Até a pouco se informava que a transmissão seria só através do mosquito Aedes aegypt. Dias atrás cientistas norte-americanos divulgaram caso de transmissão por ato sexual. Agora se fala da presença do vírus na saliva e na urina. O zika domina. Mais que isso: causa temores em grávidas porque atravessa a placenta com consequente microcefalia nos bebês. Aliás, avolumam-se casos de microcefalia. E não só grávidas e bebês correm perigo. Existe a possibilidade de o vírus causar em infectados a Síndrome de Guillain Barré com terríveis consequências neurológicas.
E o mundo tão cansado do Brasil, volta-se para o Brasil. Aconselham-se grávidas a não virem ao país. Aqui autoridades do governo alertam a população para o fato de que estamos perdendo a guerra para o zika. Mas, o problema continua. Embora esforços no combate à proliferação de insetos, a sujeira e o descuido de boas condições sanitárias fazem em nossas cidades criadouros a céu aberto do mosquito.
Agora a ONU aconselha países a permitirem aborto em grávidas contaminadas pelo zika vírus. Entidades contrárias ao aborto estremecem. Gente de saúde pública e meio médico afirma que mães contaminadas têm o direito de escolher entre interromper e continuar a gravidez. Caso o aborto continue proibido as grávidas procurarão clínicas ilegais o que é um perigo. Religiosos saem a campo combatendo qualquer tipo de aborto, dizendo-se sempre a favor da vida.
A possibilidade de uma grande epidemia ameaça o mundo e as autoridades parecem perdidas quanto aos caminhos mais eficientes para impedi-la rapidamente. É preciso acabar com o mosquito, produzir vacina, educar pessoas etc. Mas, como conseguir isso?
Não é atoa que sempre se disse “deu zica” quando as coisas não dão certo. Na gíria “zica” significa maldição, momento de baixo astral, mau agouro. Se você teve um dia ruim pode dizer: deu zica. Mas, o que não se sabia é que a grafia de zica estava errada. Zica mesmo é essa zika com K. Essa zika é dos diabos e o negócio é rezar para não cruzar caminho com um desses malditos mosquitos.