Arquivo para ‘Cotidiano’ Category
Crianças e palavrões
Vi a mãe de criança de cerca de 4 anos repreender o filho que dissera palavra inadequada. Onde ele pode ter aprendido isso? - perguntou a mãe.
Lembrei-me de cena da minha infância. Era costume os homens se reunirem na rua, em torno de fogueiras, no inverno. Falava-se sobre tudo. Histórias de fantasmas, casos de traição, crimes, política local e outros assuntos permeavam as conversas. Com frequência palavrões ecoavam. Gente simples, formação primária, vocabulário rico em regionalismos, o palavrão era parte integrante da linguagem utilizada no dia-a-dia.
Certa ocasião estava na roda um corcunda que, de tempos em tempos, emitia sua opinião sobre os assuntos, gritando: “caraio”. Era o jeito dele dizer, de modo errado, a pronúncia da palavra.
Tanto ouvi o corcunda repetir “caraio” que incorporei a palavra ao meu vocabulário. De modo que no dia seguinte surpreendi minha mãe ao reclamar de algo que ela me mandara fazer, exclamando: “caraio”. Pois até hoje me dói o tapa que recebi, aviso de que não me era permitido fazer uso de palavras esdrúxulas.
Não estou dizendo que a mãe da criança de 4 anos deveria ter batido nela. O que me ocorre é ser comum adultos falarem coisas perto de crianças, não se dando conta de que elas ouvem e muito bem o que se está dizendo. Não seria exagero talvez dizer que os palavrões têm muita força daí serem mais facilmente incorporados. Todo mundo sabe que para certas situações alguns palavrões são insubstituíveis. Certa vez, parado no trânsito da Avenida Paulista, em São Paulo, vi um sujeito descer o carro e dizer cobras e lagartos para quem quisesse ouvir. Acontecera a ela distrair-se por ter presenciado a passagem de mulher exuberante. Tanto se distraiu que bateu o carro no que estava à sua frente. Daí que pôs-se a culpar a beleza da mulher pelo estrago. Naturalmente referiu-se à forma física dela de modo elogioso, mas em termos grosseiros. Foi desses casos nos quais o palavrão faz, obrigatoriamente, parte do discurso.
É comum o fato de pais não se vigiarem em suas conversas perto dos filhos. De resto a criançada aprende as palavras inadequadas não só em casa mas, na escola e em todo lugar por onde passe.
Diário de um anarquista
Missão cumprida! Fodemos eles!
O problema da sociedade é a lentidão. Esses caras aí são devagar. Essa gente engravatada, os milhares que se apertam no transporte público, as mocinhas de coxas roliças, os velhos, os moços: tudo gente devagar. Essa gente dorme sono grande, demora a acordar. Tudo acontece e eles nada. Tipo de gente que aceita, não reclama. Gente de cabeça baixa, pescoço que tem aquela mola de subir e descer, aceitando.
Nós? Esperamos pela oportunidade. Acontece quando por milagre os nunca incomodados se incomodam. Como essa coisa de aumentarem as tarifas dos trens, ônibus, metrô… Bate no bolso, sabe como é. Só tem uma coisa capaz de revoltar o povo: mexer com o bolso. O cara acorda às 5, deixa o filho doente em casa, se mete no subúrbio, chega no emprego em cima da hora, se arrebenta pra ganhar tão pouco, então aumentam as tarifas, a inflação come o salário: hora de reagir.
Tem quem marque a passeata, sei lá quem. É o sinal. Aquela gente se junta e começa a passeata dos corpos em protesto contra sei lá o quê. É a nossa hora. No quente do movimento infiltramo-nos. Somos uns poucos, sem outra ideologia que não a de arrebentar - diga-se. O nosso negócio é bater, arrebentar. No meio daquela gente ninguém se dá conta de que não são só “eles”. Nós ficamos”eles”. Aí é bater, quebrar, agredir.
Certo que tem a polícia. Os caras vêm com gás, bombas de feito moral, bala de borracha. Pedra neles. O grande momento é o da batalha, propriedade privada atacada, sangue escorrendo, porrada pra todo lado. É o que vale.
Você viu na TV o cara estourando o que tinha pela frente?
Pô, era eu.
A sala de espera
Na sala apinhada espero pelo chamado da minha senha. Reparo no quadro luminoso que, a curtos espaços de tempo, faz um som estranho anunciando novos chamados. Olho para o painelzinho luminoso, observo o número e comparo com o que tenho nas mãos: não batem. Não é a minha vez. Ainda não é.
Depois de muito tempo começo a me perguntar se serei chamado. Será que não me enganei de sala? Não pertenceria o meu número a outra série, de outro lugar, talvez de planeta diferente? Consola-me a presença de uma mulher que aguarda ao meu lado. Ela já estava aqui antes de mim e permanece calma. Aceita o destino de ter uma senha que talvez nunca venha a ser chamada sem reclamar. Tenho vontade de perguntar a ela sobre demora, mas me retraio. E se ela for uma dessas pessoas que esperam por uma chance, por uma única e rara oportunidade de iniciar um monólogo interminável sobre as desgraças da vida dela, talvez o marido desaparecido, o filho assasinado, a grana curtíssima etc? Mas, não, talvez ela nem exista de verdade, talvez não passe de criação imaginária engendrada pelo meu desespero de a próxima chamada ser a do meu número para que eu possa, finalmente, me sentar diante daquela mocinha sorridente que analisa os papéis e indica às pessoas o rumo que devem tomar.
Mas, a mulher a meu lado é real. Não se move, não diz nada, mas é real. Poderia tocá-la para confirmar. Esbarrar nela, talvez isso bastasse para devolver-me ao mundo concreto da inteterminável espera que parece não ter solução.
Estou aqui a muito tempo é só agora reparei que ninguém foi chamado. Entro em desespero quando verifico que, na verdade, o número exibido no painel nunca muda. A cada toque o número se repete. A mocinha sorridente mira o vazio e ninguém se senta diante dela para mostrar os papéis. Ninguém é chamado. Só então me ocorre que esta não é uma sala de espera normal. Quem está aqui não será atendido, provavelmente não. Não tenho certeza, mas parece que estamos todos mortos. Talves esta seja a sala na qual os mortos esperam indefinidamente pelos seus julgamentos.
Aqui não existe pressa. A eternidade é longa demais, tem-se todo o tempo do mundo.
Perdido em Marte
O espaço nos fascina. Saber sobre o que existe para além de nossas fronteiras, avançar no desconhecido, desvendar os mistérios do universo… Aventuras do pensamento. Só a magia do cinema logra aplacar pelo menos parte de nossos anseios. Talvez nisso resida grande parte do enlevo a que são arremetidos os cinéfilos diante das desoladoras imagens de Marte exibidas na telona.
Não se pretende aqui falar sobre detalhes do roteiro do magnífico filme de Riddley Scott. O que nos motiva são os momentos de total isolamento da personagem vivida por Matt Demon, o astronauta perdido em Marte. Trata-se de um homem fora do contexto a que estamos habituados, sobrevivendo às custas de dois fatores: coragem e conhecimento. Da fusão dessas duas características emerge um ser eminentemente humano capaz de driblar toda sorte de adversidades, conseguindo, afinal, resultado aparentemente impossível.
Estar longe de nosso mundo, terrivelmente só, pulsante de vida que a cada momento corre o risco de escapar. Percorrer paisagens inóspitas, avançando no desconhecido, acreditando sempre no que parece impossível. A aventura do astronauta isolado no planeta vermelho confunde-se com a própriaria trajetória do homem que conquistou a Terra, sobrepujando-se às demais espécies.
O filme de Riddley fascina, diverte. Mais que isso faz-nos pensar sobre a origem e o destino do homem. Viveremos aqui para sempre? Dominaremos o espaço que nos cerca? Ou nos perderemos como imigrantes em sóis estranhos, ícaros cujas asas não permitem os longos voos alimentados em nossos sonhos?
Ao futuro talvez pertençam respostas às nossas indagações.
Mentira e verdade
É conhecido o caso da mulher que traiu o marido. O tal, apaixonado por ela, dispôs-se a perdoá-la: era mesmo louco pela mulher. Em vão. Passado tempo ela foi viver com o amante. Mais tarde o marido apaixonado acertou-se com outra mulher. Caso encerrado? Não! A traidora tinha vasto círculo de amizades. Precisava explicar-se às amigas porque não queria se passar por uma safada qualquer. Então passou a dar a sua versão da história: fora traída, humilhada por ele. Vivera o inferno do abandono. Suportara a situação por maos i de um ano. Terminada a relação conhecerã o sujeito com o qual agora vivia. Ele a ajudara a reerguer-se. Ainda guardava mágoa do antigo companheiro, mas não desejava a ele o pior. Que fosse feliz, já não se importava.
A mulher que traiu o marido tanto repetiu a sua versão dos fatos que acabou acreditando nela. Apagou a verdade, transformou a mentira em verdade e talvez resistisse a um detector de mentiras caso se submetesse a ele.
Acontece a muita gente. Elege-se uma versão dos fatos, repete-se à exaustão até tomá-la como real. A partir daí nem mesmo o contato com a realidade pode surtir uma reviravolta na inabalável crença de estar-se do lado da verdade.
Os jornais repetem, diariamente, o estranhamento diante das afirmações do ex-presidente Lula de que nunca soube sobre o mensalão e o petrolão. Em nenhum momento de seus oito anos de governo o ex-presidente participou da indicação de nomes de pessoas hoje envolvidas em escândalos. Sua atuação, segundo declara, teria sido apenas a de concordância ou não com as escolhas apresentadas a ele por seus acessores.
Há quem escreva que Lula nem fica vermelho após fazer tais afirmações. Não seria o ex-presidente um desses casos em que a repetição de uma versão falsa transforma-se na convicção de estar dizendo a verdade?
Rumo ao novo ano
Nossa nave avança sem que se possa detê-la. Avança perigosamente. Deixa atrás de si escombros de um ano mal vivido, mal conduzido. Faz lembrar o anjo do quadro de Paul Klee que voa de asas abertas, olhos pregador no futuro, deixando atrás de si uma montanha de escombros à qual não pode retornar. Uma tempestade o empurra à frente no vôo irreversível. O texto de Walter Benjamin ganha atualidade no obituário do ano que termina.
Não há porque olhar para trás. Nous sommes embarqués dans um même bateau - avisou-nos Saint Exupéry. Para onde vai o nosso barco? Ninguém sabe. Ninguém tem resposta para o enigma chamado Brasil. E estamos nele, de algum modo tornamo-nos parte dele.
Há desertores dessa viagem ao desconhecido. Gente que atravessa fronteiras, tentando a sorte noutras plagas. Não sabem: serão vitimados pela saudade. Estrangeiros em outras terras talvez nunca bem-vindos, terão o olhar voltado para o país natal. Buscarão no noticiário informações sobre a terra natal, quem sabe voltarão, agora estrangeiros em seu próprio país.
Mas, eis que nos aproximamos do novo ano! O que nos espera?
Não é fácil ser brasileiro.
Natal
De repente me lembro de um homem a cujos apelos não respondia o demônio da criatividade. Inteligente, proprietário de vasto vocabulário, amigo de dicionários, estudioso das gramáticas, não tinha ele o privilégio da ideia própria, da comunhão do que sabia com a erupção do texto. Por isso vivia a mendigar nas páginas alheias das quais retirava ideias que, a seu modo, modificava e utilizava. Deixou esse homem cadernos e cadernos, manuscritos, elaborados com tremenda ddificuldade, mas sem valor porque carentes de originalidade.
Poi é bem assim que me sinto em relação ao natal, estrangeiro de minhas ideias e palavras. De tal modo a data me surge sem significação que nada me ocorre dizer sobre ela. Talvez me restem do natal apenas o amontoado de lembranças, algo confusas porque emaranhadas num vácuo do qual vez ou outra levantam-se restos de coisas vividas, despojos incompletos cujos fios de interligação me escapam.
De tudo restam-me imagens de meus tempos de menino, seguindo minha mãe para a missa do galo. Ainda posso ver minhas calças curtas e os pés descalços no chão de terra amaciado pela chuva da tarde. Ao menino escapa o significado daquela missa celebrada tão tarde da noite para fiéis apinhados na igreja do lugarejo. Quem éramos nós nos idos dos anos 50, ilhados do mundo num canto qualquer, despossuídos, diligentemente crentes nas promessas da fé?
Do que me lembro é do profundo sono que me impedia de ouvir o sermão, do calor do corpo de minha mãe ao qual me recostei ao adormecer e do susto ao ser acordado por ela ao fim da missa. Passara-se a meia-noite, Jesus nascera enquanto eu dormia, celebrara-se o rito do Natal.
Para mim o natal sempre foi e será uma longa missa do galo na qual adormeci junto de minha mãe enquanto Jesus surgia na manjedoura e mudava o mundo.
A ausência
No entorno o vazio. Só vazio, mudez, solidão. Já não será o caso de abrir uma garrafa de champanhe porque você não virá. Nem mesmo adianta pedir a comida japonesa que você adora porque seu lugar na mesa continuará vazio. Não é possível encontrá-la. Refaço nossos caminhos numa busca que sei impossível, mas da qual não consigo desistir.
Dia e noite persigo você, buscando migalhas de sua passagem. Sua voz ecoa em meus ouvidos, às vezes inesperadamente durante o sono, acordando-me. Então eu me sento na cama e fico no escuro, tateando, como se algum tipo de contato fosse possível. Mas, é em vão. Custo a adormecer de novo, embora não queira dormir porque você virá no sonho e não saberei como me comportar e o que dizer. Entre nós desfez-se a ponte de contatos possíveis e isso é intolerável.
Eu me lembro de você, tanto! Tento recordar as coisas boas, mas sempre me perco no túnel de nossos últimos dias quando já não tínhamos controle sobre nada, tornáramos joguetes das circunstâncias. Então a revejo presa ao leito, lutando, segurando-se a cada momento com fibra incomum. Depois as imagens se confundem. É sempre você, sofrendo e lutando, até o som do telefone que soa de madrugada e me vejo em seu quarto, agarrando-me ao seu corpo sem vida, gritando, exigindo a volta da vida que se foi.
Ah, quanta saudade!
O calor
Há quem ame os dias de altas temperaturas, tardes e noites suarentas. Circular nas ruas sob o sol inclemente faz a delícia de muita gente. Que dizer, então, das praias lotadas onde é preciso ter sorte para arranjar um espacinho onde se doure a pele.
O Brasil é vasto, mais de 8 mi de Km². O nordeste tem sol quase permanente, geografia invejável e seca nos seus interiores. O sudeste fica entre o sul mais frio e o bom tempo nordestino. O litoral de São Paulo equipara-se ao Rio em termos de calor. Santos é quase um Rio com o ar denso, ventos escassos, temperaturas altas e um sol de rachar.
País tropical tem isso de convidar à indolência. Tanto calor que dá preguiça à qual nem sempre se resiste. Mas, ainda bem que hoje em dia certos estereótipos foram deixados de lado. O falado brasileiro preguiçoso, indolente e pouco afeito ao trabalho foi desmentido. Brasileiro trabalha e muito, pena que os governos não façam a parte deles.
O grande crítico José Veríssimo escrevia no início do século 20 sobre a quase impossibilidade de escritores brasileiros se proporem a obras de grande envergadura. O calor do Rio naquela época funcionaria como freio aos projetos do espírito. Quase impossível concentrar-se e criar sob[A1] [A2] um cima daqueles. Pelo visto era o clima o fator que explicaria as diferenças de produtividade entre os mestres europeus e as gentes tupiniquins.
Escrevo porque sai à rua e andei em direção à praia. Topei com faces suadas e expressões de desânimo. À uma da tarde fazia calor de rachar. Enterneceu-me um idoso que colocou na calçada imagens de santos fabricadas por ele. Não eram bem feitas. Uma senhora que passava interessou-se por uma Nossa Senhora. O velho disse o preço e a mulher começou a regatear. Tive pena do velho ali, àquela hora, sob aquele calor, tentando ganhar uns poucos reais em seu minúsculo negócio informal. A certa altura ele me olhou como a perguntar se eu gostaria de comprar uma imagem. Fiz que não e apressei-me em seguir meu caminho.
Era um velho lutando pela vida. As pessoas passavam por ele e suas imagens, indiferentes.
O espírito de natal
A impressão é a de que o “espírito natalino” está em baixa. Era mesmo de se esperar. A verdade é que não existem motivos para comemorações. Com a economia do país na bancarrota o comércio se retrai. A alegria de comprar bons presentes para entes queridos esbarra na falta de dinheiro. Os lojistas fazem o que podem. A previsão de que este venha a ser o pior natal em muitos anos se confirma.
Mas, resta o amor aos entes queridos. Restam os momentos de congraçamento entre membros das famílias que se unem no natal. O “espírito natalino” sobrevive no seio das famílias e só.
Há quem goste do natal e aqueles que odeiem a data. Pesquisa dinamarquesa agora publicada considera que algumas pessoas são mais propensas a gostar do natal. Segundo a pesquisa tudo não passa de maior ou menor aceitação de estímulos em certas áreas do cérebro. Alguns voluntários submetidos a observação de fotos mostram-se mais estimulados que outros ao verem motivos natalinos. Detectou-se maiores estímulos em áreas cerebrais desses voluntários.
A ser assim existe predisposição a gostar ou não do natal. Explica-se, ainda, o ódio que muitos nutrem em relação à data.
Não gosto do natal desde uma infeliz experiência vivenciada quando criança. Era eu o primeiro da fila de crianças à porta de uma casa paroquial onde seriam dados presentes à molecada. Primeiro a entrar fui avisado de que o melhor presente era um carro que poderia dirigir, pedalando. De jeito nenhum concordei com a oferta. Atraiu-me um minúsculo carrinho, inexpressivo, que cabia no bolso da calça. Em vão insistiram comigo sobre o erro da escolha. Não houve acordo. Saí de lá com o carrinho. O segundo da fila não pestanejou em escolher o carro de pedais.
Horas depois quando vi o tal circulando na praça dentro do carro vermelho me arrependi. Odiei-me com todo o ódio de que as crianças são capazes. Mas, era tarde.
Depois disso nunca mais gostei do natal que não chego a odiar. Hoje em dia participo com familiares, mas sem gosto. Na verdade as coisas pioraram. O natal me fez lembrar de pessoas queridas que se foram, gente insubstituível. Neste 2015 tive grande perda que certamente me pesará demais na noite de natal.