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Terrorismo
Quase 4 milhões de pessoas saíram às ruas de Paris numa gigantesca manifestação contra o terrorismo. Os dois terroristas que invadiram e mataram os cartunistas do jornal Charlie Hebdo foram caçados pela polícia, encontrados e mortos. O terrorista que invadiu um mercado e matou quatro reféns também está morto. A Al Qaida assume a responsabilidade pelas ações e promete mais. O mundo ocidental queda-se estarrecido. O islamismo é visto pela extrema direita como o grande inimigo. Teóricos apressam-se em separar o islamismo de ações terroristas executadas em nome dessa religião. A frase “Eu sou Charlie Hebdo” é repetida no mundo como sinônimo de repulsa aos ataques e defesa da liberdade de expressão. Surgem os “Eu não sou Charlie” dizendo-se contrários ao ato terrorista, mas lembrando que os cartunistas abusaram nas ofensas a Maomé e ao Islã. Comentaristas em vários países escrevem que nenhum jornal dos EUA, por exemplo, publicaria as charges do Charlie Hebdo. Um professor universitário escreve que o episódio ocorrido em Paris dá oportunidade a retrógrados da universidade saírem da toca, favoráveis que seriam ao ataque. Cartunistas em todo o mundo publicam charges em homenagem aos colegas chacinados. O que nem todo mundo confessa pode ser expresso numa só palavra: medo.
Há quem se lembre de citar o fato de que em países europeus estrangeiros não são benvistos. Muçulmanos pronunciam-se para lembrar que mesmo nascidos na França não recebem tratamento igual ao dispensado aos demais franceses. Na TV conhecido jornalista relata ter vivido 15 anos na Alemanha e explica o significado de ser estrangeiro naquele país. Um professor universitário lembra que os países europeus sempre trataram com violência suas colônias e cita como exemplo o caso da Argélia que pertenceu à França.
Nada justifica o ato terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo. A ocasião, entretanto, desperta lembranças em relação à posição de estrangeiros no velho continente. Na primeira vez que fui a Paris, logo depois de desembarcar em Orly, saí do hotel para ver a cidade. No metrô comprei várias passagens que enfiei no bolso do paletó. Depois de passar pela catraca de uma estação, joguei fora a passagem usada. Minutos depois desembarquei em estação próxima à Torre Eifell. Já na rua fui abordado por policiais que me pediram a passagem do metrô. Em vão expliquei em inglês que a jogara fora. Ato contínuo fui colocado com o rosto voltado para uma parede onde permaneci, braços abertos, por mais de uma hora. Finalmente uma oficial mais graduada concedeu falar comigo em inglês. Ela me propôs ou ser preso ou pagar multa de 100 dólares. Paguei e, já liberado, li nos avisos do metrô sobre a obrigatoriedade de manter a passagem usada para comprovar não ter pulado a catraca. Mas, eu vinha de São Paulo onde as passagens usadas não serviam para nada, coisa que absolutamente não interessaria aos gendarmes.
Um relato como o que acabo de fazer nada tem a ver com os tristes episódios agora ocorridos na França. Entretanto, de algum modo me fazem pensar que talvez a relação com os estrangeiros naquele país deva ser repensada. Quando muçulmanos franceses saem de seu país para serem treinados por terroristas e depois retornam para cometer barbáries, algo está errado e precisa ser revisto. Atribuir atos de terroristas à irracionalidade, radicalismo religioso e mesmo lavagens cerebrais realizadas pela Al Qaida ida ou o Estado Islâmico talvez signifique olhar apenas para um dos lados do problema.
As pragas
Vejo pessoas prometendo-se coisas, mudanças, para o ano que começa. Na TV mulheres se reúnem para promessas em relação ao ano que começa. Uma delas confessa atração irresistível pelo consumismo. Relata morar num apartamento enorme, com muitos e muitos armários, todos eles abarrotados de roupas, sapatos etc. Ainda assim ela sofre de necessidades urgentes de sair para comprar coisas, sendo que na verdade, não sabe direito o que tem em casa. Aconteceu a ela pagar fortuna num vestido e, depois, descobrir um no guarda-roupa, mesmo tecido, mesma cor, mesmo corte. Idênticos.
Outra mulher do grupo fala de seu fascínio pelo mundo do entretenimento. Ela não consegue ficar uma noite sequer em casa, precisa sair para um jantar, o cinema, o teatro ou algo que a distraia. Desde que ela se separou a cerca de um ano a vida se tornou um porre de diversões continuadas que começa cedo, logo depois de acordar, com a busca na internet sobre o que há para se fazer. Dinheiro para tais aventuras certamente não falta a ela.
A terceira é vitimada pelo vício da gula que é um perigo porque faz engordar. Daí que ela se submete a todo tipo de regimes alimentares, afora passar algumas horas do dia numa academia, fazendo exercícios. Ela morre de fome, mas traz a geladeira vazia para resistir às tentações. É louca por doces, qualquer doce, mas a preferência é por chocolate. Na véspera tomou em casa de uma amiga um bolo-sorvete de chocolate admirável, coisa caída dos céus. Uma loucura!
Do grupo a mais quietinha é a quarta mulher que ouve as amigas sem dizer palavra. Na vez dela começa perguntando o que, afinal, as outras fariam no ano que começaria. Ouviu da primeira a intenção de reduzir o consumo, da segunda a promessa de ficar mais em casa curtindo a família, da terceira o juramento de passar a se alimentar como pessoa normal. Só então a quarta disse às amigas que no novo ano pretendia fazer tudo o que nunca fizera porque sempre fora contida e recentemente concluíra que a vida era curta demais para tantos nãos a si mesma. A partir de agora seria pela primeira vez consumista, procuraria todo tipo de entretenimento e comeria o que lhe desse na telha.
Quando a quarta mulher se cala as outras três se entreolham. Ficam mudas até que a primeira, aquela do consumo, diz que pensando bem a última tinha razão, daqui a pouco estarão velhas e de que terá adiantado tanto sacrifício.
O mais provável é que, durante o ano, as mulheres continuem a ser como sempre foram. Pelo que um filósofo que também assistiu ao programa depois comentou que as pragas do mudo vieram para ficar, enraizadas que são na alma das pessoas. Mas, houve quem discordasse dele, começando pelo fato de que como homem tende a ser machista daí não compreender bem as necessidades das mulheres.
O valor da vida
Existia, sim, algum respeito, mas os tempos são outros. Estampada nos meios de comunicação as fotos de dois rapazes tentando roubar os ocupantes de um carro durante congestionamento em rodovia. Um deles abre a porta do passageiro e tenta arrancar na marra a pessoa para fora do carro. Do outro lado o segundo exibe o revólver com o qual ameaça. Mas, o trânsito anda e o motorista arranca com o carro, deixando os bandidos para trás. As fotos impressionam. Transmitem o desespero, a impotência diante de situação anômala na qual vidas podem ser roubadas ao acaso de um tiro irresponsável. Os dois bandidos claramente não têm nada a perder. O crime é a profissão desses dois para quem a vida vale menos que uma banana.
Na passagem de ano uma mulher tirava fotos dos fogos numa praia quando um bandido tentou levar o celular dela. Nesse momento ela distanciou-se do marido. Encontrou-o um minuto depois, deitado na areia, sangrando. Levara um tiro no pescoço e morreu, bestamente. Mal inaugurou o ano novo levado que foi pela ação de um bandido para quem a vida não vale nada.
O fato é que a vida está em baixa no mercado de valores humanos. Mata-se por matar. Ou não se mata porque não se quer matar, talvez por distração. É grande a degradação moral. Ontem dois trens bateram em ferrovia no subúrbio do Rio. Mais de 100 pessoas feridas, algumas delas deitadas na plataforma de uma estação, esperando por socorro. Pessoas deitadas sem capacidade de qualquer reação: prato feito para bandidos que pularam as cercas e passaram a roubá-las. Os bandidos levavam bolsas, enfiavam as mãos nos bolso dos feridos e retiravam dinheiro, carteiras e celulares. Como perder oportunidade tão rara e sem risco?
Por sorte ninguém foi baleado e morto entre os passageiros. Puro acaso porque nesses tempos em que o valor da vida despencou num precipício que parece não ter fundo é até estranha a ausência de vítimas fatais.
Rir faz bem
Vez ou outra assisto pela TV a alguns “stand up” de humoristas norte-americanos. Ali se fala de tudo, com liberdade que pode chegar a constrangedora. Mas, o público se diverte. Aceita-se muito bem o que vem do palco, inclusive tiradas de cunho racista e fortes apelos sexuais. O tom dos humoristas da América nem sempre parece engraçado para nós. Celebridades do cinema, políticos e gente importante são escrachados sem a menor cerimônia para delírio da plateia. Num show a que assisti George W. Bush foi arrasado sem que isso gerasse qualquer tipo de retaliação posterior. Noutro uma humorista, tirou a blusa para exibir ao público as cicatrizes de uma mastectomia a que se submetera para tratar o câncer de mama. Isso sem falar em atitudes às vezes hostis ao próprio público.
No Brasil os “stand up” tornaram-se frequentes. Uma nova geração de humoristas faz sucesso. Alguns deles são ótimos embora poucos mostrem talento invulgar. Entre nós foram precursores do gênero José de Vasconcelos, Chico Anysio e Jô Soares. Na verdade não se pode dizer que os precursores faziam o “stand up” nos moldes atuais. José de Vasconcelos, por exemplo, usava efeitos de luz e música em suas apresentações. Hoje o “stand up” é conhecido como “cara limpa”, ou seja, o humorista não usa piadas prontas e se atém a acontecimentos do cotidiano.
O sucesso dos novos humoristas deu origem a programas de “talk show” como os apresentados por Danilo Gentile e Rafinha Bastos na TV. Trata-se de programas curiosos, marcados pela irreverência que às vezes descamba para alguma escatologia. Mas, são engraçados, divertem.
Nos anos 70 do século passado assisti a uma apresentação de José de Vasconcelos em teatro. Acho que nuca ri tanto na vida. O Zé era demais, infinitamente superior aos papéis mais contidos que tantas vezes fez em programas cômicos na TV.
O brasileiro sempre foi um povo propenso a rir, até mesmo das desgraças. No passado os programas humorísticos transmitidos pelo rádio eram ouvidos em toda parte. Nomes como os de Zé Trindade, Lauro Borges, Castro Barbosa e muitos outros que se apresentavam pela Rádio Mayrink Veiga eram conhecidos em todo o país. Chico Anysio fez sucesso durante anos com seus programas humorísticos apresentados pela TV. Ronald Golias era amado pelo público, sem restrições.
É muito benvinda a atividade dos novos humoristas que mantêm viva a descontração e a capacidade de rir dos brasileiros. Digo isso por temer que, na verdade, o brasileiro já não seja o povo propenso às risadas de antes. Problemas e sufocos experimentamos em todas as épocas, maus governos também. Estamos habituados à desconsideração com a coisa pública. A corrupção que tanta se alardeia não é nenhuma novidade, embora escandalize pelas proporções gigantescas. Mas, o longo período de ditadura, que tanto tolheu a alegria dos brasileiros, deixou marcas. Depois dela vieram períodos que de forma alguma lograram resgatar a confiança no país. De modo que hoje em dia talvez muita gente esteja se esquecendo de como é bom rir, atolada que está nos problemas cotidianos. Como faz bem à alma retribuir com uma boa gargalhada ao desafios a que diariamente somos submetidos.
Precisamos rir. Rir mais. Rir de tudo, de nós mesmos. Deixar a seriedade para os momentos das coisas realmente sérias. Rir a bandeiras despregadas.
O mundo em que reina a alegria é bem melhor.
Ria amigo, não deixe de rir.
Ser como é
Ao longo da vida assumem-se vários personagens produzidos em função das circunstâncias de momento. Aos sessenta olhamos para trás e nem sempre é fácil visualizar - e compreender - certos tipos que já encarnamos. Todo mundo já fez coisas na vida que não se repetiriam nem a pau. A tal pergunta “como é que fui capaz de fazer isso” tem uma só resposta: não era você. Na verdade era aquele outro cara, o jovem de 19 anos de idade, capaz de loucuras impensáveis.
Tenho um amigo que se tornou noivo de uma moça, ela muito apaixonada, ele nem tanto. Eram jovens, namoraram desde meninos, pertencentes a famílias amigas, enfim tudo corria segundo o script. Até que, faltando uma semana para o enlace, ele decidiu não se casar. Chamou a moça e rompeu o noivado para desespero das famílias que faziam tanto gosto na união. A moça, inconsolável, passou por longo período de depressão. Ele? Seguiu em frente. Certa noite, entre um e outro gole de vinho, ele me confidenciou que tantos anos decorridos ainda se envergonhava pelo que fizera. Confessou que em muitas madrugadas, se acordava, lembrava-se do fato e cobria a cabeça com o lençol pela vergonha. Eu disse a ele: não era você. Coisa que, aliás, ele não aceitou dizendo que seguindo esse raciocínio deveríamos, por exemplo, perdoar todos os criminosos.
Como ligar as várias personagens que fomos ao único homem ou mulher que os representou? Como aplacar vergonhas, remorsos e erros que insistem em retornar à memória numa punição irremediável?
A solução talvez seja partir da lembrança de que, afinal, somos seres humanos. Mais que isso, não ficar apenas nos desacertos. Aqueles sujeitos de antes, que afinal somos nós mesmos, certamente fizeram muita coisa boa. Trata-se, ainda, de encarar o direto de ser como somos com nossas virtudes e defeitos. Esse é o caminho para aceitação de nossa condição, enquanto seres pensantes aos quais são pertinentes erros e acertos.
Há quem goste de festas, multidões, gente falando alto e até não repare em grosserias. Há gente que não se incomoda quando altas horas da madrugada somos despertados pelo som do rádio de um carro que passa rugindo na rua. Há quem desculpe os apressados que furam filas, aqueles que tomam assentos destinados aos idosos e até os pretensiosos que tratam mal aos subalternos. Há quem simplesmente ignore pessoas que desrespeitam a crença alheia e os que não aceitam que alguém possa ter opinião diferente das deles. Enfim, há todo tipo de gente sob o sol que nos ilumina. Cabe a cada um de nós a delimitação do seu território e não ignorar as próprias raízes. Afinal, viver em sociedade é desafio nada fácil de ser vencido.
O ano do apagão
Você se lembra dos principais acontecimentos de 2012? Provavelmente a primeira coisa que lhe ocorra é a tal história de que ocorreria o fim do mundo. Pois de 2014 será muito difícil de esquecer. Este foi o ano do apagão. Foi o ano em queo Brasil se encheu de orgulho para a realização às Copa do Mundo. Foi o ano da catástrofe. Os mais expressivos momentos da vida do homem brasileiro relacionam-se ao futebol. A Copa de 1950 sempre será um entrave na garganta dos brasileiros, coisa impossível de engolir. Ah, não adianta dizer que as novas gerações não viram o jogo: trata-se do futebol brasileiro, paixão nacional, que ao longo do tempo é um só. É isso.
Pois 1950 está umbelicalmente ligado a 2014. Anos de tragédias inesquecíveis. Verdade que em 50 a moçada de chuteiras fez o que pode. Se o time de Obdulio Varela venceu não se pode dizer que faltou raça aos nacionais. De Barbosa a Chico todos lutaram. Infelizmente o mesmo não se pode dizer da moçada de 14. Meu Deus! E eles estavam vestindo o uniforme da seleção nacional. Tremeram. Negaram a raça. Envergonharam o país sem mostrar a própria vergonha. Profissionais a soldo, sem amor, diga-se.
Mas, não foi só dentro das quatro linhas que houve apagão. De repente escancararam-se as vísceras da corrupção. O Mensalão levou gente importante para trás das grades. Respirava-se com o alívio da moral restabelecida quando estourou o escândalo da Petrobrás. Então a nossa maior empresa, o orgulho da nação, simplesmente sucateada? Como? Difícil acreditar, mais um apagão goela abaixo. Milhões e milhões nas mãos de um bando de safados enquanto o país à deriva mal se recompõe, sinalizando futuro incerto.
Nem é preciso lembrar da criminalidade, da falta de água, da desigualdade social, dos impostos, de todo o resto. Este 2014 é um ano para ser esquecido. Se daqui a alguns anos perguntarem a você se está lembrado de 2015 o melhor talvez seja responder que justamente foi o ano em que você esteve fora, participando de alguma excursão espacial, por isso não se lembra de nada.
Adeus 2014. Não deixa saudades.
Sobre raios
Dos meus tempos de menino guardo caso que muito me impressionou. Um homem fora ao lugarejo, próximo de seu sítio, fazer compras no armazém. Aconteceu naquela tarde inesperado temporal que o reteve , impedindo-o de retornar. Ao final do dia, tendo a chuva amainado, o homem decidiu montar seu cavalo e empreender o retorno pela estrada barrenta. Conta-se que antes de partir teve ele o cuidado de verificar as ferraduras pelo receio de que o cavalo não pudesse enfrentar o solo movediço de barro.
Chegou ele ao sítio quando já era noite. No momento em que estendeu o braço para retirar o laço de arame que prendia o portão à cerca foi atingido por um raio. Na verdade o raio não caiu sobre ele: atingiu a cerca e a energia propagou-pelo arame chegando ao cavaleiro que não resistiu ao choque e morreu.
O homem que morreu atingido por um raio era pai de um meu amigo, colega do grupo escolar. O corpo foi velado numa casa velha do lugarejo e talvez tenha sido esse o meu primeiro contato real com a morte. De modo que nunca me esqueci da face do homem em seu esquife, nem do raio que o vitimou.
Desde então sempre temi raios e seu poder de destruição. Não chego aos extremos das pessoas mais velhas de minha família que, nas tempestades, cobriam espelhos e queimavam ramos benzidos no Domingo de Ramos. Confesso que não adianta saber que caso um raio caia sobre um automóvel fechado nada acontecerá aos seus ocupantes: detesto estar num veículo durante tempestades com raios.
Ontem um raio provocou a morte de quatro pessoas que se abrigaram sob um guarda-sol numa praia do litoral paulista. Entre elas uma moça gravida de cinco meses. Outras pessoas sob o mesmo guarda-sol se feriram e uma delas continua internada em estado grave.
Imagino essas pessoas saindo de suas casas para comemorar a passagem de ano no litoral, obviamente sem saber o que a sorte lhes prepara. Abrigar-se sob um guarda-sol durante tempestade com raios pode ser fatal, mas quem acredita?
Com frequência divulgam-se informações sobre cuidados a serem tomados durante tempestades. Insiste-se que ao ouvir o primeiro trovão deve-se procurar por abrigo seguro. Jamais ficar debaixo de árvores etc. Infelizmente muita gente se descuida daí os acidentes fatais.
Não me saí da cabeça a face do sitiante que morreu ao colocar a mão no arame da cerca. Desde que ouvi sobre a morte das quatro pessoas na praia as imagens do antigo velório retornaram vividamente. Dentro do caixão o morto exibia a pele escurecida, resultado do raio que o vitimara. Em vão tento me livrar dessa face, mas os raios insistem em me trazê-la de volta.
O resgate da confiança
Do que fala é sobre a necessidade do restabelecimento da confiança. Confiança no país, naturalmente. Confiança no governo. Confiança na classe política. Confiança no Judiciário. Confiança nos homens. Confiança em Deus que, afinal, é brasileiro e não vai nos faltar nessa hora.
Pois é. Você que acaba de abrir seus presentes de natal, você que está em tempos da mellhor boavontade do mundo, você aí, você mesmo, você acha que dá para confiar em alguma coisa?
Então? Refletiu? Está preparado para dar o seu voto de confiança a essa turma toda que já se mostrou capaz das maiores safadezas?
Confesso que de minha parte não consigo entrar nesse time da confiança. Nem no daqueles que esperam que o Brasil tome juízo. Rapaz, ando bem chateado. Como acreditar que, da noite para o dia, a turma dos que mandam vai se regenerar, erguer a cabeça, confessar-se e adotar um novo tipo de conduta?
O problema é que confiança não se restabelece por milagre. Não existe por aí uma fadinha do bem que agite a sua varinha e tudo se transforme em boas coisas, inclusive o caráter das pessoas.
Não confio no resgate da confiança porque para acontecer será necessária a mudança de caráter da gente que manda. Para dizer sinceramente talvez isso venha a ser possível daqui a umas três gerações. Talvez então exista um claro retrospecto da corrupção do passado e suas consequências. Cientes de um tipo de erro que não poderá se repetir os homens do futuro, os novos brasileiros, refletirão. Mas, aí será um novo Brasil que eu não chegarei a ver. Acho que nem você.
Medina: fabuloso
Talvez nem todo mundo concorde, mas no Brasil a percepção do surfe como esporte nunca foi das melhores. Quando meu filho começou a surfar os avós se desesperaram. Para eles o mundo do surfe seria paralelo, com o perigo de contato com drogas etc. Isso porque os surfistas seriam um bando de desocupados, gente que passava o dia na praia por não ter o que fazer. Assim, “surfismo” figurava como espécie de sinônimo para “vagabundagem”.
Confesso que diante de tanta prevenção a minha percepção do surfe também não era das melhores. Parecia-me que a rapaziada do surfe desligava-se das obrigações e entre eles era comum o desempenho escolar mais fraco. Talvez a paixão pelo mar e a atração pelas ondas falasse a eles mais alto que todo o resto. Aquela coisa de em toda manhã a primeira coisa a se perguntar era se “tinha ou não onda” parecia-m sem sentido.
Quando estive na Austrália me espantei com a realidade do surfe naquele país. Todo mundo surfa na Austrália. Trata-se de um esporte curtido por toda gente sendo comum o movimento de surfistas em direção ao mar nas primeiras horas da manhã. Lá, assim me pareceu, o estranho é não surfar. Trata-se, portanto, de cultura diferente que só agora talvez seja encarada de forma mais aberta no Brasil.
Tudo isso para dizer que fiquei embasbacado com o surfista Gabriel Medina que ontem se tornou o primeiro brasileiro a se tornar campeão mundial de surfe. Disputando a final no Havaí e concorrendo com as maiores feras do esporte o menino de 20 anos de idade foi mais que brilhante. O corpo esguio do garoto simulava um Deus olímpico dominando as águas. As enormes ondas marítimas pareciam estar ali apenas para obedecê-lo. Caso algumas delas se insurgissem contra o Deus, encobrindo-o, fazendo-o desaparecer, eis que ele ressurgia dos labirintos que em vão tentavam aprisoná-lo. A magia dos movimentos de Medina e o domínio completo de sua arte geravam imagens de rara beleza. Anos de treinamento e a incrível aptidão para um esporte para o qual nasceu feito concorriam para a perfeição da apresentação do novo campeão.
O esporte propicia em raros momentos instantes mágicos de superação nos quais o homem extrapola seus limites e supera a própria condição humana. Pelé nos legou momentos dessa magia em estado puro e Mohamed Ali atravessou a fronteira na inesquecível vitória sobre Georbe Foreman, isso para ficarmos em dois casos. Ontem Gabriel Medina alçou-se a essa galeria de gênios do esporte na qual deverá brilhar por muito tempo.
Acontece
Há tempos li de um colunista de jornal história acontecida com um amigo dele. Aconteceu ao amigo separar-se da mulher e, pouco tempo depois, realizar um cruzeiro de navio. Para espairecer a cabeça.
No primeiro dia, ao entrar no camarote, ouviu o toque do telefone. Era a Heleninha. Você ouviu bem: a Heleninha. Sabe quem era a Heleninha? Uma delícia, mulheraço. Embarcada no mesmo navio e convidando-o para jantar. Quanta sorte. Sorte não se dá, não se vende, sorte segura-se com as duas mãos, se preciso com os dente.
E lá se foi ele para o restaurante, arrumadíssimo, charmoso, no seu melhor. E logo veio a Heleninha, sorridente, feliz da vida por encontrá-lo. A Heleninha? Um senhora, muito diferente daquela Heleninha. Os anos haviam pesado para ela. Dito isso não serão necessárias descrições. O amigo passou os dias de cruzeiro fugindo dela.
Pois também aconteceu, desta vez a um meu amigo, participar de um encontro com os velhos camaradas dos tempos de faculdade. Tinha ele grande curiosidade em rever uma colega que era o máximo de mulher, tanto que várias vezes fora capa de revistas. Nos anos de faculdade era ela o tesão da turma. Verdade que ela nunca se deu ao desfrute de sair com dos colegas. Admirada por todos, desejada das gentes, não se entregou. De modo que sobre aquela mocinha pairavam as luzes de uma saudade acolhedora e a visão impertinente dos machos sempre sequiosos.
Filosofou-me o amigo que na verdade nós nos enganamos em relação ao tempo que corre. Diariamente nos vemos no espelho, sem que nos demos conta de que outras faces que tivemos foram sendo gradualmente substituídas até chegarmos à atual que queremos jovial, impactante.
Não é assim. Quarenta anos passados representam muito mais que um fragmento da eternidade. De modo que a maravilhosa do passado era agora uma senhora na qual não se viam vestígios de sua beleza anterior. Viera acompanhada de um dos filhos, ele mesmo um rapaz de mais de 30 anos.
O amigo contou-me isso com lágrimas nos olhos. Vê-la o havia conduzido à realidade de que também ele se tornara velho, embora não aceitasse a velhice totalmente.
Tive vontade de rir ao ouvir o relato do meu amigo. Na cabeça dele as duas imagens de uma mesma pessoa não se plasmavam. Brincando, sugeri a ele que ficasse com a imagem antiga, a da moça belíssima. Ele sorriu, amargamente, e disse:
- O diabo é que vi a segunda.