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O direito de falar
Acontece em reuniões familiares. Todos juntos, vinho e cerveja, piadas, risadas, o amor une os membros da mesma família. O irmão provoca a irmã mais velha, ela retruca, ele apela para um acontecimento da infância, tanto tempo atrás, como você se lembra? A irmã dá outra versão da história, o irmão sugere que ela mente, devagarinho a conversa esquenta. O vinho liberta a língua. Até que entra em cena aquela que é de fora, não viveu com eles, ela a cunhada, a mulher do irmão. A cunhada sai em defesa do marido, mete o dedo numa ferida há tanto fechada, por que justamente hoje, depois de um almoço tão bom, por que reabrir um caso que, nem sabíamos direito, nos machucara tanto? Segue-se a mãe repreendendo os filhos, lembrando-os que se amam tanto, por que raios isso agora? Ao que a cunhada, já em pé, faces rosadas e tremendo, declara alto e bom som: ele tem o direito de falar.
Então aquele fato ficara marcado para ele que até então não pusera para fora sua indignação. Mas, se ocorreu faz tanto, pondera um primo. Mas, existe sim o direito de falar sejam quais forem as consequências. O homem tinha isso entalado na garganta desde a infância. Mas a vida seguirá em frente. Os irmãos se estranharam e não existe esparadrapo que feche a ferida de uma vez. Um dia a mãe morrerá, deixarão de existir os almoços em família e os irmãos se falarão, talvez no natal, pelo telefone.
O ministro da Educação compara ação da Polícia Federal com o nazismo. Entidades judaicas do país e do exterior protestam. O ministro vem a público para garantir o seu direito de falar.
Questão de foro íntimo?
Certos assuntos podem e devem ser evitados. O nazismo exterminou judeus, trazê-lo à tona comparando-o com atos do dia-a-dia, existe esparadrapo que cubra essa ferida?
Desempregados
Ano passado foi de crise. Alardeado como princípio de governo e necessidade de reformas seriam dados os primeiros passos para que o PIB finalmente começasse a deslanchar. Os doze milhões de desempregados e a miséria refletiam a urgência em sair do buraco.
Entretanto, nem de longe se supunha sobre o que viria pela frente. Eis que o ano de 2020 se abre com razoáveis perspectivas de recuperação. Passam-se poucos meses e aparece no noticiário o fato de a China estar em combate com um novo vírus. O restante da história todo mundo conhece. O Covid-10 se espalhou pelo mundo, no Brasil morrem cera de mil pessoas por dia e não se sabe ao certo o número real de infectados. O confinamento paralisa a economia. Empresas demitem. Está armado o painel de desgraça progressiva a que somos submetidos no dia-a-dia.
Verdade que o vírus não respeita a riqueza. Para ele são indiferentes ricos, remediados e pobres. Assim, ninguém está livre do perigo de vir a ser infectado e, pior, de ir a óbito. Mas, se falamos em ricos e famosos não deixa de ser interessante o modo como esse grupo se apresenta e se protege nos dias que correm. Recolhidos às suas casas pessoas famosas destacam-se na mídia não pelo que fazem profissionalmente, mas pelo modo como vivem no período em que o confinamento os fasta dos holofotes. Assim, casas espetaculares são mostradas, mulheres explicam como se adaptam aos fazeres caseiros agora que seus exércitos de domésticas estão afastados, homens e mulheres cedem entrevistas sobre as rotinas de home office a que estão obrigados. Corpos esculturais relatam ao povo técnicas para manter-se em forma isso quando não se deixam fotografar com peças mínimas nas piscinas de suas casas. Há que se estar preparado para o momento em tudo voltar ao normal e as atividades reiniciarem.
Mas, nem tudo é favorável aos que pertencem às classes mais privilegiadas. Eis que também as empresas se ressentem da crise e veem-se na contingência de demissões para contenção de custos. Devido a isso pessoas que nos pareciam intocáveis tornam-se desempregadas do dia para a noite. Tem acontecido em empresas de vários setores, mas casos que mais chamam a atenção dizem respeito a pessoas que nos são mais familiares. Em particular aqueles que trabalham em meios de comunicação atraem mais a atenção. Redes de televisão demitem artistas e jornalistas de seu primeiro escalão. Fulano de tal a quem estávamos habituados a ver no vídeo nos últimos 25 anos não teve seu contrato de trabalho renovado. Querido pelo público a mídia apressa-se em apresentar opções para que o tal fulano volte a trabalhar. Conhecido ator que há 50 anos trabalha em rede televisiva é demitido e vem a público para dizer-se sem reservas financeiras e da dificuldade em manter-se em razão da idade avançada. De repente, o mundo privado das personalidades se abre sob outros aspectos aos olhos curiosos do povo.
A epidemia corrente não dá sinais de que venha a terminar brevemente. Enquanto perdurar seguiremos como coadjuvantes nessa interminável peça cujo tema principal é o mundo de cabeça para baixo.
No centro da pandemia
Não há como fugir. O noticiário funciona como um trombone, repetindo muito alto o som de poucas notas. O conteúdo é o desse sempre: número de infectados e óbitos.
Mas, o que espanta são os desacertos. Trava-se a céu aberto uma batalha intestina entre os homens que detém o poder. Acusações de lado a lado tornam o ar irrespirável. O Brasil já não é o Brasil. Deixaram-se de lado protocolos, urbanidade, solidariedade e, principalmente, responsabilidades.
A cloroquina deixa de ser assunto médico para se tornar arma em campos de batalha por detrás dos quais reinam somente interesses. Não há consenso entre autoridades federais e estaduais. Em pleno furor epidêmico dois ministros da saúde deixam o cargo, agora ocupado por um general.
Uma reunião ministerial é divulgada e estarrece a opinião. Os altos poderes da República navegam em tempestuoso mar de palavrões. Ministros alardeiam posições alarmantes. A presidência da República é alvo de indignações e pedidos de impeachment. Em meio à maior crise de sua história o desentendimento é a chave do desgoverno.
Mas, as mortes crescem dia-a-dia. Famílias inconsoláveis perdem entes queridos. O mercado da morte está em alta. Morre-se nas casas, a caminho de hospitais, à espera de internações, em leitos hospitalares pela falta de respiradores. Em algumas cidades hospitais já não têm vagas para receber doentes.
Há pouco estávamos no carnaval. Brincava-se na inocência de um futuro devastador. Em meio a tudo isso talvez a saída seja imaginar que, afinal, trata-se apenas de um sonho ruim. De manhã acordaremos, quem sabe sem lembrança do que foi sonhado. Ou seguir a recomendação do poeta Manuel Bandeira: tocar um tango argentino.
A “Deis Conto”
Carlos Zérifo fez a alegria da moçada na época em que fotos de mulheres nuas eram raridade. As revistinhas escritas por Zérifo eram o máximo. Tinha ele o “timming” necessário para tratar do assunto. Havia sempre aquela mocinha de corpo escultural, ainda virgem, que seria deflorada na sequência de desenhos altamente sugestivos.
As revistinhas assinadas por Zéfiro eram raridade. Em torno delas girava verdadeiro câmbio negro. Quem as tinha emprestava-as aos amigos com hora marcada para devolução. No mais tudo se resumia às fotos das belas de maiô na capa das revistas “O Cruzeiro” e “Manchete”. As “Certinhas do Lalau” faziam furor. Era comum, nos anos sessenta do século passado, colunistas sociais elegerem as dez mulheres mais bem vestidas. Stanislau Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, criou a lista das mulheres mais bem despidas, “as certinhas”. Era o trabalho do “mulherólogo”, um sujeito a quem cabia mais ser conquistado que conquistar.
Como se vê tudo muito diferente do que se verifica nos tempos que correm. Hoje a internet oferece de tudo com os tais sites pornô abertos a quem quiser visitá-los. Entendidos do assunto culpam a banalização do sexo como uma das causas do desinteresse de muita gente por essa atividade.
Não sei como as coisas se passam exatamente hoje, mas, no passado, era comum a iniciação sexual dos rapazes, levados à “zona” onde tinham sua primeira experiência com prostitutas. Lendária era a “A Casa da Eny” localizada na cidade de Bauru, interior de São Paulo. Eny mantinha o maior bordel do Estado, quem sabe do Brasil. Sobre isso existe o livro “Eny e o Grande Bordel Brasileiro”, escrito pelo jornalista Lucius de Mello.
Bordéis sempre existiram por esse Brasil afora. Entretanto, nas pequenas localidades, o comércio sexual mantinha-se - e mantem-se -restrito às atividades de umas tantas profissionais sem vínculo com alguma organização. Em localidades menores ainda sucedem ser raras essas profissionais. Daí vir à memória a tão popular “Deis Conto” que fez fama numa cidadezinha de não mais que cinco mil habitantes. Era uma moça mais para gorducha que não primava tanto pelo asseio. Consta que não dispunha de lugar próprio para oferecer seus favores sexuais razão pela qual praticava-se o ato na disponibilidade da ocasião.
A “Deis Conto” era popular na cidade. Incorporara-se ao folclore local e falava-se dela com alguma simpatia. Não era como aquela “Geni” da música do Chico Buarque que salvou a cidade numa noitada com estranho viajante para, depois, ser agredida pela população.
A “Deis Conto” terá iniciado muita rapaziada no ofício sexual. O apelido fora dado a ela em relação ao valor que cobrava pelos seus obséquios sexuais. Eram dez cruzeiros. É, a “Deis Conto” era do tempo dos cruzeiros.
Chernobyl
Assisti à minissérie “Chernobyl”. Desde já recomendo assisti-la a pessoas que tem estômago forte. Em tempos de confinamento não é lá muito agradável entrar em contato com as cenas terríveis decorrentes da explosão de um reator na usina nuclear russa. Mas, isso não quer dizer que não valha a pena assistir. Ao contrário, trata-se de minissérie que recebeu elogios de críticos, ganhou prêmios e despertou a atenção de pública.
Como não poderia deixar de ser a minissérie não consegue ser exatamente fiel aos acontecimentos do grande acidente nuclear. Ela começa com o depoimento do cientista Valery Legasov (Jared Harris), um dos envolvidos na contenção do desastre, que se suicida logo após deixar as fitas que gravara num lugar seguro. No depoimento de Legasov ele atribui grande responsabilidade a Anatoly Dyatlov (Paul Ritter) que era o encarregado de Chernobyl no momento da explosão durante um teste de segurança. Na minissérie Dyatlov é mostrado como um chefe teimoso, arrogante, que insiste em não acreditar na explosão do reator daí colocar em risco seus subordinados. Na vida real Dyatlov sempre negou a responsabilidade pelo acidente, foi julgado e condenado a prisão. Entretanto, pessoas que trabalharam com ele na usina nuclear o caracterizam como um sujeito duro, porém competente.
Uma das cenas mais marcantes do primeiro capítulo é a que mostra pessoas que moravam nas imediações de Chernobyl, acordadas na madrugada do incêndio, acorrerem a uma ponte de onde podiam observar as chamas. Ali estavam famílias enfeitiçadas pelo esplendor de chamas coloridas. De repente, chegam a elas cinzas trazidas pelos ventos, poeira radioativa. A cena é bela. Estima-se que essas pessoas morreram mais tarde em consequência da contaminação.
Mas, a minissérie não é só isso. Nem se trata de spoiler o que se disse acima por que são fatos conhecidos e se resumem aos primeiros minutos do primeiro capítulo. Servem, contudo, à reflexão nesses dias em que o Covid-19 avança no país, roubando vidas.
Dirão nada haver entre um acidente nuclear e uma epidemia viral. Grosso modo não mesmo. Entretanto, atribui-se Chernobyl ao modo de ser na União Soviética naquele ano de 1986. Atribui-se o acidente a uma falha humana uma vez que os operadores do reator descumpriram diversos itens dos protocolos de segurança. O criador da minissérie, Craig Mazin, afirma que a razão de tudo ter acontecido foram as constantes mentiras na União Soviética.
Passados 27 anos as consequências do acidente nuclear de Chernobyl foram e continuam ser terríveis. Dois trabalhadores morreram no instante da explosão e 28 nas semanas seguintes. O iodo radioativo contaminou mais de 200 pessoas. Populações da Rússia, Bielorrussia e Ucrânia ficaram expostas e verificaram-se dezenas de pessoas com câncer. Mais de 200 mil pessoas foram transferidas da região pelo governo soviético. Produtos agrícolas da região pararam de ser consumidos e até hoje não é recomendável seu consumo. Animais apresentam mutações genéticas.
As cenas citadas nas quais a população é atingida por material radioativo nos remetem ao momento atual no qual pessoas indefesas são expostas à contaminação pelo vírus Covid-19. O desencontro de orientações entre as esferas federal e estaduais, os fake news em torno da epidemia, as substituições no cargo de Ministro da Saúde, a resistência em relação à necessidade de confinamento, a pressão pela recuperação da economia, a disparidade de discursos proferidos pelas mais altas patentes do país, o galopante número de contaminações, o crescimento do número de óbitos, tudo isso nos remete àquelas faces felizes sobrea ponte a observar o incêndio de Chernobyl. Elas não sabiam que estavam condenadas.
Depois da morte
Minha tia tinha horror em relação ao assunto morte. Assustava-a o ato de como e do que morrer. Também o quando. Acompanhara o sofrimento da mãe levada pelo câncer. A mãe tivera câncer no seio. Fizera a mastectomia e, depois, submetera-se à radioterapia. Mas, eram os anos sessenta do século passado. A radioterapia produzira queimaduras extremamente dolorosas. Dai por diante a mulher nada mais fazia que gemer. Seguiu assim até o fim.
Minha tia também se incomodava com o que seria de seu corpo depois de enterrada. Sofria com a hipótese de estar trancada dentro de um caixão, acossada por toda sorte de vermes e insetos. Baratas, ah, as baratas. Mas se a senhora estará morta e não terá consciência disso… É, mas é o meu corpo…
Mais, ainda, minha tinha incomodava-se com o que diriam sobre ela depois que estivesse morta. Que lembranças restariam dela? Que opiniões? Que julgamentos? Difícil ser criticado quando já não se pode defender. Não que ela tivesse, ao que as saiba, grandes erros. Aposentara-se após anos no serviço de educação e não deixara inimigos. Gente boa. Mas, temia o julgamento dos pósteros.
Ao que parece não existem grandes motivos para incomodar-se com o que dirão os pósteros após o passamento de uma pessoa. Afinal, se está mesmo morta a pessoa não saberá de nada. Mas, aos vivos parece importante que sejam lembrados com alguma dignidade. Muita gente fica fora disso pelas vidas erráticas que levam. Mas, embora mortos, não seria bom que nossa intimidade se conservasse reservada?
Meses atrás o apresentador de televisão Gugu Liberato morreu, subitamente, ao cair do sótão de sua casa. Na queda bateu a cabeça, teve hemorragia cerebral e não se recuperou. Amado por seus fãs a morte do apresentador comoveu a opinião. Passado o transe da morte sucederam-se as devassas. Abriu-se a questão do testamento do apresentador no qual excluiu a mulher. Surgiram histórias de que ela e o marido nunca teriam sido de fato um casal. Os filhos teriam resultado de processos de inseminação artificial
Hoje aparece na mídia a notícia de que um chef de cozinha reclama, na justiça, o reconhecimento de união estável com o apresentador. Ele faz isso visando a partilha de bens acumulados durante o período em que estiveram juntos. Como se sabe o apresentador deixou a seus herdeiros considerável fortuna.
Melhor seria se guardássemos de Gugu a lembrança de sua jovialidade e inventividade enquanto apresentador de televisão. Figura simpática, fazia a alegria de milhões. Mas, a posteridade tem sido a ele madrasta. Pouco a pouco surgem fatos sobre seu passado que afetam a imagem que seus seguidores dele faziam. Não que ele estivesse errado e não tivesse o direito a fazer suas opções. Mas, há muito de maldade no modo escolhido por muitos ao julgá-lo.
A questão da culpa
Recolhidos às nossas casas por conta do alastramento da epidemia provocada pelo Covid-19 assistimos aos noticiários que outro tema não tem que não esse assunto. Assim, não há como ignorar o que se passa nas diversas regiões do país, mormente no tocante às dificuldades enfrentadas pelas populações menos favorecidas. Escancaram-se aos nossos olhos situações para as quais normalmente damos as costas. Não só as dificuldades de acesso a recursos médicos que envolvem a utilização de respiradores essenciais para salvar vidas chamam a atenção. Estão aí milhares pessoas envolvidas em atividades informais que, da noite para o dia, viram cessar as já parcas oportunidades de garantir o sustento das suas famílias. Essas pessoas aglomeram-se em intermináveis filas em direção a estabelecimentos bancários em busca de receber o anunciado auxílio monetário provindo do governo. Novos casos e mortes devidas o vírus são anunciadas diariamente. Repórteres ciosos de sua função trazem-nos imagens de famílias que vivem em condições subumanas. A todo vapor abrem-se covas em cemitérios havendo lugares nos quais os serviços funerários já não dão conta do número diário de sepultamentos. Em Manaus já não existem vagas para internação de pacientes em estado grave. Caminhões frigoríficos são utilizados para armazenar corpos à espera de sepultamentos. Autoridades vêm a público sem condição de expor a exata dimensão do problema que a cada dia se agiganta. Com o comercio fechado a pressão para o fim do confinamento cresce. Paira no ar o espírito de ameaça permanente e o medo de que a situação atual perdure indefinidamente.
Nunca a miséria que sabemos existir entrou nas nossas vidas com tal intensidade. Não há como fechar os olhos para situação em que a desigualdade se impõe sem artifícios. Deixam de valer os discursos sobre terceiro-mundismo, subdesenvolvimento, enfim todos os epítetos que ao longo de nossa história são utilizados para justificar a desigualdade social. Daí a razão de nos perguntarmos: qual a parcela de culpa que temos sobre tudo isso?
A questão da culpa foi analisada pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969). A análise de Jaspers diz respeito a culpa atribuída ao povo alemão pelas barbáries cometidas pelo nacional-socialismo alemão sob o comando de Adolf Hitler. Durante doze anos os nazistas estiveram no governo da Alemanha sendo que, entre 1939 e 1945, promoveram a Segunda Guerra Mundial na qual, entre outros crimes, seis milhões de judeus foram exterminados. Terminada a guerra, vencida pelos aliados, os chefes nazistas foram submetidos a julgamento no Tribunal de Nuremberg. Alguns foram condenados à morte, outros a prisão perpétua, prisão durante vinte anos, uns poucos absolvidos. Importante destacar que no julgamento realizado em Nuremberg afirmou-se que não se estava a estabelecer a culpa do povo alemão, mas dos criminosos de guerra. Entretanto, surgiram na Alemanha cartazes com os dizeres “Você é culpado”. Mas, teria o cidadão alemão realmente culpa pelos crimes praticados pelo Estado de seu país e militares que atuaram em campos de concentração?
Para responder a essa pergunta Jaspers estabeleceu quatro tipo de culpa: criminal, política, moral e metafísica, expostas no livro “A questão a culpa”, Editora Todavia. Em linhas bastante gerais trata-se do que se segue.
A culpa criminal é imputada somente àqueles que, individualmente, cometeram algum crime que tenha punição prevista na lei. No caso do nazismo significou a punição de pessoas que efetivamente praticaram crimes. Note-se que essa punição individual não é extensiva a todo o povo alemão, considerando-se absurda a hipótese de culpar por um crime todo um povo. Entre nós significaria, por exemplo, culpar todos os brasileiros por crimes praticados durante o período ditatorial no qual foram verificadas torturas e mortes.
A culpa política decorre da corresponsabilidade dos cidadãos que, no caso da Alemanha, permitiram a ascensão do nazismo. Em sentido amplo os cidadãos são corresponsáveis pelo modo como se governa. Neste momento de calamidade provocada pela epidemia discute-se, entre nós, o modo de governo adotado pelo atual presidente em exercício. As atitudes por ele tomadas em relação à epidemia tem sido reprovadas dentro do país e mesmo internacionalmente. Nesse caso não se pode deixar de lado a corresponsabilidade da população, em particular da grande parcela que tornou possível sua eleição. Entretanto, segundo Jaspers, a culpa política não é coletiva. A corresponsabilidade atinge cada um de forma distinta na sua individualidade, não sendo transferida.
A culpa moral funciona de modo semelhante à culpa política dado ser impossível julgar moralmente uma coletividade. Nesse caso é o indivíduo a julgar a si próprio considerando-se sua participação ou omissão em relação aos acontecimentos abordados.
No tocante à culpa metafísica Jaspers destaca a importância de nos sentirmos humanos e solidários. Ao deixar de vítimas da miséria e da desigualdade social vemo-nos diante do absurdo da desumanidade cabendo-nos buscar a transformação pessoal ao nos conscientizarmos de nossa culpa metafísica.
As proposições de Jaspers sobre a culpa aplicaram-se a uma situação limítrofe da humanidade. Entretanto, elas podem nos ajudar em ponderações sobre o que se passa em nosso país. Fato é que fica difícil ao cidadão brasileiro isentar-se de responsabilidades em relação aos acontecimentos que constituem a realidade social do país. A corresponsabilidade em relação às escolhas políticas é alarmante. Hoje mesmo há muita gente a penitenciar-se pela escolha do atual presidente embora justificando-se ao dizer que não se votou nele, mas contra a situação de governo anterior. E há a dívida moral e metafísica pela ausência de solidariedade em relação aos menos favorecidos. Talvez por isso o desconforto diante da situação premente que atravessamos. Poucas vezes em nossa história a miséria abriu-se a céu aberto com tanta expressividade.
A pergunta que geralmente se faz é a de que posso fazer eu, simples cidadão, para melhorar as coisas? Bem, existem muitas atitudes entre as quais se destaca a consciência na escolha daqueles que chegarão aos postos de poder na nação. Entre muitas outras também se destacam atitudes de ajuda em geral encetadas por grupos de pessoas unidas em torno da solidariedade.
No caso alemão Jaspers concluiu que todo alemão tinha sua parcela de culpa pelos horrores do nazismo.
Sorte grande
Foi numa farmácia. Estávamos na fila de atendimento, dois metros de afastamento de cada um, quando um homem disse à mulher que o acompanhava:
- Numa crise dessas só mesmo se tirar a sorte grande.
A “sorte grande”. Há muito tempo não ouvi falar sobre ela. Mas, na minha infância, citava-se muito a danada. Ela fazia parte dos sonhos das gentes classe média baixa e dos pobres. Tirar a “sorte grande” seria a solução para todos os problemas. Mas, como alcançá-la?
Pode ser que “sorte grande” tenha muitos significados. Mas, o mais comum e significativo representa ganhar muito dinheiro de uma só vez. Em geral isso se consegue acertando com bilhetes de loteria, no jogo do bicho e, mais recentemente, na megasena, na quina etc.
Embora proibido no Brasil consta que o jogo do bicho segue ativo nesse Brasil afora. São 25 bichos e pode-se apostar nas dezenas, centenas e milhares. Acertar o milhar representa conseguir o prêmio mais alto, logicamente com valores proporcionais àqueles que foram apostados. Mas, o jogo do bicho acontece “por baixo do pano”, como se diz. Interessados em apostar sabem onde fazer o jogo.
Mas, ao que parece a “sorte grande” é para poucos. Conheci um jogador contumaz que perseguiu por muitos anos a tal sorte. Conseguiu-a no fim da vida: teve seu bilhete premiado na Loteria Federal, ganhou no bicho e, incrivelmente, nalgumas rifas, tudo ao mesmo tempo.
A bem da verdade não sei o que dizer sobre a sorte. Francisco Matarazzo, industrial italiano que chegou a ser o terceiro homem mais rico do mundo, atribuía seu sucesso nos negócios a dois fatores: inteligência e sorte. De minha parte não sei dize se tenho, ou não, a sorte no jogo. Entretanto, quando ainda aluno do curso hoje chamado de Ensino Médio, participei de uma festa na qual existiam barracas que faziam sorteios. Os prêmios mais relevantes eram frangos assados. Pois devo ter ganho cerca de meia dúzia de frangos que levei para casa. Espero não ter gastado ali toda a minha cota de sorte em rifas e jogos porque, depois daquela ocasião, nunca mais ganhei em nada.
Hoje em dia a Megasena faz milionários com alguma frequência. Nem sempre conseguir a “sorte grande” significa felicidade no futuro. São muitos os casos de ganhadores que acabam se dando mal por mau uso do dinheiro etc. Mas, como dizia um conhecido: “se dinheiro não traz felicidade então eu não quero ser feliz”. Será?
Retorno
A paralisação das atividades imposta pelo confinamento abre as portas do passado. Não se trata apenas da reclusão pessoal, convite inevitável para incursões nas memórias. De repente pessoas e situações há muito vividas saem das sombras. É como se nossas casas estivessem, da noite para o dia, povoadas por fantasmas que a todo transe nos acossam. Lembranças, lembranças, mesmo aquelas de que não gostaríamos mais de recordar. Alegrias, tristezas, atitudes corretas e outras nem tanto, erros crassos, amores perdidos, sofrimentos que pareciam jamais terminar, desavenças, ajudas, enfim tudo aquilo que nos faz misteriosamente humanos.
Mas, não há como fugir ao passado. A disseminação da pandemia impõe paralisações inevitáveis. Na imprensa o noticiário gira em torno de números de pessoas infectadas e óbitos, relegando ao segundo plano notícias que nos chegavam ainda a pouco. Alerta-se sobre a crise econômica decorrente da paralisação, da queda do consumo de combustíveis e sobre o futuro incerto. Com atividades esportivas suspensas resta-nos assistir a competições ocorridas no passado. Ressuscitam-se heróis de conquistas memoráveis. O embate entre as seleções brasileira e italiana na final da Copa do Mundo de 1970 é mostrado na televisão. Grandes jogos entre equipes também ocupam o espaço deixado pelas competições agora paralisadas. Sugestões de livros para estimular a leitura nas intermináveis horas do dia e da noite aparecem na mídia. Isso sem falar na repetição de novelas de sucesso cujos capítulos são exibidos diariamente. E filmes que marcaram época. De repente as novas gerações entram em contato com ídolos do passado de cuja existência desconheciam. Estão aí celebridades como Henry Fonda, John Wayne, Tyrone Power, Clarck Gable e tantos outros.
Por falar em Clark Gable dias atrás alguém mencionou o filme “Os Desajustados”, de 1960. Dirigida por John Huston a película conta com grandes estrelas, o próprio Gable, Marylin Monroe e Montgomery Cliff. No enredo uma mulher recentemente divorciada, Rosilyn Taber, vivida por Marylin, está num bar com uma amiga e conhece dois cowboys, Gay Langland (Clark Gable) e Perce Howland (Montgomey Clift). O grupo acaba por ir a um rodeio onde encontram um terceiro cowboy, Guido (Eli Wallach), que fala sobre cavalos selvagens. A decisão é ir à caça desses cavalos. Entretanto, quando a caça acontece Rosilyn descobre que o motivo da perseguição é apanhar os cavalos para serem sacrificados e fornecerem suas carnes. Rosylin se opõe a isso. É impressionante a cena da captura dos cavalos, realmente selvagens, induzidos a correr numa trilha. Há o momento em que Gay tenta laçar um deles e é atrapalhado por Rosalyn. A reação de Gay é empurrar Rosalyn que acaba caindo.
Em “Os Desajustados” existem, ainda, as reações amorosas entre Rosalyn e os dois homens, Gay e Perce. O roteiro do filme foi realizado pelo grande escritor Arthur Miller, na época marido de Marylin Monroe. Trata-se do último filme de Gable e Marylin. Gable morreria pouco depois. Marylin seria encontrada morta em seu quarto, em 1962. Aos que não tiveram oportunidade de conhecer a grande diva Marylin Monroe “Os Desajustados” apresenta-se como grande opção.
Nos EUA grandes escritores trabalharam como roteiristas de filmes. O dramaturgo Arthur Miller, autor de “A morte do caixeiro viajante”, foi um deles. F. Scoot Fizgerald, autor do grande romance “O Grande Gatsby” trabalhou alguns anos em Hollywood. O prêmio Nobel de literatura William Faulkner foi roteirista de filmes dirigidos por Howard Hawks. Aliás, sobre Faulkner existe a piada de que Hawks apresentou-o a Clark Gable, na época grande estrela de Hollywood. Ao serem apresentados, Gable perguntou a Faulkner sobre o que ele fazia. Ao que Faulkner respondeu:
- Sou escritor. E o senhor, o que faz?
Raízes do Brasil
Nos dias que correm é comum que nos jornais se publiquem indicações de livros para que pessoas confinadas em suas casas preencham algum tempo de ócio que acaso tiverem. Desde literatura a economia e autoajuda, os temas são variados. Nas televisões o assunto único é a pandemia. As notícias sobre números de infectados e óbitos ocupam o espaço dos noticiários. Hoje publica-se que o preço do barril de petróleo teve baixa de mais de 30%, mas pouca atenção se deu a isso dado que nas bombas dos postos de gasolina os preços dos combustíveis se mantêm inalterados.
O grande problema do momento é a duração do confinamento. Ontem passeatas ruidosas pediam o fim da reclusão forçada. Com os negócios parados há risco de quebradeira de empresas e ainda mais desemprego no país. Do lado oposto situa-se o vírus que vai mantando gente mundo afora. O binômio saúde/economia tem despertado grandes discussões. A morte ou a sobrevivência dos negócios?
De todo modo muita gente arrisca-se a desobedecer às orientações da OMS. Saem às ruas, não usam máscaras, não respeitam os tais dois metros entre uma pessoa e outra. O que há é certa descrença no perigo de ser infectados. Isso sem falar naqueles que supõe ser o vírus nada mais que uma invenção.
O comportamento de grande parte da população difere do que se vê em outros países nos quais o confinamento é levado a sério. Cientes de que essa é a única maneira de impedir o avanço da pandemia do qual depende o retorno às atividades normais pessoas seguem a risca as normas do isolamento. Isso nos leva a pensar sobre o modo de ser da nossa gente e desperta a curiosidade sobre tantos ensaios escritos ao longo da existência do país. Um deles, embora escrito nos anos 30 do século passado não deixa de ser interessante, embora nem tudo em seu conteúdo seja aplicável aos Brasil de hoje. Trata-se de “Raízes o Brasil”, obra do sociólogo Sergio Buarque de Holanda.
No livro Buarque de Holanda descreve o brasileiro como um “homem cordial”, isto é, que age pelo coração e pelo sentimento, preferindo as relações pessoais ao cumprimento de leis objetivas e imparciais. Daí resulta a dificuldade de homens ocupando cargos públicos distinguirem entre o público e o privado. O “homem cordial” é dominado pelo coração. O coração funciona como intermediário das relações daí a sociedade em que o Estado funciona como propriedade da família.
“Raízes do Brasil” é um mergulho na identidade brasileira que ainda hoje merece muita reflexão. Faz parte de livros publicados por seleto grupo de pensadores entre os quais estão Gilberto Freyre, caio Prado Junior e Celso Furtado entre outros.