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Virginia Woolf
A revista Time acaba de divulgar a lista das 25 mulheres mais influentes do século XX. A lista é encabeçada por Jane Adams (1860-1935) que lutou pelas causas sociais de trabalhadores e foi a primeira americana a receber o Prêmio Nobel da Paz. Fazem parte do grupo a Madre Tereza de Calcutá (1910-1997), a cantora Madonna (1958-), Coco Chanel (1883-1971), Oprah Winfrey (1954-) e Hillary Clinton (1947-).
Entre as mais influentes também se encontra a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941). Seu livro mais conhecido é Orlando, publicado em 1928, considerado um marco do modernismo. Orlando é um jovem inglês, nascido ao tempo da Idade Moderna, que, durante viagem à Turquia, certa manhã acorda transformado em mulher. Como Orlando é imortal, pode-se acompanhar a sua trajetória por um período de 350 anos nos quais a ambiguidade do sexo é trabalhada pela autora. O leitor acompanha Orlando dos dezesseis aos trinta e dois anos que correspondem, em termos de biografia, a mais de três séculos de história literária. Segundo o crítico Harold Bloom o que mais importa em Orlando é a comédia e um intenso amor pelas grandes eras da literatura inglesa. Virginia adorava a arte e Orlando reflete as atividades de uma grande leitora que, já no prefácio do livro, confessa as várias influências sobre o seu trabalho.
Virginia Woolf forma, juntamente com James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, o quarteto mágico do modernismo. O crítico Peter Gay explica como se deu a transição do realismo para o modernismo, abordando aspectos inerentes aos dois movimentos. Afirma o crítico que os autores de prosa convencional não chamavam atenção especial para as suas técnicas. O esperado nos romances tradicionais eram personagens enfrentando situações complexas, havendo surpresas e mudanças de fortuna; entretanto, a trama caminhava para uma solução final, um desfecho claro como se houvesse acordo tácito entre o escritor e os leitores. Exploravam-se mais as exterioridades, ao contrário das obras modernistas, voltadas para as realidades internas. Seguiu-se, com o modernismo, uma revolta contra as exterioridades. Peter Gay prossegue dizendo que os modernistas inverteram dramaticamente a técnica do romance, mudando a distribuição habitual do espaço, muitas vezes dedicando longas passagens a um único gesto. Abandonavam-se os cenários e o drama investindo-se numa viagem interior, celebrando-se a subjetividade.
A questão da subjetividade foi explicada por Virginia Woolf durante uma palestra na qual afirmou: “em dezembro de 1910, a personalidade humanam mudou”. Referia-se a escritora à mudança de mentalidade definida como modernismo. Para Woolf a primeira década do século XX ainda estivera envolta em princípios vitorianos antiquados.
Virgínia Woolf era filha de um historiador de ideias e editor importante. Desde cedo mostrou-se muito frágil e sensível, sendo frequentes suas mudanças de humor que, por vezes, chegavam a enlouquecê-la. Leitora incansável, Woolf escrevia desde cartas a ensaios e polêmicas feministas. Em seus livros a escritora abordava questões políticas, sociais e também o pensamento feminista, envolvendo a situação da mulher e suas limitações diante das imposições de um mundo masculino.
Em 1912 Virginia casou-se com Leonard Woolf com quem, cinco anos mais tarde, fundou a editora Hogart Press. Nessa editora foram revelados escritores como T. S. Eliot e Katherine Mansfield. Entre os livros de Virginia Woolf destacam-se, além de Orlando, Rumo ao farol e As ondas.
A extrema fragilidade de Virginia Woolf terá sido o fator preponderante em sua precoce morte. No dia 28 de março de 1941, logo após um colapso nervoso, a escritora vestiu um casaco, encheu-o de pedras e atirou-se nas águas de um rio, onde morreu. Pouco antes de seu suicídio deixara uma carta ao marido Leonard com os seguintes dizeres:
Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim, mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.
V.
Serapião Filogônio
“O quase fim de Serapião Filogônio” é romance do escritor mineiro Jonas Rosa. No texto da contracapa somos avisados de que Jonas Rosa é natural da região da Zona da Mata. É o espaço geográfico do Estado de Minas Gerais que faz divisa com os Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro.
É dentro desse contexto geográfico que se passam as aventuras de Serapião Filogônio, conduzidas pela verve poética de Jonas Rosa. Verve de quem domina o território tantas vezes agreste em que situa a sua narrativa para a qual atrai o leitor como aranha que, devagar e precisamente, arma sua teia de pequenas narrativas interligadas, envolvendo-o.
Serapião Filogônio é herói às avessas cujo destino é seguir uma trajetória acidentada na qual seres humanas e animais se entrecruzam, como a demonstrar que nada pode impedir a ação do acaso. Serapião, pai de família endividado, deixa mulher e filhos na imprecisa localidade de Pavanópolis para deslocar-se em direção ao Rio de Janeiro. Misto de vaqueiro e homem ilustrado segue em busca de emprego e ressarcimento de dívidas que darão dias melhores aos seus. Entretanto, é da lei da vida que os caminhos sejam plenos em percalços, o primeiro deles o afundamento do ônibus de viagem num atoleiro. Trata-se de um aviso: a vida de Serapião não passa de um grande atoleiro do qual só a sorte e o acaso poderão livrá-lo porque, com frequência, sua vontade sucumbirá a múltiplos apelos de ocasião.
Conhecedor profundo do modo de vida das gentes do interior, hábitos e, mais que isso, das inflexões que atormentam a alma humana, Jonas Rosa faz uso da terceira pessoa para narrar os descaminhos que se opõem ao deslocamento de Serapião. É através da sua pena que adentramos o mundo contraditório no qual Serapião circula, desgarrado de tudo, mas, ainda assim, amarrado às circunstâncias de momento. De fato, Serapião goza de uma teórica liberdade de ir e vir, fazer o que der na sua telha. Pode, por exemplo, seguir hoje ou amanhã para o Rio, completando a sua viagem. Entretanto, existe sempre um fator a atraí-lo, espécie de garra que o prende como se própria vida se dispusesse a brincar com o destino do homem, surpreendendo-o, nem sempre positivamente. Aqui a falta de dinheiro, mais à frente o amor impossível por uma mulher, a possibilidade de suicídio nas águas de um rio, tudo parece conspirar contra Serapíão, impedindo-o de prosseguir.
A referência anterior a narrativas interligadas ilustra, com alguma precisão, o pulso da obra de Jonas Rosa. De fato, o modo de narrar do autor lembra muito a ideia de “mar de histórias”, de novelo narrativo. Por detrás de Serapião Filogônio existe, também, um hábil “contador de causos” que utiliza os descaminhos da sua personagem para contar a história das vidas de pessoas com as quais ela se encontra: um fazendeiro rico que gosta da noite e da orgia, uma negra que nasceu escrava, um homem que matou a mulher e o amante dela; Serapião surge como fio condutor de vidas reveladas, relatos talvez vinculados à tradição oral da região onde a trama se passa.
Por fim, há que se falar do próprio Sebastião Filogônio. Personagem rica e elaborada em bases consistentes, sobre ela repousam inúmeras possibilidades narrativas. Jonas Rosa explora a sua criação ao limite, fazendo uso de linguagem poderosa e tantas vezes poética. Através de Serapião, o Autor deixa emanar o seu amor por um mundo que tão bem conhece e os saberes que a vida simples, mas tão rica do interior, proporciona. O texto é agradável, preciso e dotado da magia que nos faz prosseguir ao final de cada página. E não importa que o título do livro nos alerte, desde o princípio, para o fato de que Serapião Filogônio não morrerá, afinal trata-se de um “Quase fim”.
“O quase fim de Sebastião Filogônio”, do escritor Jonas Rosa, é livro que se lê com prazer, boa literatura que, infelizmente, não recebeu da crítica atuante a devida atenção. A obra foi publicada pela Ateliê Editorial. Vale a pena ler.
Arthur Rimbaud e “Le Bateaux Ivre”
Já se disse que é quase impossível ler a obra de do francês Arthur Rimbaud (1854-1891) sem levar em consideração a história de sua vida. Mas que fazer quando o que está em jogo é a trajetória de um poeta genial que escreveu apenas até os 20 anos de idade?
A biografia de Rimbaud apresenta-se como um desafio à racionalidade. Menino prodígio, aluno brilhante e estimulado por seu professor de retórica, ele venceu, em 1869, o Concurso Acadêmico de Douai de versos latinos. Em 1870 entrou para a escola Georges Izambard. A partir daí sua vida consiste numa sequência de fugas de sua casa localizada em Charleville, sua cidade natal. Na primeira delas foi de comboio a Paris, sendo preso e depois libertdo por intervenção de Izambard que o trouxe de volta a Charleville. Pouco tempo depois, fugiu novamente, desta vez a pé, passando por Bruxelas e chegando a Douai. A próxima fuga ocorreu no ano seguinte quando foi de comboio a Paris e voltou a pé. Nesse ano escreveu ao poeta Paul Verlaine e compôs o poema “Le Bateau Ivre”.
Paul Verlaine e Rimbaud mantiveram relacionamento muito difícil. Verlaine recebeu o jovem poeta em Paris, viajaram juntos e foram presos por conduta suspeita. Depois, foram a Londres de onde Rimbaud voltou a Charleville, a pedido de sua mãe. Os dois poetas reencontraram-se em 1873, em Londres, e viajaram a Bruxelas. Durante uma discussão Verlaine deu dois tiros em Rimbaud, lesando o seu punho esquerdo. Pouco depois desse episódio Rimbaud começou a escrever o poema “Une Saison em enfer”.
O espírito inquieto de Rimbaud nunca teria paz. Suas idas e vindas eram constantes. Andarilho, jovem mal visto pelos cabelos longos e roupas desleixadas, expulso de Viena, alistamento no Exército Colonial Holandês a caminho de Java onde deserta, intérprete de um circo em Hamburgo, comerciante na África, viajante no Egito e na Etiópia, atravessando o deserto a cavalo, traficante de armas, diretor de feitoria: a trajetória de aventureiro só termina com a morte do poeta em consequência de um câncer no joelho.
Arthur Rimbaud foi um dos maiores representantes do simbolismo no século XIX. Interessa-nos por ora o poema “Le Bateaux Ivre” que ele compôs em 1871. O leitor pode encontrar na internet uma tradução feita por Augusto de Campos. “Le Bateau Ivre” – em português “O Navio Doido” ou “O Barco Ébrio”– é um poema composto por 100 versos alexandrinos (verso em doze sílabas). Trata-se de uma prosopopéia (figura de linguagem em que escritor empresta sentimentos humanos e palavras a seres inanimados, a animais e a seres mortos ou a ausentes). No caso, o escritor empresta seus sentimentos a um navio que desce pelos rios, em direção ao mar, levado pela correnteza de vez que todos os seus tripulantes foram vitimados por índios. É o barco quem fala:
Como descia já dos Rios impassíveis,
Eu não me senti mais guiar plos sirgadores
Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Depois de os atar nus aos postes de mil cores.
(Tradução de Alexandre Herculano de Carvalho, in Musa de Quatro Idiomas,Edições Ática, 1947, Lisboa)
Impossível não relacionar a trajetória do navio desimpedido de controle, desgarrado e levado ao mar ao sabor das ondas, com a própria vida de poeta.
Em “Le Bateaux Ivre” Rimbaud serve-se de neologismos e é vigoroso o cromatismo dado por vezes sua intenção ser puramente visual, conforme aponta Augusto Meyer no ensaio “Le Bateau Ivre - Análise e Interpretação”. Meyer divide o poema em quatro movimentos. O primeiro deles - Descendo os rios – descreve o barco levado pela correnteza rumo ao mar; o segundo – O Batismo do Barco – fala sobre a chegada do barco desgarrado à foz do rio entrando em contato com as águas do mar. Observa-se uma mudança do ritmo lento das águas do rio para o forte balanço do mar; o terceiro - A experiência do mar - corresponde ao corpo do poema em que se verifica a originalidade de Rimbaud e sua força poética; o último movimento - Desencantamento – manifesta-se o desencanto do viajante desiludido que se confunde com a experiência de andarilho e aventureiro do próprio poeta.
O ensaio assinado por Augusto Meyer é um anexo do Curso de Teoria da Literatura dado por ele na Faculdade de Filosofia e Letras, da Universidade do Brasil. O texto foi publicado pela Livraria São José, Rio de Janeiro, em 1955. Obviamente, o livro só poderá ser encontrado em sebos. Embora Meyer fale em breve estudo, trata-se de uma poderosa incursão na obra do grande poeta Arthur Rimbaud que certamente será muito valiosa a estudiosos e interessados.
Os poemas de Arthur Rimbaud podem ser encontrados nas livrarias. Existe uma edição em francês de suas obras completas – Oeuvres completes – publicação da Editora Gallimard, 2009. “O Barco Ébrio” já mereceu mais de 20 traduções; a de Jayro Schmidt é publicação da Ed. UFSC, 2006. Também em português: “Uma Temporada no Inferno e Iluminações”, com tradução de Ledo Ivo, Ed. Francisco Alves, 2004.
A importância da literatura
A Editora Cosacnaif acaba de lançar o primeiro volume da coleção organizada pelo italiano Franco Moretti, professor de literatura na Universidade de Stanford, cujo tema central é o romance. Esse primeiro volume tem como título “A cultura do romance” e reúne, nas suas 1120 páginas, vários ensaios de diferentes autores . A ele seguirão outros quatro volumes com os seguintes títulos: “As formas” (volume 2), “História e Geografia” (volume 3), “Temas, lugares e heróis” (volume 4) e “Lições” (volume 5). Participam da obra 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro, entre eles vários escritores e críticos.
Em seu conjunto a obra tem, como dela se espera, intenção totalizante, visando dentro do alentado de suas páginas englobar o que se escreveu sob a forma de romance nas diferentes culturas.
O primeiro volume é iniciado com um texto de Mario Vargas LLosa que diz a que vem a obra já no seu título: “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. Llosa discute não só o papel do romance como o da literatura em geral. O escritor peruano destaca a função da literatura enquanto meio de comunicação entre os seres humanos permitindo-lhes o diálogo independentemente das funções que desempenham, nacionalidades e circunstâncias que os cercam. Em particular só o romance disponibiliza o conhecimento totalizador e imediato do ser humano. E por essa linha segue Llosa, destacando a importância da literatura enquanto denominador comum da experiência humana.
Llosa se propõe demonstrar que a literatura, em especial o romance, não é um passatempo de luxo: trata-se, segundo suas palavras, “de uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e deveria fazer parte de todos os programas de educação como uma das disciplinas básicas”.
Para mim um aspecto maior da literatura – e por extensão do romance – é o convite permanente à transcendência, lembrando e desobrigando os seres humanos à mesmice de suas rotinas diárias. Ela torna possível uma viagem ao redor de si mesmo através de experiência ficcional que mantém sólidos vínculos e pontos de contato com a experiência pessoal de cada leitor, abrindo-lhe novas dimensões e diversificando suas formas de analise e raciocínio sobre a realidade que o cerca. Mas, e mais que isso, a literatura converte-se em tábua e salvação quando o espírito está a sucumbir diante de mazelas inevitáveis. Nesse sentido basta-nos lembrar a elevação de espírito que se atinge com a simples leitura de um poema através da qual torna-se possível a transferência do estado de espírito do poeta ao leitor. É quando a literatura nos permite a saciedade dos sentidos proporcionando a plenitude dificilmente atingida por outros meios de sensibilização do espírito.
Há quem negue os efeitos mágicos do romance a da poesia embora seja certo que eles existem. A literatura pode, sim, salvar-nos em momentos cruciais das nossas vidas nos quais a beleza parece ter-nos abandonado e um muro de incógnitas se interpõe aos nossos horizontes. Provas desse fato existem e muitas. Uma delas está no noticiário de hoje, no qual se destaca a entrevista de Sidney Rittenberg, publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”. Rittenberg, único norte-americano aceito por Mao Tsé-tung no Partido Comunista Chinês, foi intérprete do próprio Mao e de Zhou Enlai, além de chefiar a rádio China Internacional.
Durante a Revolução Cultural, Rittenberg criticou a burocracia do regime chinês pelo que foi condenado e esteve dez anos preso. Sendo o nosso assunto de hoje a literatura é interessante ouvir o que disse Rittenberg sobre o período em que esteve preso:
- Na solitária, consegui manter a saúde mental recitando poemas, lembrando de histórias, atuando performances cômicas. A literatura defendeu a minha sanidade.
Trata-se de afirmação à qual nada precisa ser acrescentado. Tem razão Vargas Llosa quando sugere que a literatura deva ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação: não se pode negar às pessoas, não importa quem sejam elas, a ligação direta com a possibilidade de transcendência. Para dizer pouco, a literatura torna as pessoas melhores, dá-lhes espírito crítico e opinativo mais aguçado e contribui largamente para que possam exercer maiormente as suas cidadanias.
Giovanni Papini
Você pode escrever sobre tudo ou nada numa manhã de sol nas montanhas. Também pode ficar em silêncio, ouvindo o barulho do vento suave entrecortado pelo canto dos pássaros que nunca se cansam.
Pode, ainda, perguntar-se sobre o significado de tudo e, depressão avizinhando-se, socorrer-se com algum livro de uma antiga biblioteca, da qual restaram poucos volumes.
Livros velhos guardam o pó de outros tempos e exalam odores capazes de reconstituir impressões adormecidas. Basta ter um só deles em mãos para que a biblioteca que conhecíamos e à qual ele pertenceu se erga das cinzas, imponente no ar, tão real que podemos tocá-la com mãos que já não são as nossas, mas das pessoas que fomos no passado.
Abro a porta da estante, pego um livro ao acaso e de repente lá está toda a biblioteca desfeita à minha frente, tão vívida que posso ler nas lombadas alguns títulos e mesmo supor que posso buscar certo livro que se encontra num canto, atrás de uma pilha, ali onde o deixei há muitos anos.
O livro que me entroniza no passado e que agora está em minhas mãos chama-se “Loucuras do Poeta”, de Giovanni Papini. Trata-se de uma edição portuguesa, sem data, publicada por “Livros do Brasil, Limitada – Lisboa”, distribuída no Brasil pela “Editora Globo – Porto Alegre”.
Em “Loucuras do Poeta”, Papini dá a conhecer alguns ensaios nos quais se revelam o poeta e o pensador que faz uso de alegorias muito próximas de parábolas. Do livro me é particularmente caro o texto “O Congresso dos Loucos” ou “Da loucura dos sãos”, verdadeira parábola acerca de uma reunião de loucos que protestam contra o seu aprisionamento em manicômios. A cada momento um dos loucos toma a palavra e o tom dos discursos é a reconquista da liberdade já que as pessoas consideradas normais e não sujeitas à reclusão são muito parecidas com eles – os loucos - em seus hábitos, ações e pensamentos.
Giovanni Papini (1881-1956), escritor italiano, tornou-se católico fervoroso após longo período de ceticismo. Entre suas várias obras destaca-se, segundo a crítica européia, o livro “Gog, uma coletânea de contos filosóficos escritos em estilo satírico. Admirado por escritores como Jorge Luis Borges, Papini escreveu mais de 60 livros destacando-se, além de “Gog”,”Palavras e Sangue”, “Trágico Cotidiano”, “Juízo Final” (contos) e “Um Homem Acabado” (autobiografia) . Seus livros fazem parte do que de melhor foi publicado em língua italiana no século XX.
A lembrança de Giovanni Papini retorna muito forte nesta manhã de muito sol nas montanhas tornando-me capaz de abrir uma estante imaginária e dela retirar um livro a muito perdido, sobre o qual não tenho mais notícias. Na verdade desse livro me restaram apenas a memória da publicação portuguesa e fragmentos de um único ensaio, justamente o citado “O Congresso dos Loucos”.
A literatura tem dessas coisas: ela nos permite participar de aventuras imaginárias, criar ambientes como esse de uma manhã de sol nas montanhas com pássaros cantando, reconstruir bibliotecas perdidas, devolver-nos páginas esquecidas de livros e libertar-nos da realidade imposta por manhãs nubladas, passadas em quartos fechados.
Relato sobre sonhos
Em 1977 o escritor argentino Jorge Luís Borges proferiu sete conferências no teatro Coliseu, em Buenos Aires. Elas foram reunidas em livro com o título de “Sete Noites” (publicado no Brasil em 1983, Editora Max Limonad). A segunda dessas conferências recebeu o título de “O pesadelo”. Nela Borges fala sobre sonhos e pesadelos. Sendo os sonhos o que ora nos interessam, vamos ater-nos a algumas observações feitas por Borges em relação a eles, observações essas úteis para que possamos nos aproximar de algum tipo de explicação sobre a breve história que contaremos a seguir.
Borges lembra-nos de que não se podem analisar os sonhos diretamente, mas somente através da memória que guardamos deles. O escritor cita Sir James Frazer, antropólogo que publicou, em 1922, a obra que recebeu o nome de “O ramo de Ouro” (publicado no Brasil em 1982, Zahar Editores). Segundo Frazer os selvagens não distinguem entre a vigília e o sonho de vez que para eles os sonhos nada mais são que episódios da vigília. Borges acrescenta que para os poetas e os místicos toda vigília parece ser um sonho. Cita Calderón para quem a vida é um sonho e Shakespeare que afirma que “somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos”.
A literatura nos oferece várias interpretações a respeito da dualidade de sonho e vigília, não sendo raras narrativas em que ambas se confundem, sendo impossível determinar em que lado fica a realidade. Escritores latino-americanos tratam do assunto e na literatura árabe encontram-se narrativas do mesmo gênero.
Recorro a essas informações antes de narrar o estranho caso de um homem que, entre a vigília e o sonho, confundiu-se justamente no tocante à realidade. Mas vamos ao caso que falará melhor por si só.
A princípio ele estranhou, mas logo admitiu ter dupla existência: o funcionário público que era durante o dia deixava de existir ao adormecer e sonhar que era uma jovem, vivendo noutra cidade e país. Já a vida dessa mulher interrompia-se no momento em que ela se deitava, fechava os olhos e sonhava que era um funcionário público.
Durante algum tempo, o funcionário e a jovem viveram um no sonho do outro. De naturezas muito semelhantes, conheciam-se apenas através dos sonhos e um se deliciava com as aventuras do outro nos mundos diferentes em que viviam. Essa situação perdurou até a ocasião em que o funcionário começou a sair mais cedo da repartição onde trabalhava para tentar adormecer. E pioraram ainda mais quando ele passou a usar soníferos. Agora o funcionário passava quase todo o tempo dormindo e a jovem raramente pregava os olhos. Até o dia em que ele sonhou que ela tomava calmantes fortes para adormecer.
Foi nesse período que o funcionário passou a dormir pouco e adoeceu. Desesperava-o a idéia de estar condenado à vigília para que a jovem de seus sonhos pudesse dormir e sonhar. Debalde um psiquiatra tentou convencê-lo de que a sua vigília não era determinada pelo sonho de alguém cuja existência não poderia ser real.
Não será preciso dizer que o caso evoluiu mal. A internação e grandes doses de tranqüilizantes resultaram infrutíferas. No final, o funcionário, magro e torturado, andava de um lado para outro dizendo coisas desconexas.
Conta-se que na sua última hora ele se deitou e fechou os olhos. Há quem diga que talvez ele tenha conseguido dormir por alguns instantes. Entretanto, logo abriu os olhos e balbuciou algo sobre não temer a morte porque descobrira a chave do enigma: ele jamais fora real, sua existência nada mais fora que o sonho de outra pessoa.
Esse caso foi apresentado a estudantes de psiquiatria que divergiram, classificando-o apenas com o diagnóstico genérico de “loucura”. Análises da estrutura do cérebro do funcionário, realizadas após a autópsia, não revelaram qualquer tipo de anormalidade.
Se Sir James Frazer estiver certo quanto à não distinção entre sono e vigília não é impossível que a jovem tenha sonhado a loucura e a morte do funcionário.
Euclides da Cunha, 100 anos
Há exatamente 100 anos, no dia 15 de agosto de 1909, o escritor Euclides da Cunha saiu à rua levando um revólver calibre 22. Seu destino era a casa do cadete Dilermando de Assis, localizada na Estrada Real de Santa Cruz, Piedade, Rio de Janeiro.
O desfecho da aventura de Euclides é conhecido: durante uma troca de tiros Euclides é alvejado por Dilermando e vem a morrer. O móvel do crime é a mulher de Euclides, Ana de Assis, que tinha um caso com o cadete Dilermando. Um ano depois, o filho primogênito de Euclides – Euclides da Cunha Filho – tentou vingar a morte do pai e também foi morto por Dilermando.
Dilermando de Assis foi absolvido de seus dois crimes em sessões no Tribunal do Júri. A defesa de Dilermando foi realizada pelo célebre advogado Evaristo de Moraes filho que alegou, em ambos os casos, legítima defesa.
Deve-se a Elói Pontes uma biografia de Euclides da Cunha cujo título é “A vida trágica de Euclides da Cunha”. Voltada mais para a obra que o homem é a excelente biografia escrita por Olímpio de Souza Andrade intitulada “História e Interpretação de Os Sertões”. Outra biografia do escritor é a de Silvio Rabelo cujo título é “Euclides da Cunha”.
A morte de Euclides foi o corolário da vida difícil de um homem inadaptado. Infelizmente as circunstâncias trágicas da sua morte pelas mãos do amante de sua mulher marcaram a figura do escritor como se fora este o fato maior de sua existência. De fato, o assassinato de Euclides da Cunha impregnou a sua imagem pública que talvez seja mais conhecida pela tragédia final que por sua obra. Para isso certamente contribuem representações que tomam Euclides como personagem esmerando-se em apresentá-lo como o homem traído que se bate por sua honra sem sucesso.
Ora, tem razão Olimpio de Sousa Andrade quando valoriza a história de Os Sertões referindo-se a Euclides enquanto autor de obra ímpar e perene da literatura brasileira. Esse modo de ver valoriza os acontecimentos da vida de Euclides buscando no homem o grande escritor que ele foi. A tragédia da morte torna-se, assim, fato menor, noticiário de páginas policiais que em nenhum momento ensombrece a grandeza de Euclides da Cunha.
O que é preciso deixar claro, portanto, é que no dia de hoje celebra-se o passamento do autor de Os Sertões, livro fundamental na história da inteligência brasileira e que tem, no século trasncorrido, influído nos modos de ser e pensar daqueles que estudam e procuram compreender o Brasil. Valorizar na celebração desse acontecimento as circunstâncias da morte do grande escritor de Os Sertões em detrimento de sua reconhecida importância é tomar a sua existência pelo que ela teve de menor.
Muito se pode dizer sobre Os Sertões. É vasta a bibliografia sobre o grande livro valorizando seus múltiplos aspectos. Decorre esse fato da preocupação de Euclides em explorar, analisar e buscar explicar as origens da gente brasileira, seu modo de ser e a influência que tiveram sobre o desenvolvimento da sociedade local diversos fatores, entre eles os raciais e climáticos. Munido de ferramentaria científica, filosófica e sociológica disponível em sua época, Euclides da Cunha entregou-se à paixão de descrever os sucessos ocorridos em Canudos que culminaram na chacina dos adeptos de Antônio Conselheiro.
Tomado como um livro de denúncia Os Sertões é muito, muito mais que isso: trata-se de uma das primeiras interpretações do Brasil que embora se ressinta de análises feitas segundo os conhecimentos da época em que foi escrito mantém-se viva e atual. Isso acontece, entre outros fatores, porque o escritor de Os Sertões é antes de tudo um grande poeta, cinzelador de palavras, cultor da forma e homem encantado por belezas inacessíveis ao comum dos mortais.
Celebra-se, assim, no dia de hoje, o centenário da morte de um intérprete do Brasil. Daí serem mais que justas as homenagens que se prestam nesse momento ao escritor maior de Os Sertões.
Nem só as crianças têm medo
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), escritor norte-americano, é um mestre das histórias de horror. Ele jamais escreveu histórias que não as de horror. Em suas narrativas aparecem imagens do subconsciente e há a utilização de símbolos relacionados a monstros e divindades ancestrais.
Segundo Lovecraft a mais forte e mais antiga emoção do homem é o medo e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Para ele as histórias de horror sempre existiram e existirão porque,
“as crianças sempre terão medo do escuro, os homens de mente sensível ao impulso hereditário sempre tremerão ao pensamento de mundos ocultos e insondáveis de vida diferente que quem sabe pulsam nos abismos além das estrelas ou sinistramente oprimem o nosso próprio globo em dimensões perversas que somente os mortos e os dementes podem vislumbrar”.
Sempre fui um aficionado das histórias de horror, aquelas que começam com uma situação mais ou menos banal e evoluem para uma atmosfera sufocante, realmente irrespirável e desafiando a lógica comum. Em síntese, histórias que incorporam o sobrenatural ao cotidiano. São exemplos desse tipo de narrativa os romances de Lovecraft e os contos de Edgar Allan Poe (1809-1849). Diferentes deles são certas histórias que abusam do expediente macabro baseando-se mais na surpresa e no susto. Infelizmente, nos últimos anos o cinema tem produzido obras dessa natureza com o uso abusivo de clichês cuja única intenção é a de asssustar através de exageros pictóricos, imagens deformadas e situações macabras. Trata-se de um horror sem inteligência cujo maior intuito é estimular sensações semelhantes às experimentadas em situações de perigo real. Portas que se abrem de repente, mulheres que acordam durante a noite e andam em ambientes escuros, monstros de todos os tipos, pesadelos que se tornam reais, existe toda uma parafernália de métodos impactantes com a função de levar o espectador ao grito diante de algo que se figura a ele insuportável.
Por que escrevo sobre isso? Em primeiro lugar para lembrar aos leitores que existem nas livrarias excelentes obras de literatura de horror que merecem ser lidas. Em segundo porque noite dessas ouvi um professor de filosofia falar, num programa de televisão, sobre a relação entre o escuro e o medo. Se bem entendi a colocação do professor, para ele no mundo menos iluminado do passado existiria mais medo que no mundo atual.
Não sei se isso está correto. A piada sobre o fato de que a luz elétrica reduziu a atividade dos fantasmas tem lá o seu sentido e graça. Entretanto, o verdadeiro horror prescinde do escuro embora este o acentue. Situações fantasmagóricas podem muito bem acontecer às claras. Excluída a possibilidade de ladrões, quem não se incomoda com ruídos estranhos e inexplicáveis dentro de casa a qualquer hora do dia ou da noite? Objetos que caem sem que alguém os toque não causam arrepios? E as portas que batem, aparentemente sem a ação do vento? Os relógios que despertam de madrugada sem que tenham sido programados para isso? E os aparelhos eletrônicos que ligam sozinhos, de repente? Que dizer de pressentimentos que se confirmam? E sobre os sonhos da morte de pessoas que acaba acontecendo?
Quanto a mim, fico com a famosa frase: não creio em fantasmas, mas que eles existem, existem. Quando menino passava férias na casa antiga de minha avó, imóvel rico em histórias sobre as gerações de moradores que ali precederam a minha família. A maioria dos antigos moradores morreu naquela casa e foi velada na grande sala onde, anos depois, nos reuníamos após o jantar. Esses mortos estiveram presentes na minha infância e, ainda menino, tive medo deles. Certa ocasião, decorridos muitos anos e sendo eu já adulto, retornei àquela casa e dormi em um de seus quartos. Embora eu já não acreditasse em fantasmas, não posso dizer que dormi sossegado. Se bem me lembro, naquela noite eu me esqueci de apagar a luz do abajur…
A velha casa de minha avó foi derrubada por uma incorporadora que usou o terreno para construir um prédio de apartamentos. Muita gente mora nesse prédio e não há notícias de que os falecidos moradores tenham perturbado o sossego de ninguém.
Oscar Wilde
O fato é que o escritor e dramaturgo Oscar Wilde (1854-1900) é mais citado pelas suas preferências sexuais que pela obra que deixou. Isso pode causar alguma surpresa nos leitores de hoje, habituados a existência de megaeventos como a Parada do Orgulho Gay e casamentos entre homossexuais.
Wilde notabilizou-se pela sua carreira na qual seus romances, peças de teatro, polêmicas e as resenhas de livros misturavam-se com altas doses de extravagâncias. Seu incontestável sucesso granjeou-lhe projeção e prosperidade. Em suas biografias há insistência sobre o fato de ele possuir família constituída e ao mesmo tempo ser um dândi: gastava horas cuidando da aparência e, para delírio dos cartunistas, usava roupas e gravatas extravagantes e tirava fotos em poses lânguidas.
Embora estranha, a modernidade de Wilde foi razoavelmente tolerada durante a época vitoriana do Império Britânico. Sua prosperidade perdurou até o seu envolvimento amoroso um jovem chamado Alfred Douglas, conhecido como Bosie. Wilde apaixonou-se por Bosie um jovem encantador, mas inescrupuloso e egoísta. Recorde-se que, na época as relações entre homens eram consideradas criminosas em alguns países. Na reforma do Código Penal da Inglaterra, a partir de 1885 a sodomia entre homens tornou-se passível de pena de dois anos de prisão com trabalhos forçados.
Um desentendimento entre Wilde e o pai de Bosie deu início a um processo no qual Wilde foi condenado e preso. Suas peças foram retiradas de cartaz: de escritor celebrado Wilde passou à condição de criminoso. Era o revide do puritanismo vitoriano tão atacado por Wilde. A imagem de “criminoso pervertido” veiculada pela imprensa não se separaria de Wilde até a sua morte.
Existem críticos ferozes que abominam toda a obra de Wilde. Entretanto, a leitura do romance “O Retrato de Dorian Gray” continua a ser obrigatória para os amantes da boa literatura. O livro pode ser encontrado em livrarias e às vezes aparece entre as séries vendidas nas bancas de jornal.
No prefácio de “O Retrato de Dorian Gray” há uma frase de Wilde que define bem o seu posicionamento em relação à arte:
“Um livro não é, de modo algum, moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos”.
Livro: O Crime do Restaurante Chinês
São grandes as contribuições do Prof. Boris Fausto ao estudo da História do Brasil. Ao longo dos anos tem ele assinado obras de vulto que, além de seu valor intrínseco, revelam-se de grande utilidade a estudantes e pesquisadores em geral.
A mais recente publicação do Prof. Boris Fausto é o livro “O Crime do Restaurante Chinês” –Ed. Companhia das Letras, 2009 - cujo tema é o assassinato, a pauladas, de quatro pessoas – um chinês dono de restaurante, sua mulher e dois de seus empregados. O crime aconteceu na madrugada da quarta-feira de cinzas de 1938.
É de se imaginar a repercussão e o interesse despertado na população da cidade de São Paulo de então por crime tão bárbaro que, a princípio, não se sabia praticado por um ou mais criminosos. Supondo-se que fosse apenas um, desconheciam-se os móveis do assassino e não se fazia a menor idéia de sua identidade.
É dentro desse universo que se move o Prof. Boris Fausto, estendendo os tentáculos de sua pesquisa às notícias publicadas em jornais, relatórios policiais e sucessos ocorridos no Tribunal do Júri.
O livro é precedido por uma “Breve Explicação” na qual o Autor avisa-nos que seu trabalho é uma forma de fazer história denominada “micro-história” cujos misteres são: a redução da escala de observação do historiador permitindo apreciações que lhe escapam nas análises de grandes quadros; ouvir a voz de pessoas comuns; de fatos tidos como corriqueiros extrair dimensão sociocultural relevante; apelar para o recurso da narrativa; e situar-se no terreno da história apoiando-se nas fontes, delimitando-se, assim, claramente a obra ficcional.
É munido de tais premissas, fornecidas pelo Autor, que o leitor passa à Introdução na qual se narra o crime e seus desdobramentos. As circunstâncias do crime, o tom de dúvida quanto à sua autoria, a descrição factual e principalmente a forma de narrar nos conduz, inevitavelmente, à pergunta: está-se no terreno da história ou no de uma obra ficcional baseada em fato real?
A dúvida é pertinente. Desde logo se percebe que o Autor aventurou-se em solo movediço que sepulta, indiscriminadamente, fatos reais e fatos narrados ficcionalmente. Historiador por ofício socorre-se o Autor com farta documentação que só a pesquisa acurada logra fornecer. É assim que nos é dado acompanhar o carnaval de 1938, corso e fantasias, e a Copa do Mundo acontecida no mesmo ano. O Autor não nos apresenta esses fatos gratuitamente dado que funcionam como peças de enredo maior com o qual se relacionam. São os homens de uma cidade que já não existe, o seu modo de ser e agir que nos são devolvidos em flashes nos quais o passado nos ajuda a compreender o presente.
Há muito de romance histórico neste livro de história. Vez por outra, ao longo dos capítulos sente-se que embora o historiador que nos fala não tenha como objeto o passado – o qual apenas interroga – delicia-se com ele. Algo de memorialismo perpassa a narrativa gerando fecunda contradição entre história e obra ficcional. Aliás, fala a favor dessa última o ambiente narrativo indubitavelmente calcado nos cânones da literatura policial: o historiador cede, não sem luta, ao fio condutor do suspense levando-nos até o final em busca de solução para o caso.
É, pois, o livro, talvez a despeito das intenções de seu Autor, obra híbrida que se lê com prazer, daquelas que não se larga antes da página final porque, a todo custo, quer-se um corolário para a narrativa. Também nesse sentido o Prof. Boris Fausto não nos decepciona. O último capítulo reserva-nos relato pungente e confessional. Restitui-nos um menino com seus sonhos e impressões os quais conferem sentido maior ao conteúdo que acabamos de ler. É aí que se apagam o historiador e o professor; surge o homem que fez uso das ferramentas da história para narrar, quase ao jeito de memorialista, os sucessos de mundo desfeito ao qual um dia pertenceu.
Essas breves considerações não pretendem abordar a riqueza temática apresentada pela obra na qual, como ilustra-nos o Autor, figuram o racismo, o funcionamento do aparelho policial e judiciário etc; intencionam elas apenas destacar o historiador com domínio completo de sua ciência no momento em que se reserva o prazer de utilizar a sua arte para contar uma boa história.