Arquivo para março, 2009
O ofício de ser brasileiro
Na música Querelas do Brasil, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, ouve-se o refrão: “O Brasil não conhece o Brasil”. Em outro contexto Tom Jobim afirma enfaticamente: “O Brasil não é para principiantes”.
Difícil, muito difícil, entender o Brasil. Para começar, somos um povo em eterna busca de identidade. Não será demais afirmar que, durante sua formação, a intelectualidade brasileira obrigatoriamente entra em contato com os chamados intérpretes do Brasil: Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Paulo Prado, Caio Prado Junior e alguns outros cujos trabalhos são igualmente importantes. Aos intérpretes devem-se estudos que muito contribuem para o esclarecimento da identidade nacional, ou seja, dos laços simbólicos e culturais que nos unem e que nos fazem brasileiros.
Um amigo vivendo no exterior me escreve e afirma que se pensa melhor sobre o Brasil quando se está longe dele. Segundo ele, viagens ao exterior e contatos com outros povos despertam comparações e suscitam questionamentos sobre a individualidade brasileira. Esse amigo diz isso e quer saber sobre acontecimentos recentes. Aconteceu mesmo ou é papo de mídia? - pergunta ele.
Pois aconteceu, respondo. Explico que o Brasil é mesmo um país difícil de explicar daí, talvez, a ocorrência de acontecimentos que fogem ao padrão esperado e têm um jeitão muito nosso. Caro amigo, aconteceu, sim, que o presidente da República disse na cara do primeiro-ministro da Inglaterra que a atual crise mundial é culpa dos brancos de olhos azuis e que não conhece nenhum banqueiro negro; aconteceu que a dona da Daslu foi condenada a 94 anos de prisão e considerada perigosa para a sociedade, daí sua prisão imediata mesmo com sentença em primeira instância; aconteceu, também, que o ex-ministro da Justiça aceitou ser advogado de uma grande empreiteira acusada de fraudes pela Polícia Federal; aconteceu que, em Diadema, em meio a residências, uma empresa armazenava quantidade enorme de produtos químicos que proporcionaram incêndio com efeitos pirotécnicos superiores às dos filmes americanos; e por aí afora. E lembre-se meu caro amigo, acrescentei terminando: tudo isso ocorrido na última semana porque o Brasil é pródigo em acontecimentos, aqui com freqüência a realidade e o absurdo se renovam com invejável rapidez, daí a nossa incrível tolerância que se constitui num dos traços inconfundíveis da identidade brasileira.
Ser brasileiro é ofício complicado. Já entender o Brasil é tarefa capaz de enlouquecer qualquer um. Quem duvida que leia jornais diariamente, detendo-se nos articulistas: obrigados a interpretar o cotidiano vêem-se eles num vai-e-vem de fatos pretéritos e atuais ligados por contingências nem sempre lógicas mas que, juntas, compõem um retrato muito nítido do país em que vivemos, ainda que não possamos compreendê-lo integralmente.
I lost myself - O Radiohead em São Paulo
Se você não conhecesse o Radiohead e imaginasse que eles seriam uma banda de pop comum, então ficaria estarrecido ao assistir ao show deles ontem, em São Paulo. Nada do ritmo comum do pop com refrões, estrofes etc. O que se passa no palco e leva ao delírio a multidão é um espetáculo com profusão de signos, alguns deles bem definidos, outros gerados ao sabor da ocasião e nem sempre com significados claros.
Começa pelo próprio cenário: um arranjo de tubos luminosos cilíndricos que mudam de cor e variam em comprimento, abertos a várias leituras, uma delas a de imensos tubos de órgãos fantásticos sugerindo os pináculos das catedrais góticas onde reverberam os sons. Dessas alturas e guiados pelo brilho intenso das luzes, os olhos dos espectadores são levados para o palco, situado bem abaixo, onde os músicos - pequenos demais ante a grandiosidade do cenário - gravitam num mundo esfumaçado e multicolorido que lhes rouba muito do que têm de humano. É dentro dele que as guitarras conferem textura ao som, quase sempre entrecortadas por vibrações eletrônicas.
Real mesmo parece ser só o baterista, preso ao seu instrumento, cumprindo rotinas de solos que por vezes soam desencontrados, mas que se integram com os toques dos repiques eletrônicos propícios a realçar a dimensão do provocante cenário. E é no meio disso tudo que impera, absoluto, irrequieto, o vocalista Thom York, cujos falsetes avançam pelo abstrato, por vezes mais parecendo uma lamúria que se arrasta, levando consigo as almas do público.
O que se vê no palco é a figuração de um mundo despersonalizado, alienado, panacéia de gestos estranhos, por vezes metódicos e duramente contidos. Reina a proposital atmosfera de “outro mundo” para o qual os espectadores são chamados, seguindo com em uma procissão lamuriosa e por vezes bela, encantados pelos vocais disformes de York. É assim que as pessoas se perdem, foi assim que me perdi.
Mickey Rourk - O Lutador
No livro Mitologias o crítico, filósofo e semiólogo francês Roland Barthes, analisando a luta conhecida como catch, explica porque pessoas assistem a um divertimento forjado, cujos resultados são previamente conhecidos. Barthes nos informa que o catch não é esporte, mas sim um espetáculo no qual os lutadores, como no teatro, têm papéis definidos. Cada um representa com perfeição o papel que deles o público espera, daí pouco importar se o espetáculo é falseado ou não. Não existe, portanto, no catch o problema da verdade. Oferece-se ao público o espetáculo da Dor, da Derrota e da Justiça. Há lutadores que transgridem as regras e causam dor, mas a idéia geral é que devem “pagar pelo que fazem” e, quando isso acontece o público é levado ao delírio porque se confirma a noção de justiça. Assim, explica Barthes, o espetáculo do catch é exatamente o que o público espera dele. Pouco importa se os combates são combinados ou não, “o que interessa é o que se vê, e não o que se crê”.
Retorno ao ensaio de Barthes após assistir ao filme The Wrestler – O Lutador no qual Mickey Rourk faz o papel do lutador - The Ram. Afinal, porque assistimos a um filme de ficção sobre a trajetória de um lutador de catch em fim de carreira, cujo final, como o próprio espetáculo das lutas, é mais que previsto?
Desde o começo sabemos que a trajetória de The Ram não pode dar certo. Ele foi um grande lutador de catch que envelheceu. Viveu as benesses da fama, gastou o dinheiro. O que resta a ele é viver num trailer de onde por vezes é expulso por falta de pagamento ou sai para realizar lutas de resultados arranjados. Sua família restringe-se a uma filha abandonada na infância e com quem agora tenta reencontrar-se. A mulher por quem se interessa é uma striper que se prostitui para sustentar o filho de nove anos.
Nada disso pode dar certo. Resta-nos acompanhar os progressivos fracassos de The Ram: a filha o repele, a striper tenta salvá-lo sem conseguir e ele não se adapta a qualquer atividade fora dos ringues de onde é afastado após um ataque cardíaco.
The Wrestler é um filme triste e que expõe em grau superlativo a miséria humana. A deterioração progressiva de The Ram, a consciência que possui da própria miséria e a aceitação de suas culpas não nos servem como lenitivo. Nós o vemos em sua progressiva degradação, luta após luta arranjada, correspondendo aos mitos sobre o qual Barthes nos alerta, atuando com perfeição dentro do papel que o público das lutas espera.
Entretanto, não nos é possível a imersão total nesse curioso filme, trama de ficção que abriga personagem que pratica outra ficção: a das lutas de catch. É que entre a tela do cinema e a cadeira do espectador existe um espaço de realidade que acaba interferindo na ficção. Esse espaço é dado por Mickey Rourke, ele próprio um lutador cuja vida tem pontos em comum com a do personagem que interpreta. A grande atuação de Rourke representa a sua volta por cima após períodos em que chegou a não ter onde morar.
A vitória do ator em trama semelhante à do filme faz dele um vencedor e coloca as coisas no lugar devolvendo-nos ao texto de Barthes: ele nos fala sobre espectador de catch que sai da das lutas, anônimo e impassível e sob o efeito da transmutação operada pelo espetáculo a que assistiu:
“No ringue, e no mais profundo de sua ignonímia involuntária, os lutadores são deuses, porque são durante alguns instantes a chave que abre a Natureza, o gesto puro que separa o Bem do Mal e desvenda a figura de uma Justiça enfim inteligível” – conclui Barthes.
Crença e ciência
De um lado a Igreja e seus dogmas; de outro a ciência em constante progresso. Exemplos recentes retratam áreas de choque entre a crença e o conhecimento científico. Um deles refere-se à visita do Papa à África, continente onde impera a pobreza e é grande a disseminação de doenças. O Papa recomendou aos fiéis que não usem camisinhas, opondo-se a todos os apelos feitos em contrário pelas organizações de saúde. Outro é o abominável caso do homem que engravidou menina de nove anos de idade. O médico que fez o aborto foi excomungado por um bispo brasileiro, ato que despertou condenações no Brasil e fora dele.
Pecou, sim e gravemente, o homem que estuprou e engravidou a menina; pecado maior fez o médico ao realizar o aborto – justificou-se o bispo.
Disso tudo uma coisa é certa: a Igreja não vai mudar e a ciência não vai parar de evoluir. Talvez alguém diga: olha aí, de repente a Igreja muda, pode acontecer. Será? Sinceramente não creio, embora revisões ocorram de vez em quando. Baseio-me num comentário que ouvi de um padre, certa vez. Formado em Roma e muito culto, o padre justificou a Igreja quando me referi atitudes papais que, pelo menos aparentemente, confrontavam o bom senso e a evolução dos conhecimentos. Disse-me o padre que as épocas geram suas ideologias e cada época cuida de seus problemas ao modo dos homens do seu tempo. Verdades tidas como absolutas podem deixar de sê-lo ao longo dos séculos. Isso não acontece com o cristianismo que é o mesmo há dois mil anos, ainda que muito combatido.
Sendo contestado por vinte séculos o cristianismo sobreviveu. Suas verdades estão, portanto, acima de movimentações e especulações temporárias e feitas ao sabor dos conhecimentos e modos de pensar de cada época. Em suma, o cristianismo é intemporal e a ele pertence o início, o fim e a verdade de todas as coisas. Já a ciência…
Assim falou o padre.
É crer ou não crer.
Fé não se discute.
Gran Torino
Walt Kowalsky (Clint Eastwood) é um veterano de guerra inadaptado a tudo. Suas únicas boas recordações são a de sua mulher - que acaba de morrer – e a fabricação do carro Gran Torino da qual participou quando operário da indústria automobilística em Detroit.
O Gran Torino que Walt mantém em sua garagem constitui, juntamente com ele próprio, uma dupla de estranhos ao mundo que os cerca. Ambos são velhos, bizarros e fora de época, evocações de passado que teima em não estabelecer relações com o presente exceto para apontar diferenças. Desse modo, ficam os dois na casa onde Walt vive, espécie de ilha em meio a um bairro de imigrantes onde a paisagem é de decrepitude.
Walt odeia os imigrantes como parece odiar a quase tudo, com exceção de poucas pessoas conhecidas. Seu mau humor é mais que simples postura, exala por todos os poros, transferindo ao espectador imagens de arrivismo puro, por vezes insuportável. Uma dor profunda e irremediável transparece na face e gestos desse homem para quem os seres humanos nunca serão mais que estranhos, aí se incluindo os filhos com os quais Walt não se relaciona e o padre que o visita regularmente convidando-o à igreja.
Em Gran Torino a rotina do ranzinza Walt é alterada quando seus vizinhos orientais – a quem não tolera - são ameaçados e atacados por gangs formadas por orientais, negros e toda sorte de imigrantes. É a revolta contra a intolerância que desperta a reação de Walt e o leva ao acerto de contas com o seu próprio passado povoado por rostos de soldados coreanos a quem combateu.
Aos 79 anos de idade Clint Eastwood cria, através de Walt Kowalwsky, um tipo inesquecível: irascível, racista, conservador, violento, antipático e, ao mesmo tempo, profundamente humano.
Gran Torino é filme que admite várias leituras. Existe o carro GranTorino, verdadeira bandeira a atestar época de pujança da indústria automobilística norte-americana americana; há o mundo deteriorado do bairro de Detroit ocupado por orientais – os mesmos a quem os EUA combateram no passado; existe Walt, o ex-soldado que os combateu; mas também existe algo maior situado acima das raças e nacionalidades, algo que impulsiona o velho Walt e que talvez possa ser definido simplesmente como solidariedade.
Educação: desempenho e recompensa
Leio artigo do N.Y. Times no qual se discute a validade de programas de recompensa a alunos por desempenho. Lisa Guernsey, a articulista, relata que, nos EUA, os programas de recompensa estão proliferando e estudantes podem ganhar centenas de dólares por estudar e obter boas notas. Obviamente, não há consenso entre educadores, psicólogos, economistas e empresários sobre a validade dos programas. Da condenação de psicólogos até a afirmação de economistas de que é preciso ultrapassar idéias preconcebidas existe vasta gama de opiniões.
Do Times para a mídia brasileira encontramos um continente de notícias nada boas: professores da rede pública trabalham sob pressão sendo fisicamente ameaçados; escolas mal aparelhadas onde falta até água; baixos salários e professores mal preparados a ponto de excepcional número deles obter zeros em recente prova da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo; fraco desempenho dos alunos; e por aí afora.
O ensino é ruim em muitos países e todo mundo sabe disso. Entre nós, a opção por escolas particulares não é só uma questão de preferência: preocupados com os filhos, pais são obrigados a investir em sua formação. Deriva daí o melhor preparo dos estudantes de escolas particulares em relação às públicas e a conseqüente disparidade de aprovações entre as duas categorias em exames vestibulares.
Colocados esses parâmetros e sem entrar no mérito da justiça ou não na adoção de cotas, fica a pergunta: e como andam os nossos estudantes em relação ao desempenho, mesmo aqueles que estão em boas escolas e dos quais se esperam resultados satisfatórios? Seriam eles estimulados caso fossem adotadas recompensas por desempenho?
Para quem é do ramo parece que a crise atual não se resolve com pagamentos. Podemos, sim, elencar aspectos que concorrem para o mau desempenho de muitos alunos como falta de estrutura familiar, despreparo de professores, ausência dos pais do cotidiano de seus filhos, a parafernália eletrônica disponível que rouba a eles horas de estudo ou simplesmente a miséria. Mas, maior que isso e aliada a toda a problemática do setor, é a estigmatização nacional de que a cultura não vale a pena, de que se pode alcançar sucesso sem esforço e enriquecer com golpes de sorte ou corrupção. Num país em que campeia a impunidade e proliferam exemplos nada edificantes o que se pode esperar da juventude em formação?
Neste Brasil de valores tão confusos é até possível que a oferta de recompensas por boas notas tenha algum resultado satisfatório pela idéia de substituição do hábito e da obrigação pelo ganho inesperado e fácil. Entretanto, caso isso ocorra, talvez os bons efeitos obtidos por essa política não sejam duradouros.
Entretanto, não custa tentar. Nesse sentido a Secretaria de Educação de São Paulo já vem pagando bônus a professores e funcionários pelo desempenho dos alunos. As melhores escolas têm sido favorecidas e a perda do privilégio, ainda que temporária, tem motivado acaloradas discussões sobre patamares de desempenho e direitos adquiridos.
Mínima notícia sobre “Os Sertões”
Mas, afinal, de que assunto trata o livro Os Sertões?
Pergunta simples, resposta complexa. Podemos encaminhá-la lembrando que, em 1897, ocorreu no sertão da Bahia episódio que ficou conhecido como a Guerra de Canudos. Chefiados por Antônio Conselheiro, sertanejos reuniram-se numa cidadela - chamada Canudos – situada nas margens do rio Vaza-Barris. O crescimento da nova comunidade e as características de seu líder e adeptos incomodou fazendeiros da região pela redução da mão-de-obra disponível nas fazendas; acrescendo-se a isso o não pagamento de impostos e práticas consideradas incompatíveis com a religião, gerou-se situação considerada de exceção pelo governo estadual e, logo depois, pelo governo federal.
A tentativa de dissuadir os conselheiristas a abandonarem o local através de intervenção da Igreja – dois capuchinos visitaram Canudos para este fim – resultou inútil. A partir daí, pequenos incidentes precipitaram ações progressivamente maiores dos governos estadual e federal. Foram realizadas quatro expedições militares contra Canudos. O fracasso da terceira expedição, formada por 1300 homens, transformou Canudos num problema nacional: atribuiu-se à cidadela a condição de foco monarquista, isso numa época em que o regime republicano estava por se firmar e temia-se o retorno da monarquia.
A quarta expedição, comandada pelo general Artur Oscar, enfrentou grande resistência dos canudenses e prolongou-se por tempo além do previsto. Ante o iminente fracasso de mais uma expedição o Ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, foi enviado ao palco das operações. É nesse momento que se inicia a participação de Euclides da Cunha no conflito. Em março de 1897 Euclides havia escrito dois artigos sobre Canudos no jornal O Estado de São Paulo sob o título de A Nossa Vendéia. No primeiro desses artigos traduzia a impressão de que o movimento de Canudos visava a restauração da monarquia. Entretanto, para o articulista, o simples desejo de restauração seria insuficiente para explicar tão grande sublevação. Havia, portanto, em Canudos um mistério a se desvendar. Além disso, adiantava-se Euclides ao tom dos artigos escritos na época, alertando para as condições geográficas do sertão, estas talvez o maior inimigo das forças republicanas.
Convidado por O Estado, Euclides da Cunha licenciou-se de suas atividades e tornou-se repórter daquele jornal. Tempos depois, embarcou em direção a Salvador viajando no mesmo navio que levava Machado Bittencourt. O desembarque na cidade aconteceu em 7 de agosto sendo que ali ficaram até 30 de agosto, data do início da viagem ao sertão. Dos dias em que Euclides esteve em Salvador e de todo o período de viagem a Canudos resultaram vários artigos enviados por ele e publicados pelo jornal. Toda essa correspondência de guerra foi mais tarde reunida num livro de reportagens intitulado Diário de uma Expedição.
Chama atenção nessas reportagens a progressiva mudança das opiniões de Euclides: o contato com a realidade do sertão e a extraordinária capacidade do escritor para observar e analisar detalhes ignorados por outros rapidamente o convenceram de que a guerra que supunha-se rápida não estava por terminar; que Canudos de modo algum seria foco de resistência monarquista com intenções restauradoras. Canudos era, sim, uma sociedade velha gerida pela autoridade do Conselheiro e ininteligível aos brasileiros do litoral.
Canudos finalmente caiu nos primeiros dias de outubro de 1897. População dizimada e arraial destruído, a vitória foi comemorada com grandes manifestações na capital federal. A espantosa resistência dos jagunços resultou em mais de cinco mil mortes nas tropas do Exército – considerando-se as quatro expedições.
Terminada a Guerra Euclides da Cunha retornou às suas atividades de engenheiro junto à Superintendência de Obras do Estado de São Paulo. Entretanto, já trabalhava em seu livro que só viria a ser publicado em 1902.
Em Os Sertões Euclides da Cunha não se limita a narrar os episódios da sangrenta Guerra de Canudos a qual denunciou como crime. Para explicar os fatos ocorridos no sertão da Bahia o escritor serve-se de todos os meios que, na época, estão ao seu alcance. Exaltando a influência do meio e da raça no comportamento coletivo, Euclides recorre à geografia, à sociologia, às características climáticas, raciais e biológicas, às biografias, ao linguajar dos caboclos, aos depoimentos que ouviu e todo o conteúdo do que pode observar no sertão. Só munido de tais ferramentas pode estabelecer as diferenças entre o brasileiros das regiões litorâneas e as incultas gentes dos sertões, submetidas às mais precárias condições de vida, ao ambiente geográfico e climático completamente desfavorável. Foi desse modo, analisando profundamente os móveis que permitiram o surgimento da coletividade canudense que Euclides, aos poucos deixando de lado suas convicções científicas moldadas segundo o determinismo vigente na época, pode ver no jagunço outra sorte de brasileiros cuja defesa procedeu através das páginas de seu livro vingador. Sobre isso nos diz Silvio Rabelo, um dos biógrafos de Euclides: ” Ele viu na resistência heróica dos jagunços do Conselheiro mais que uma possível ameaça às instituições e à ordem estabelecida. Ele viu o direito de sobrevivência de uma população que estacionara por não ter tido condições favoráveis à assimilação dos valores culturais do litoral, em bases econômicas mais sólidas e sob influência de idéias mais avançadas. Os Sertões são, deste modo, um brado e brado quase inútil, contra o crime de um governo que abandonara a sua gente a uma natureza nem sempre propícia à vida e a uma organização social nem sempre compatível com a dignidade humana; e, mais do que isto, exterminara-a sem nenhuma condescendência.”
É a variedade de recursos utilizados por Euclides na confecção de seu livro – história, geografia, etnologia, sociologia, etc – que torna inúteis as tentativas de classificar Os Sertões dentro de gêneros literários estanques. Livro de história, sociologia, literatura ou simples ficção? Impossível responder a não ser para dizer que Os Sertões são a um só tempo um pouco disso tudo e, mais que isso, obra genial de um genial escritor.
Há na prosa de Euclides muito de poesia conforme atestaram alguns estudiosos. A linguagem é rica e profunda sugerindo estar o escritor a esculpir suas palavras, metodicamente. É muito dele o uso de palavras incomuns e mesmo a busca de termos arcaicos quando não encontra no vocabulário de sua época algo que sirva para traduzir com fidelidade a imagem que empresta ao leitor. Precisão de relojoeiro, de alguém atento ao ritmo e às sonoridades, alguém que tem o gosto por paradoxos e que abusa de contrastes para deles extrair a força máxima de palavras e imagens. Assim, a riqueza verbal de Os Sertões é estonteante, obra de quem força a língua aos seus limites para dela extrair o máximo.
O grande livro que é Os Sertões paga tributos aos conhecimentos científicos vigentes á época em que foi escrito. Entretanto, Euclides da Cunha rompe com a camisa-de-força dos princípios então disponíveis para descobrir nos sertanejos a grande força que os conduz ao extermínio, embora sem jamais render-se. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” e “Canudos não se rendeu” estão entre as máximas imorredouras da obra de Euclides da Cunha e traduzem com fidelidade a natureza do trabalho a que ele se dedicou.