Arquivo para abril, 2009
Marcel Gontrau
Recebo carta com selos no envelope. Dois deles, R$ 1,50 cada um, trazem um aviso: obra desaparecida. São selos pequenos e faço uso de uma lente para observar as imagens: trata-se de um quadro de Portinari denominado Marcel Gontrau. O que se vê é um homem ao piano e uma mulher à sua frente, mãos unidas como numa oração, cantando.
Pela Internet fico sabendo que o quadro original tem 25,8 X 18,5 cm e foi desenhado com grafite, caneta tinteiro e crayon colorido sobre papel.
Pessoas e coisas simplesmente desaparecem nesse louco mundo em que vivemos. Outro dia vi na TV uma mãe que se afastou da filha por meio minuto e nunca mais a viu; quadros são roubados de museus e somem; a beleza das igrejas de Minas Gerais sofre ataques incompreensíveis para quem ama o barroco e o Brasil.
E pensar que houve uma ocasião na qual Portinari concebeu e executou o seu Marcel Gontrau. Criador e criatura estiveram juntos, integrados, até que se separaram. Candido Portinari morreu em 1962, vítima de progressiva intoxicação por tintas. Pode ser que Marcel Gontrau ainda exista, talvez na parede da casa de um colecionador que o adquiriu no câmbio negro. Se for assim, piano e voz diariamente executam árias sem sentido: seus recitais mudos foram concebidos para as platéias que desfilam frente aos quadros em museus, platéias que ouvem e aplaudem ritmos do silêncio que só a verdadeira arte pode inspirar.
Se você encontrar o quadro estampado no selo, liberte-o: ele pertence aos nossos sentidos.
A parte do porco
Não se fala noutra coisa que não a possibilidade de uma pandemia causada pelo vírus da gripe suína. Ano passado um alerta promovido pela Câmara dos Lordes da Inglaterra estimava que uma pandemia causada por um vírus de gripe aviária, descoberto no Vietnã, provocaria 50 milhões de mortes em todo o mundo. Felizmente nada aconteceu.
Agora estamos na mira desse tal vírus H1N1 que fez umas tramóias genéticas e tornou-se capaz de ser transmitido pessoa a pessoa. Alguns casos já foram identificados, pessoas já morreram pela ação do vírus e a vigilância foi ativada em portos e aeroportos.
A idéia de pandemia é assustadora porque nos coloca na posição de possíveis vítimas e expõe a fragilidade dos seres humanos contra fatores que nem sempre podem ser controlados. Obviamente, dispõe-se hoje de mecanismos de controle e tratamento imensamente maiores que os utilizados em 1918, quando a epidemia de gripe espanhola provocou 35 milhões de mortes. Ainda assim, há que se estar atentos e todos os cuidados são necessários.
E assim os porcos passam a fazer parte dos noticiários. Identificados com a sujeira e exalando forte odor através da pele, os suínos são vítimas permanentes do apetite humano o qual saciam com suas carnes. Agora vêem-se envolvidos com a possibilidade de uma epidemia global e passam a correr sérios riscos: o governo egípcio anuncia que vai matar, a partir de hoje, todos s 300 mil porcos de seu país para evitar a gripe suína.
Triste destino o desses animais criados para servir ao homem. Pena que nem ao menos possam se disfarçar.
Quantum of Solace
Sou fã incondicional do agente 007 criado por Ian Fleming. Nem é preciso dizer que o ator Sean Connery foi quem melhor encarnou o espião inglês, em filmes ambientados na época da Guerra Fria. Connery emprestava ao agente 007 grande glamour. Havia, sim, muita ação e efeitos especiais, mas o forte mesmo eram a trama, a elegância e aquele jeito especial dele para atrair mulheres lindíssimas.
Connery desistiu do papel após alguns filmes e outros atores o substituíram até chegarmos ao 007 atual representado por Daniel Kraig.
Quantum of Solace é o vigésimo segundo filme da série e o segundo com Kraig no papel de 007. O filme pode ser descrito com uma só palavra: frenético. De fato, o ritmo dos acontecimentos é acelerado, abusando-se de efeitos especiais. Desse modo, repetem-se situações na maioria das vezes inverossímeis, exageradas até mesmo para uma trama na qual nos predispomos a aceitar a inverossimilhança. Dentro desse esquema, Kraig/007 surge como verdadeiro autômato, espécie de boneco animado que parece estar sempre atrasado, vivenciando crise existencial que o leva a eliminar tudo e todos que surgem à sua frente.
O que falta a Quantum of Solace? Glamour e um pouco de verossimilhança. Tiros, mortes, incêndios, perseguições, efeitos especiais e até beleza plástica não são suficientes para manter o pique de um filme orçado em 225 milhões de dólares. Um desperdício e, pior que isso, uma nuvem que embaça a imagem do agente 007.
Aquele gol
De repente o atacante recebe a bola, dá um corte, o zagueiro passa lotado, o goleiro está adiantado e aí, no exato compasso de uma inspiração de ar, o momento mágico: o atacante bate na bola que encobre o goleiro e vai se alojar nas redes, dentro do gol.
Então temos a impressão de que o tempo esteve parado por alguns segundos e finalmente soltamos o ar do peito, alguns gritando, outros calados. Entretanto, não escapa a ninguém que presenciamos um raro momento de perfeição, de harmonia muscular e exatidão. Não importa que logo em seguida a perfeição tenha se tornado passado, ela aconteceu, existiu diante de nossos olhos atônitos, os mesmos olhos que na manhã seguinte observam a mesmice diária das coisas imperfeitas que nos cercam.
Foi assim o gol de Ronaldo, ontem, contra o Santos.
Cena na padaria
Entro na fila do caixa para pagar o pão. Na minha frente um homem pardo, cinqüenta e poucos anos, mal vestido, nos pés um velho par de havaianas. Ele pede um maço de cigarros. O rapaz do caixa pega o maço mais barato, o homem enfia a mão no bolso e trás moedas que coloca sobre o balcão. O rapaz conta o dinheiro e diz:
- Não dá, está faltando…
- Mas esse é o preço…
- O senhor não sabe? Aumentou por causa do IPI.
- O IPI? Que IPI?
- O imposto - responde o rapaz. E arremata:
- O melhor é deixar de fumar.
O pobre homem sai da padaria sem os cigarros. Penso em intervir, ajudar com algumas moedas, mas o homem já vai longe, na calçada, atingido que foi por um raio desconhecido chamado IPI.
Tudo bem, o cigarro faz mal à saúde, o melhor é que ninguém fume, as leis cada vez mais restringem o espaço dos fumantes e não há mal algum em aumentar a tributação de um produto que deve ser banido. Isso tudo soa muito bem no atacado. Mas no varejo, ali no caixa da padaria, as coisas não são tão simples assim. De repente, um pobre coitado, o tal pardo que usa havaianas surradas e tem poucas moedas no bolso é impedido de levar o seu cigarrinho, quem sabe um dos raros prazeres na sua vidinha de pobre.
Toda essa desgraça por causa do tal IPI, quem diria.
O caminho dos livros
Morreu o Quintiliano. Morreu em 1995. Como sei? Para começar nunca conheci o Quintiliano ou ouvi falar dele. Acontece que ele era proprietário de um livro de autoria de Euclides da Cunha que, semana passada, comprei num sebo.
Pois no livro, na última página, há um selo colado onde se lê: acervo do Quintiliano; 1923-1995.
Pronto. Esclarece-se o mistério. Desaparecidos o Euclides e o Quintiliano, a bola da vez passo a ser eu. Ou me desfaço do livro – e passo a outro o final dessa história – ou o mantenho comigo até o fim esperando que alguém, após a minha morte, coloque na última página o meu nome e as datas do meu nascimento e óbito.
Os livros seguem caminhos estranhos. Nós que os amamos apegamo-nos a eles e os mantemos nas estantes, orgulhos por possuí-los. Vez por outra abrimos um livro, lido e relido, e extraímos dele ainda que só uma frase. É por isso que os escritores nunca morrem de verdade, eles deixam traços de seu pensamento espalhados por aí, em lugares que jamais estiveram.
Os leitores? Ah, esses morrem definitivamente. Às vezes, raramente, recebemos notícias sobre alguns deles, como agora fiquei sabendo sobre o Quintiliano que lia Euclides.
Quando os leitores morrem seus livros finalmente se libertam: muitos vão para as ruas, tomar chuva em alguma garagem ou parar num sebo onde, placidamente, aguardam que alguém se apaixone por eles.
Por onde anda o Chico?
Foi um tio quem me contou sobre o Chico. Consta que ele associou-se a um parente na lavoura e foi roubado por ele na divisão dos lucros. Tempos depois, emboscou o parente que voltava a cavalo para o sítio. Um tiro no peito enviou o parente para o caixa-prego; o Chico foi preso, julgado e, na falta de testemunhas, o júri o entendeu como inocente.
Conheci o Chico como ajudante a carregar caminhões com seus poderosos músculos, forte que era. Trabalhava aos gritos, vivia aos gritos, voltando-se o tempo todo para trás porque algo ou alguém parecia persegui-lo. Chamava atenção vê-lo em permanente desespero, amaldiçoando seres invisíveis que não lhe davam tréguas, dia e noite. Paz, talvez, só enquanto dormia na boléia dos caminhões, peito aberto ao sereno da madrugada.
O Chico sumiu há muitos anos, misteriosamente, dizem que levado pelo parente morto que o perseguia. O fato é que desapareceu e nunca mais foi visto. Sua irmã, Dona Virgínia, mulher religiosa e convencida da morte do irmão, debalde procurou pelo seu corpo. No fim desistiu e mandou colocar lápide no túmulo pobre da família com o nome do Chico.
Dias trás visitei o cemitério onde estão enterrados meus pais e passei pelo túmulo onde hoje também repousa Dona Virginia. Vi a lápide meio apagada com o nome do Chico e tive a sensação de que, de algum modo, ele estabeleceu um tipo de pacto diferente com a eternidade e continue vagando por aí, amaldiçoando, xingando quem o persegue, essa a sua condenação.
Eu também quero
Talvez por cansaço, evitamos falar sobre assuntos que nos aborrecem e envergonham. Um deles é essa história que rola nas páginas dos jornais sobre viagens ao exterior com passagens da Câmara. Escancara-se, também, a utilização indevida de apartamentos funcionais em Brasília.
O que se tem visto é um mea culpa de políticos, alegando falta de regras claras.
Mordomias e privilégios sempre fizeram parte da rotina dos escalões superiores do país, tanto que não estranhamos quando se tornam públicas. A coisa toda parece tão “normal” que, mais que com o fato em si, ficamos constrangidos em saber que fulano de tal, em quem depositávamos confiança, também está envolvido em algum tipo de escândalo.
Considerando-se que tudo isso acontece com o nosso dinheiro – não nos deixam em paz com impostos – creio não ser demais sonhar com alguns privilégios como esse de ir ao exterior utilizando os cofres públicos.
Eu também quero.
Todos querem, afinal pagamos.
Vida extraterrestre
Tenho um grande amigo que garante ter visto, certa noite, um disco voador ou algo parecido numa estrada do litoral. Ele não estava sozinho de modo que compartilhou a visão com outras duas pessoas.
Meu amigo é homem culto e sério, não dado a bazófias. Contou-me isso como algo que mudou sua maneira de ver coisas consideradas absurdas ou propagandas enganosas.
Os meninos da minha geração assistiram nos cinemas, antes da apresentação dos filmes do dia, os seriados de Flash Gordon. O Flash vivia às turras com o malvado imperador Ming e viajava no espaço com uma nave que hoje nos pareceria antiquada. Mas era um herói do cinema noir e isso basta quando se trata de ficção. Mais tarde apareceu um filme em tecnicolor com o Flash Gordon que, infelizmente, nem de longe tinha o sabor das aventuras do velho herói no planeta Mongo.
De que as viagens espaciais e a curiosidade sobre a vida no espaço sempre excitaram a nossa imaginação não restam duvidas. Filmes e revistas em quadrinhos apropriaram-se da nossa curiosidade e faturaram muito dinheiro à custa dela. Entretanto, vez por outra a pergunta ressurge: estamos sozinhos?
Agora o ex-astronauta Edgar Mitchell, que fez parte da missão Apollo-14 à Lua, declara que existem extraterrestres e que o governo americano esconde informações sobre o assunto. A afirmação restitui ao nosso cotidiano a possibilidade de vida extraterrestre e nos coloca diante de questão aparentemente sem resposta.
O universo é grande demais e não é impossível a existência de vida fora da Terra, talvez diferente daquela que conhecemos. A minha primeira reação frente à afirmação de Mitchell é a de descrédito. Mas é aí que me lembro do que me disse o meu amigo, capaz de jurar perante todos os tribunais de terráqueos sobre aquilo que ele e mais duas pessoas viram.
Será?
O jeito é continuar olhando para o céu, procurando.
Ataulfo Alves
Pois é
Falaram tanto
Que desta vez
A morena foi embora
Disseram que ela era a maioral
Que eu é quem não soube aproveitar
Endeusaram a morena tanto, tanto
Que ela resolveu me abandonar
É Ataulfo Alves quem canta, acompanhado por suas pastoras. Na janela de uma casa de cidade do interior, o Pimenta. Ele vinha de madrugada, após beber um pouco, batia na janela, um rapaz da família abria e punha o LP do Ataulfo na vitrola. O Pimenta sorria satisfeito, depois entrava no choro pela saudade da mulher que o deixara.
Ataulfo cantou a fossa e os amores infelizes, deu palavras e ritmo ao sofrimento alheio. Também foi grande nas marchas de carnaval como a deliciosa “Ai, que saudades da Amélia”.
Dia 20 de abril completaram-se 40 anos da morte de Ataulfo. Daquelas madrugadas em cidade do interior não restou nada: a casa foi demolida, o Pimenta morreu de câncer, o rapaz que abria a janela foi levado por um derrame. Quase toda a gente daquele tempo desapareceu e fiquei eu para ouvir o CD de Ataulfo cantando:
A maldade nessa gente é uma arte
Tanto fizeram que houve a separação
Ai, ai, ai
Mulher a gente encontra em toda parte
Mas não se encontra a mulher
Que a gente tem no coração
Pois é!