Arquivo para abril, 2009
Vandalismo
A pergunta é feita por um repórter: por que as pessoas destroem bens públicos que lhes pertencem? Em seguida mostram-se imagens de estátuas, cabines telefônicas, redes de alta tensão, trens e uma infinidade de bens depredados. O vandalismo impera e reflete sobre o dia-a-dia das populações em cidades brasileiras.
Uma psicóloga afirma que grupos de jovens depredam para mostrarem-se uns aos outros. Um policial diz que as depredações acontecem por ausência de repressão. Um desconhecido, entrevistado na rua, reclama da ação das torcidas organizadas que quebram tudo em estádios e o impedem de assistir aos jogos de seu time.
Razões há e muitas para o vandalismo. A mais genérica e que engloba todas é a ausência de cidadania. Pensando assim o incompreensível torna-se compreensível, embora inaceitável.
A energia animalesca que anima o espírito dos vândalos só pode ser detida com um profundo mergulho no conceito de cidadania, trabalhando-o desde cedo na formação dos futuros cidadãos. Se assim não for, os covardes arroubos de violência contra coisas inanimadas continuarão a ocorrer, convertendo-se nas notícias infaustas que constantemente recebemos. É o caso de uma estátua - Niterói-RJ - na qual Oscar Niemayer exibe a Juscelino Kubsitchek o projeto de construção de Brasília. Há poucos dias os braços de cobre de Niemayer foram cortados, conferindo aspecto horrível ao monumento.
A visão dos braços criminosamente decepados subtrai ao imaginário dos observadores a realização de projetos grandiosos, mundialmente reconhecidos. Queda-se momentaneamente desfeita a imagem ali eternizada de um dos momentos cruciais de nossa história recente. Tudo isso por obra de vândalos para os quais o único interesse é a venda pedaços de cobre.
O outro lado da beleza
Uma criança nasce na rua em Salvador-BA. Alguém tira uma foto que é publicada na primeira página de um grande portal da Internet. A criança é flagrada justamente no momento em que vem ao mundo, ainda presa pelo cordão umbilical. Não se vêem o rosto da mãe, nem suas partes íntimas: a foto é tirada de cima revelando as pernas fletidas, abertas e bastante sangue.
Acaso ou não, a foto é chocante e nos leva a perguntar sobre a utilidade de sua publicação. A simplicidade das roupas da mãe, o sangue, o bebê seguro pelas mãos de algum passante, tudo ali é documentado inutilmente. Embora os participantes da cena não sejam identificados, expõe-se publicamente a intimidade de momento único de suas vidas.
A beleza do parto e início de uma nova vida é intrínseca, superior; o outro lado dessa beleza, seus aspectos visuais tingidos de escarlate pertencem, exclusivamente, a mãe e à criança que acaba de nascer.
Áquila
Desgraças grandiosas deprimem porque nos colocam frente ao incontrolável. O terremoto ocorrido na Itália, infelizmente seguido de outros tremores, escancara a impotência do homem contra forças que não podem ser dominadas.
Curioso o fato de que a nossa civilização, a nossa arte, nossos valores e crenças estejam estacionados sobre algo móvel, que gira no espaço e não está livre de fenômenos internos e externos fora de nosso controle.
Vejo as imagens de Áquila pela televisão. A catástrofe é constrangedora. De repente, o sorriso de uma criança tendo ao fundo um prédio desabado. A criança me devolve a força e a esperança, continuaremos, o homem tornou-se capaz de vencer todos os obstáculos. Não importa que isso não seja verdade, saio à rua achando que o mundo nos pertence, o universo nos pertence. É pensar assim ou sucumbir.
Chacinas
É terrível constatar, mas já nos conformamos com esses atiradores que, de repente, matam muitas pessoas em cidades dos EUA. De fato, ocorrências dessa natureza não nos causam grande surpresa, passando por esperadas no cotidiano daquele país.
Visto de longe e por atacado o problema pouco nos incomoda ainda mais se considerarmos que vivemos em país onde a violência assume índices espantosos. Entretanto, quando observadas no varejo as chacinas que ocorrem nos EUA não podem deixar de afetar-nos duramente. Comprova essa afirmação o massacre realizado por um vietnamita que, semana passada, matou treze pessoas em Binghamton, Estado de Nova York. Entre os mortos havia um brasileiro que estava nos EUA fazendo pós-doutorado em matemática.
O fato de um brasileiro estar entre as vítimas e recebermos informações sobre ele e sua família traz para perto de nós toda a hediondez da ação, tornando-a mais palpável aos nossos sentimentos. E leva-nos a perguntar por que esse tipo de crime se repete nos EUA, seguindo um padrão cujo final trágico é a morte de várias pessoas e o suicídio dos assassinos.
Responder a essa pergunta é tarefa para especialistas. Para nós, leigos, ficam as imagens de um ato incompreensível e a interrupção da vida e trajetória de um professor sobre quem se afirma ser brilhante e que realizava o seu grande sonho de sair do Brasil pela primeira vez.
Ricos e pobres
Obama elogia Lula dizendo “eu adoro esse cara” e “é o político mais popular da Terra”. Dora Kramer escreve em “O Estado de São Paulo” que “no efeito reflexo, americano tirou o melhor proveito do elogio feito a Lula”.
Os editoriais dos jornais concordam que Lula representou bem o país, saiu-se bem na reunião do G20. Fernando Rodrigues escreve na “Folha de São Paulo” referindo-se à culpa de europeus e alguns norte-americanos em função da assimetria existente entre países do norte e dos sul. E continua: “Pronto: aí está a combinação perfeita para colocar um pobre (Lula) ao lado de um nobre (a rainha)”. Noutra parte, Fernando comenta: “sentado sorridente na foto oficial, Lula se presta a ajudar a lustrar a imagem dos ricos. Sua contrapartida é óbvia. Não é todo dia – aliás, não é mesmo – que um presidente brasileiro é tão bem tratado nesses fóruns externos”.
Bem. O Brasil não é mais exatamente o país que era no passado, hoje até prontifica-se a ceder dinheiro para o FMI (nas sessões de leitores dos jornais lêem-se muitas cartas protestando contra isso). Para que se tenha idéia consta que em 1961, quando da eclosão da crise da Baia dos Porcos, o Brasil enviou um mediador para tentar solucionar a questão. O mediador foi ignorado e aqui acusou-se o governo brasileiro de forçar a barra para se inserir no cenário internacional.
Nem seria preciso dizer que os tempos são outros. Hoje o Brasil está entre os países do G20 e não precisa do FMI. Até aqui vem atravessando a crise mundial com perdas, mas com alguma folga. Posto isso, que dizer dos elogios ao presidente e de sua posição ao lado da rainha na foto?
Confesso que ao ver a foto experimentei uma retração. Pareceu-me que algo estava fora do lugar. A sensação foi a de que não propriamente o presidente, mas o país por ele ali representado tinha ascendido à condição de novo-rico. E é sabido o que os verdadeiramente ricos pensam sobre os novos-ricos. Foi aí que me lembrei do título de um dos livros do Joel Silveira: “você nunca será um deles”.
Foi bem o presidente, foi muito bem na reunião do G20. E quem sabe todo esse nosso falatório não seja apenas fruto de certo complexo de inferioridade nacional. Caso seja assim, está mais que na hora de revisarmos esse ponto.
A lei do fumo
A lei do fumo que está para ser aprovada em São Paulo restringirá o espaço para fumantes a locais públicos abertos e domicílios. Fora daí, existem raras exceções.
Sob o ponto de vista médico e face ao incômodo que provoca em não-fumantes, o fumo deveria ser banido. Aliás, o ideal é que não existisse, não tivesse sido inventado. Quem fala isso é um fumante que deixou de fumar há muitos anos e que, confessadamente, às vezes sente saudades do cigarro.
Entretanto, o problema da lei por ser aprovada é a sua dureza e o fato de avançar muito sobre uma lei federal já existente e que permite o fumo apenas em bares e restaurantes. O fato é que muita gente fuma e há que se pensar na restrição de seus direitos.
Não se pode generalizar mas é verdade que temos, no Brasil, aversão a tudo que nos pareça totalitário, daí o desconforto ante medidas restritivas de qualquer espécie – mesmo quando razoáveis. Esse modo de ser é herança do regime totalitário sob o qual vivemos no passado e que nos fez democratas a toda prova, por vezes até exageradamente. Pois é em nome desse exagero que me permito recordar um anúncio que vi, certa vez, nas páginas do Le Monde. Opondo-se à restrição ao fumo, os publicitários colocaram uma foto referente ao nazismo e um texto cujo significado era “começa assim”.
Tá bom, você tem razão, era só uma propaganda de companhias de cigarro, mas que incomoda, incomoda.
Suicídios
A morte de Nicholas Hughes, dias trás, reativa as discussões sobre o suicídio. Nicholas era filho da grande poetisa norte-americana Sylvia Plath e do escritor inglês Ted Hughes. Sylvia suicidou-se aspirando gás de seu fogão por não suportar a traição de seu marido com Assia Wevill. Assia também se suicidou anos depois. Agora foi a vez de Nicholas suicidar-se por meio de enforcamento.
Não me cabe discorrer acerca das teorias sobre o suicídio, embora reconheça que mais gente do que se pensa esbarre na idéia pelo menos uma vez na vida. O que me move são impressões suscitadas por fatos consumados e a perplexidade quando de sua ocorrência.
Nunca me esqueci de uma japonesa – eu era menino – que veio de longe até a cidade onde morávamos para visitar o cemitério onde sua mãe fora enterrada. A japonesa deitou-se sobre o túmulo da mãe e ingeriu goles de um inseticida utilizado na lavoura. Ninguém a viu morrer, mas jamais me esquecerei do rosto contorcido e da baba grossa que escorreu pela sua boca. A curiosidade de menino me valeu muitas noites de medo.
Entretanto, os suicídios que mais me deixaram perplexo relacionam-se a um jogo da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1954. Trata-se do famoso jogo entre Brasil e Hungria no qual o “escrete” brasileiro foi derrotado por 4 a 2. Esse jogo é um dos ícones de nossa história futebolística sendo que, durante muito tempo, justificou-se a derrota brasileira graças à atuação do juiz, certo Mr. Ellis. Esse Mr. Ellis foi transformado em sinônimo de ladrão no Brasil até que testemunhos de pessoas que assistiram ao jogo e a exibição de filmes desmentiram a sua atuação tendenciosa.
Naquele célebre jogo o goleiro do Brasil era Castilho, conhecido como milagreiro por fazer defesas consideradas impossíveis. Já no formidável time da Hungria havia um jogador chamado Sandor Kocsis, conhecido como “o pássaro louco” pela forma que saltava ou se jogava para a bola.
No jogo de 1954 Kocsis anotou dois gols em Castilho, um deles de cabeça. Penso que, de alguma forma, a partir daí os destinos dos dois craques ficaram ligados. Sandor Kocsis morreu em um domingo de julho de 1979: deprimido atirou-se à rua pela janela de um hotel; Castilho morreu fevereiro de 1987: deprimido atirou-se do sétimo andar do apartamento de sua ex-mulher.
A febre amarela em SP
Notícia publicada ontem pela “Folha de São Paulo” informa sobre a ocorrência de oito mortes por febre amarela silvestre na região de Botucatu – interior do Estado de São Paulo.
A febre amarela é doença infecciosa aguda, de gravidade variável e curta duração, causada por vírus infectados pertencentes ao gênero Flavivirus.
A referência da notícia à variedade silvestre explica-se: existem dois tipos de febre amarela: silvestre e urbana. A silvestre é uma zoonose (doença de animais que eventualmente é transmitida ao homem). Afeta principalmente macacos, passando de um a outro através de mosquitos vetores pertencentes aos gêneros Aedes e Haemagogus. A urbana é própria do homem sendo transmitida de um indivíduo a outro pelo inseto Aedes aegypti (o mesmo que transmite o dengue). Note-se que desde 1942 não se registram casos de febre amarela urbana no país.
A forma silvestre é adquirida pelo homem acidentalmente, por ocasião de derrubada de matas, quando é picado por mosquitos vetores que vivem no topo das árvores. Ao voltar à cidade, a pessoa ser-ve como fonte de infecção quando picada pelo vetor urbano, o Aedes aegypti, que transmitirá a doença a outros indivíduos. Inexiste a transmissão direta de febre amarela de uma pessoa a outra.
Na febre amarela observam-se períodos de incubação, de infecção, de remissão e toxêmico.
O período de incubação dura de 3 a 6 dias, continuando-se pelo período de infecção, onde há febre alta, dores de cabeça, musculares, ósseas e articulares. Ocorre ainda falta de apetite, náuseas e vômitos. Segue-se uma curta fase de remissão, que dura de algumas horas até dois dias. Há melhora acentuada do doente e, em alguns casos, cura. Em outros casos, mais graves, a doença evolui para o período toxêmico, com febre, hemorragias, icterícia (pele amarelada pelo depósito de pigmento bilirru-bina) e intensa albuminúria (eliminação da proteína albumina pela urina).
As medidas profiláticas utilizadas em relação à febre amarela são: combate aos insetos vetores com eliminação de reservatórios de água parada; destruição de larva dos insetos vetores e eliminação de criadouros desses insetos com o uso de inseticidas; uso nas casas de telas de proteção à entrada de insetos; vigilância contra mosquitos trazidos do exterior; e vacinação obrigatória de indivíduos que procedem de áreas endêmicas ou que para elas se dirigem. A vacinação é, portanto, muito importante para as pessoas que se dirigirem à região de Botucatu nos próximos dias.
O You Tube e o passado
O cemitério de La Recoleta, em Buenos Aires, é atração turística da cidade graças ao aspecto monumental de seus jazigos. Ali estão enterradas personalidades argentinas, entre elas Evita Perón. Também está em La Recoleta o boxeador Luis Àngel Firpo (1894-1960), peso-pesado que, em 14 de setembro de 1923, realizou célebre luta com o então campeão mundial Jack Dempsey.
Meu pai lutou boxe na juventude e tinha Dempsey por ídolo. Muitas vezes falou-me ele sobre a famosa luta de Dempsey contra Firpo. Talvez por isso eu tenha entrado no You Tube e digitado o nome de Firpo. Pouco depois, estava eu defronte um ringue, em Nova York, justamente no momento em que Dempsey e Firpo entravam no ringue. Não direi o que acontece em seguida para que o leitor que gosta de boxe possa assistir e tirar suas conclusões. De qualquer modo não custa dizer que os vídeos do You Tube podem funcionar como senha para imersões no passado, conduzindo-nos a mundos e situações desfeitas para trazê-las, redivivas, ao presente.
Pois bem. Há pouco tempo estive em Buenos Aires e fui ao cemitério de La Ricoleta. Andava por uma alameda quando me vi diante do túmulo de Firpo. Trata-se de um jazido encimado por uma estátua do ex-boxeador. Esculpida à sua imagem, a estátua mostra um homem muito forte, como ele terá sido. Olhava eu para a estátua quando outras imagens se sobrepuseram a ela. De repente, pareceu-me ouvir o ruído de um grande público e a estátua ganhou vida, movendo-se. Então Firpo, de calção preto, levantou-se da lona e foi sobre Dempsey, de calção branco, desferindo uma seqüência de golpes que atirou o campeão fora do ringue. Atrás de mim, vozes há muito emudecidas gritavam, em delírio, enquanto Firpo permanecia no centro do ringue esperando o retorno de Demsey.
Não durou muito e o silêncio se refez. Olhei para o Firpo de bronze e em vão busquei nos túmulos próximos sinais de uma platéia. Estavam todos calados, estavam todos para sempre imóveis.