Arquivo para maio, 2009
Agonia de Baleias
Está acontecendo na África do Sul, perto da Cidade do Cabo. Eram 55 baleias; 20 delas foram devolvidas ao mar, uma morreu e para as 34 restantes não há remédio: serão sacrificadas.
Há pessoas que sofrem pela dor do mundo, tomam por suas desgraças alheias de qualquer tipo. Não pertenço a esse grupo, mas desde sempre fui capaz de sentir a dor das baleias. Fotografias desses animais encalhados chegam a mim impregnadas dos caminhos por eles percorridos. Imagino a força descomunal desses seres que percorrem longitudes e desafiam as correntes marítimas, poderosos, absolutos, régulos em um mundo de barbárie competitiva.
De que latitudes vieram os animais estupendos que agonizam nas praias da África do Sul? Que desafios terão conhecido e que força os subjugou? Por que o destino da liberdade nas águas lhes foi subitamente negado? Por que a morte inglória numa prisão de areias, pequena demais ante a colossal imensidão dos mares tão próximos e que as fariam viver?
Especialistas terão respostas práticas para tais perguntas. Identificarão a origem das baleias e suas rotas até chegarem ao local onde agora agonizam. Também as sacrificarão em nome da humanidade de evitar-lhes maior sofrimento. Mas não poderão deter essa dor que vem de tão longe e me atinge, a dor da espera do sacrifício, a dor da potência que deixará de ser, a dor terrível da morte num cárcere sem água junto ao oceano.
Bicho Boca Aberta
Aí está o Bicho Boca Aberta conforme o vi e fotografei. Produzido pela Associação dos Artesãos do Padre Cícero, o Bicho apresenta-se como híbrido entre humano e animal. Seu aspecto é a um só tempo intrigante e desconcertante. As crianças o temem; as mulheres vêem nele indícios de mau agouro; os homens aproximam-se, escrutinando-o por todos os lados, mas não se animam a adquiri-lo; o especialista busca na forma esdrúxula as componentes mentais das mãos que lhe deram a grotesca forma.
Nele existe a face desumanizada que se torce na boca aberta prometendo imersões no desconhecido. Há malícia e intriga nos grandes lábios que simulam o sorriso dos desgraçados, dos bêbados para sempre perdidos, dos afrontados por toda sorte de infâmias. Se o observamos por trás, somos tomados pelo espanto diante do cabelo/crina de mulher animalesca que se consubstancia no vasto traseiro de quadrúpede mesclado com nádegas femininas das quais pende um longo rabo.
O Bicho Boca Aberta é uma criação do bem feita para o mal, o homem com pés de burro. Será intruso em qualquer casa posto que testemunhe sempre a possibilidade do insólito e da desgraça.
São Paulo na berlinda
Conheci no passado certo Afonso, hoje defunto devidamente cremado, que professava curiosas opiniões sobre vários assuntos. Era um prazer ouvi-lo, a ele que vivia sozinho após ser deixado pela mulher, descontando nos grandes goles alcoólicos a sua desgraça. Que apaixonado foi, até a morte, pela mulher. Mais que isso e para usar a linguagem bíblica, nunca mais conheceu nenhum corpo feminino de vez que se dizia homem de uma mulher só.
Uma das curiosas posições do Afonso dizia respeito à condição de existência no inferno. Certa vez, em meio a um dos nossos papos “altamente filosóficos” perguntei a ele se toparia viver no inferno. A resposta foi a seguinte:
- Se for para ser amigo do chefe, claro que sim. Olhe, pode-se viver muito bem em qualquer lugar se a nossa posição for de apaniguados de quem manda. Camarilhas sempre se deram bem, veja as cúpulas comunistas que vivem do bom do melhor. Teoria é uma coisa, a prática outra. Aí está toda a ciência da busca de altas posições nas hierarquias e explica-se porque governantes titubeiam em deixar cargos que temporariamente exercem. Pouca coisa sob a luz que nos ilumina tem o poder de coerção das mordomias, das facilidades, do desprezo pelos grandes esforços. Viveria, sim, no inferno, caro amigo, mas sob certas condições e tratados assinados como o manda-chuva de lá.
Agora leio nos jornais que estudo do governo paulista mostrou que São Paulo é uma das piores cidades do Estado em qualidade de vida para idosos.
Apelo para a memória do Afonso, grande filósofo ignorado em seu tempo, para me distrair e continuar acreditando que os idosos podem viver bem em São Paulo. Não dá para negar que fatores como a saúde, a proteção social, a mortalidade precoce, o acesso à renda, a participação em atividades culturais e esportivas sejam, em São Paulo, inferiores aos encontrados em outras cidades do Estado. Temos, ainda, que concordar com o fato de que a grande cidade é, segundo afirmação de um geriatra, ambiente hostil a idosos com qualquer tipo de limitação.
Mas… São Paulo é uma cidade imensa, cheia de contradições, megalópole onde tudo é grande, inclusive seus problemas. É pelo amor à cidade que escrevo essas mal traçadas nas quais apelo para a filosofia do defunto Afonso consubstanciada na idéia de que se pode viver bem até no inferno.
São Paulo não é nenhum inferno, longe disso, vamos melhorar, quem sabe humanizar mais a cidade, atender a todas as camadas populacionais.
Opinião de otimista.
Sob o Império das Aparências
De que é preciso cuidado com a saúde não se discute. Dietas ricas em gorduras são prejudicais: a associação entre altos níveis de colesterol e o endurecimento da parede dos vasos sanguíneos está mais que popularizada; exercícios físicos são fundamentais para a preservação da saúde em todas as idades; são enormes os malefícios proporcionados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas; cigarros nem pensar; e assim por diante.
Assuntos relacionados a cuidados com a alimentação, preservação da saúde e manutenção da forma são constantemente veiculados pela mídia escrita e falada. Eles dão IBOPE, vendem revistas.
Até aí nenhuma novidade. O problema realmente começa quando, sob o manto da preservação da saúde, estabelece-se a ditadura da boa forma, do visual perfeito, da neurotizante balança que não mente, das gordurinhas localizadas, da feiúra opressiva, do botox, da cirurgia plástica tantas vezes desnecessária, da necessidade de melhorar para ser bem aceito nos meios que freqüentamos. Trata-se da imposição do belo.
Quando isso acontece o equilíbrio do organismo deixa de ser um problema médico e passa ao território do “fashion”, das centenas de regimes propostos - muitos deles absurdos -, do emagrecer a qualquer custo para parecer bem, do dedo na garganta após as refeições e todo o arsenal de atitudes desmedidas que, estas sim, comprometem a saúde e colocam em risco a própria vida.
É assim que, de repente, uma jovem modelo apresenta uma infecção urinária que evolui para septicemia e óbito. Do mesmo modo acontecem casos extremos de anorexia cujo tratamento não é nada fácil. Ou, para ficar no mais rotineiro a simples não aceitação do que somos, que se traduz no mal-estar que nenhuma roupa consegue evitar quando nos vemos no espelho.
A existência do belo realça o feio. O fato de vivermos na época do belo artificial, das imagens perfeitas porque retocadas, faz do belo falseado uma meta inatingível. Cria-se dessa forma uma nova escala entre a beleza e a feiúra na qual aparências normais tendem a deslocar-se na direção do feio. A partir daí não há como se evitar comportamentos e hábitos ditados pelo modismo, pelo império das aparências.
Como certa vez disse Pascal, “nous sommes embarqués”.
Estamos, mesmo, embarcados em curiosos processos de existência.
O Dia da Mata Atlântica
O “Dia da Mata Atlântica” poderia ser chamado de “Dia da Extinção”. As estatísticas nos dão conta da existência de apenas 7% da mata primitiva. É assim que um dos grandes ecossistemas do mundo, proprietário de incrível biodiversidade, vai desaparecendo.
Pode parecer estranho, mas não gosto do “Dia da Mata Atlântica”. Nada contra a floresta, pelo amor de Deus, que a todos os títulos deve ser exaltada. Mas para que serve esse dia? Ora, para que nos falem sobre a devastação e nos mostrem imagens terríveis sobre o que acontece dentro do bioma da Mata Atlântica. Apresentam-nos provas sobre o corte ilegal de árvores gerenciado pela bandidagem armada que fornece madeira a ser comercializada ilegalmente. Ficamos sabendo que árvores altíssimas são derrubadas e que o máximo que se consegue fazer é aplicar multas quando se localizam as atividades ilegais. Multas essas, aliás, que em geral não são pagas porque os destruidores da mata deixam o local – que, aliás, não pertence a eles – deslocando-se para áreas distantes onde reiniciam as suas atividades.
Isso tudo nos mostraram hoje nos noticiários da manhã. A mesma coisa tem sido mostrada nos noticiários de anos anteriores e não precisaremos da ajuda de futurólogos para adivinhar que, no ano vindouro, receberemos informações semelhantes.
É por isso que não gosto do “Dia da Mata Atlântica”. Se é verdade que a data é muito útil para chamar a atenção pública e de autoridades sobre o problema da devastação, também o é que ela serve para demonstrar a nossa impotência diante de algo que se repete e que afeta diretamente o ambiente e as nossas vidas. E isso é inaceitável, intolerável.
Não seria justo terminar sem lembrar que existe gente bem intencionada e que se esforça muito para coibir os abusos praticados na Mata Atlântica. Infelizmente, dada a dimensão do problema, suas participações não têm sido suficientes para a preservação do grande ecossistema.
Nada a comemorar no “Dia da Mata Atlântica”. Era para ser uma data feliz.
A literatura policial
Nesses tempos em que a vida estressante cobra descontração, nada melhor que mergulhar no mundo das narrativas policiais. Embora muitos críticos de literatura insistam em negar maioridade ao gênero policial – que definitivamente enquadram abaixo do que consideram como verdadeira literatura – não se pode negar a extraordinária qualidade de muitas narrativas e o grande interesse que despertam em seus leitores.
Qual a razão do sucesso? Por que assistimos às várias séries de TV cujos roteiros são histórias policiais? Isso acontece porque romances e contos policiais possuem características próprias que nos atraem. Ação, emoção e aventura são ingredientes que cercam os movimentos dos heróis, os melhores deles detetives particulares que na verdade pouco apresentam de heroísmo. São personagens dúbios, capazes de deslizes, mas com inclinação para a prática do bem. É assim que se vêem envolvidos em situações inesperadas nas quais correm riscos, batem e apanham, sempre perseguindo o fio da meada que os levará à solução do caso.
Nas histórias policiais o suspense é uma constante. Quase sempre narradas em primeira pessoa – em geral quem fala é o detetive ou alguém próximo a ele – as tramas consistem em conduzir o leitor em meio a um emaranhado de hipóteses. Interessante notar que nem sempre se trata dos clássicos narradores não confiáveis sobre cuja existência nos advertem os manuais de teoria da literatura. De fato, os narradores-detetives dividem com o leitor as suas dúvidas, fazendo-o andar a seu lado durante a investigação e a ele propondo as pistas que progressivamente se apresentam.
Abordo esse tema porque há alguns anos deixei de ler histórias policiais. Recentemente adquiri um dos livros do escritor Raymond Chandler intitulado “Adeus, minha adorada”. Comecei a ler e não consegui parar antes da página final. Reencontrei nesse livro o Philip Marlowe, detetive sofisticado que possui formação universitária, gosta de xadrez e ama música clássica. Marlowe é contratado para encontrar uma moça desaparecida; o restante da história fica para quem vier a ler o livro.
As histórias policiais conferem a quem as lê grande prazer. Conduzidos pelos narradores participamos da solução de intrigas propostas e isso nos afasta da rotina diária - o que não é pouco.
Entre os autores de romances e contos policiais Raymond Chandler é uma ótima lembrança. Você que não está habituado a esse gênero - ou o abandonou - leia Chandler, um grande mestre das histórias policiais. Seus livros podem ser enciontrados nas livrarias e a custo baixo em boas edições de bolso.
Sob o calor da sauna
Somos dois. Ele um senhor que mora no interior de São Paulo, certamente aposentado. Veio ao nordeste, está há dois dias no Ceará e depois seguirá para Petrolina. A filha mora lá, vai visitá-la
Pergunto sobre Petrolina. Ele responde:
- Petrolina, em Pernambuco, é pólo produtor de frutas e segundo centro vinícola do país. De lá a produção escoa para todo o Brasil e é exportada. Tudo isso se tornou possível devido à irrigação. A irrigação é a solução para as áreas secas.
Pelo que o senhor me diz há esperança para a seca nordestina, mesmo em áreas de caatinga:
- É preciso levar a água para o interior. A transposição do São Francisco é vital para as regiões de seca.
O resto da conversa gira sobre comparações entre o Brasil e outros países. Para o meu companheiro de sauna vivemos num paraíso, basta comparar a vida em outros países com a que temos aqui.
A certa altura o calor se torna insuportável e eu me despeço. Não dizemos os nossos nomes e certamente jamais voltaremos a nos encontrar.
O fato é que estive com um brasileiro que ama o seu país e orgulha-se das coisas boas que temos. Já idoso, confia no futuro e orgulha-se da terra onde nasceu. É desses homens que acredita no poder do trabalho e no esforço coletivo que impulsiona as grandes nações. São coisas boas de ouvir numa época marcada pelo desânimo com a classe política, com a corrupção e a violência cotidiana, fatores esses que geram pessimismo e nos fazem pensar que o Brasil não tem mais jeito.
O recado da Terra
Enchentes na Flórida. Norte e nordeste do Brasil sob chuvas constantes. Seca no sul do país. A velha e boa Terra está cansada: o ar contaminado, florestas em galopante destruição, geleiras derretendo e o mais sobre deterioração ambiental que todo mundo ouve e lê diariamente.
Dá pena ver o guia receber turistas em cidade do nordeste e sorrir amarelo dizendo: “bem-vindos à terra do Sol”. Fora do aeroporto nuvens negras e dias inteiros de chuva. Através da televisão e do rádio divulgam-se apelos para doações em prol dos flagelados, desta vez não pela seca, mas por inundações.
Imagens de rios com águas metros acima do normal, casas submersas e pessoas que perderam tudo compõem um quadro de profunda tristeza. A natureza se revolta e parece apontar o indicador em nossa direção dizendo: este é o meu último aviso.
Tardiamente – mas talvez em tempo – o presidente dos EUA exige a redução de gases lançados na atmosfera. Automóveis menores e com redução de consumo de combustíveis fósseis serão a norma para o futuro. A China está na mira do mundo: sua fenomenal industrialização é acompanhada por grandes emissões de poluentes atmosféricos que precisam ser controladas.
Tudo isso me vem à cabeça em meio a um atoleiro no Ceará. Em pé na beira de uma estrada intransitável, converso com um motorista local. Ele me conta sobre a chuva:
- O índice pluviométrico esperado para o mês de maio é o de 115 mm. Em doze dias tivemos 145 mmm.
Chuvas, enchentes, mudanças climáticas, atoleiros, ar por vezes irrespirável: os recados da Terra chegam a cada pessoa em circunstâncias diferentes. É preciso ouvi-la. Urgentemente.
A linguagem da sua tribo
É preciso estar ligado à linguagem da sua tribo. Esse é um princípio de integração. Sem atenção à linguagem tribal você está fora.
“Vai Carlos, vai ser gauche na vida” dizia Drummond numa de suas poesias. Pois não é difícil ser um permanente “gauche”: basta não estar em acordo com a linguagem da sua tribo.
Linguagem é um termo vago quando se refere a várias coisas. A primeira delas é a própria língua, melhor dizendo o papo utilizado pela tribo em que você momentaneamente está. Nesse caso as variações são enormes oscilando do famoso papo cabeça às conversas mais degradantes. Não dá certo usar a gíria de uma tribo quando se fala com outra e assim por diante. Fala-se de um jeito no mundo do trabalho, no mundo dos esportes, no mundo da família, no mundo dos bares etc.
Entretanto, nesse mundo absolutamente tribal é preciso que você defina com exatidão a tribo a que você pertence. Isso é muito importante porque dessa definição depende o seu modo de ser, o tipo de roupa que veste, a língua que fala, os contatos que faz, enfim a sua sociabilidade. Nada pior que um carinha achar-se descolado, falar como intelectual, usar roupa de punks e ser vegetariano, isso para ficar num só exemplo.
O restante dessa linha de raciocínio cada um pode deduzir através de atos simples, olhando-se no espelho, por exemplo.
Somos tribais? Somos, sim, índios, bons índios, metidos em ternos e gravatas, acredite cara-pálida.
As circunstâncias do horror
Pode ser difícil definir o horror, mas sabemos reconhecê-lo.
Os criminosos que invadiram uma casa num condomínio de luxo, interior de São Paulo, proporcionaram irretocável cena de horror. Durante o assalto, soou o alarme e a reação de um dos criminosos foi atirar em uma menina de oito anos de idade, que morreu.
Não foi um tiro ao acaso, motivado por susto ou outra razão. Também não se tratou de bala perdida: o criminoso atirou e matou porque decidiu agir desse modo, friamente.
Entretanto, o horror de ato tão bárbaro não se restringe à trágica cena do crime. O horror se espalha pelas mentes de outras crianças que moram no mesmo condomínio e nos colegas da escola até então freqüentada pela menina assassinada.
A psicanálise e matérias sucedâneas a ela ocupam-se da investigação de mentes criminosas. Há que se encontrar uma explicação que recoloque as coisas no lugar e faça o mundo girar normalmente em seu eixo, só assim talvez possamos dormir em paz.
Explicações à parte, a verdade é que o horror, tão difícil de definir, também não se explica: depois de consumado ele permanece em nossas cabeças, impregna as nossas sensações, abala a confiança na humanidade e a visão que temos do mundo. Talvez por isso não nos seja possível ignorar o caso da menina assassinada.