Arquivo para junho, 2009
Cidadãos Acima de Qualquer Suspeita
Em recente discurso o presidente do Senado, defendendo-se de acusações de nepotismo, alegou seu passado de honra e serviços prestados à República na qual, inclusive, ocupou a presidência. Discurso duro de quem acredita no que está falando e, mais que isso, sente-se justificado. A República deve a ele, portanto.
Em suma, o tom das palavras do presidente do Senado propõe-se a lembrar a nação que de não se está a acusar qualquer um: é a um ex-presidente que se está cobrando, a ele querem atingir maculando o seu passado.
Curiosamente o atual presidente da República logo em seguida veio a público referendar as palavras do presidente do Senado, conferindo a ele irrestrito apoio.
Existe, pois, entre nós uma hierarquia de erros e faltas ao que parece baseada em pelo menos dois critérios: o grau de gravidade das faltas e a importância da pessoa que as comete. Assim, faltas consideradas desimportantes dentro de contexto maior e cometidas por pessoas acima de qualquer suspeita não merecem qualquer tipo de reprovação.
No Brasil vigora uma lógica perversa de interpretação de fatos. Ao cidadão comum fica cada vez mais difícil discernir entre o certo e o errado. Episódios como esse envolvendo o presidente do Senado só contribuem para confundir ainda mais a noção de valores da população.
Para os mais velhos talvez seja mais fácil entender o que está acontecendo; aos mais jovens nada disso serve como exemplo de conduta.
O retorno de La Hoya
Ouço alguém que não gosta de boxe afirmar que se trata de esporte estúpido. Essa pessoa pergunta: já viu a cara do vencedor ao final da luta? E responde: o vencedor também está arrebentado, portanto não vejo sentido nisso.
Para quem tem a opinião acima não adianta dizer que o boxe é esporte cuja vitória depende unicamente de um só indivíduo envolvendo preparo físico, técnica, eficiência de golpes, ataque, defesa e muita violência. O público ama o boxe porque vê nele a figura do homem em superação, esforçando-se ao limite, apanhando, mas seguindo em frente e só desistindo quando um inesperado nocaute põe fim à luta. No boxe é o lado animal do homem que se expõe e talvez o fato de podermos observar a parcela de selvageria que nos fez vencer na escala evolutiva seja o principal atrativo nas lutas.
A busca da vitória a qualquer preço, a estratégia adotada, a elegância de movimentos e o inevitável derramamento de sangue são componentes figurativos do boxe que em parte nos devolvem o clima das arenas antigas, como as romanas nas quais gladiadores matavam-se entre si ou enfrentavam leões. O clima de desafio em que o homem é frontalmente colocado diante do perigo constituiu-se em atrativo para as multidões em todas as eras: as touradas atuais são remanescentes de esportes praticados por povos bárbaros do passado.
No boxe a figura do lutador reúne características que o convertem no representante do espectador diante de perigoso desafio. A ligação que se estabelece entre o homem que luta e o que o assiste é total. Alguém está lutando por nós, batendo por nós, apanhando por nós, sangrando por nós, conquistando por nós, atrevendo-se a limites talvez sonhados por nós. Ao lutador cabe alcançar a vitória tendo como recompensa a glória e, em certas condições, a riqueza. O reconhecimento de suas qualidades faz dele um ídolo. Talvez por isso seja tão difícil a muitos pugilistas encerrar definitivamente as suas carreiras, como aconteceu com Joe Louis.
Joe Louis (1914-81), grande campeão dos pesados durante dez anos, tem em seu cartel duas memoráveis lutas contra o alemão Max Schmelling. Na primeira Louis foi derrotado e o resultado dessa luta foi utilizado por Hitler para demonstrar a superioridade da raça ariana. Na segunda luta, travada m 1938, Louis venceu recuperando o título mundial. Depois disso abandonou os ringues, mas, dois anos depois, retornou sofrendo várias derrotas.
Os amantes do boxe estão habituados a ciclos de vitórias e derrotas, abandono de carreiras e retornos nem sempre felizes. Agora é anunciado o retorno aos ringues, aos 36 anos de idade, do ex-campeão mundial em seis categorias, Oscar de La Hoya, apelidado “The Golden Boy”. Os aficionados do esporte movimentam-se, surgem grandes expectativas e uma história de arte e violência talvez tão velha como o próprio homem renasce, apaixonando e atraindo multidões. Nos punhos de La Hoya estarão mais uma vez, caso retorne, as expectativas de milhões de torcedores, mantendo viva a esperança de superação que existe em cada um deles.
Desperte o lider que existe em você
Você nasceu para ser líder? Existem em você características que podem conduzi-lo à liderança? Não seria você, talvez, um talento perdido cerceado por dificuldades como falta de oportunidades ou de reconhecimento de suas qualidades pelos seus pares?
As respostas a essas perguntas podem estar em palestras ministradas sob patrocínio do conglomerado de empresas onde você trabalha. Nelas as suas qualidades e defeitos pessoais são esclarecidos por um palestrante contratado, talhado para traçar com humor um roteiro daquela que deve ser a sua atuação no mundo atual. É bom insistir: mundo atual, porque você pode estar perdido nalguma circunstância do passado, preso a um modo de pensar superado porque se tornou incapaz de ler ou visualizar os contornos da realidade que o cerca. O mundo, afirma o palestrante, já não é o dos seus avós, nem o de seus pais, nem mesmo o seu: é o mundo dos seus filhos, dividido em tribos cujas preferências indicam as tendências de consumo e o que está por vir. Ou quase isso.
Mas o mais interessante nessas palestras é a figura do palestrante. Ele sempre veste a roupagem do homem bem sucedido e faz questão de esclarecer isso, afinal só um vencedor pode ditar regras a quem deseja vencer.
Estamos, portanto, falando de um personagem preparado física e intelectualmente para o papel que desempenha. Proprietário de linguagem caracterizada pelo esmero de suas colocações o palestrante apresenta-se munido de arsenal de informações atualizadas sobre sucesso e fracasso de empresas de grande porte, falências, estratégias de marketing, campanhas publicitárias etc. Para cada tema abordado dispõe ele de variantes de tiradas de humor dentre as quais escolhe e utiliza as que mais possam sensibilizar o público de momento ao qual se dirige.
Celebra-se, assim, uma curiosa sessão de entretenimento na qual as verdades do mercado financeiro são como que atiradas sobre um público extasiado diante da fluidez da apresentação. Cobra-se a participação e aperfeiçoamento da platéia no sentido do sucesso de seus negócios. Nessas circunstâncias não há que se negar brilho ao palestrante: habituado a ser perfeito no que faz e protegido pela repetição de seu assunto frente a platéias diferentes, pouco sobra a ele em termos de criação bastando-lhe o desempenho de seu papel e os inevitáveis aplausos ao final.
Quando a palestra termina você se levanta convencido de que há muito a fazer na empresa onde atua. Está alegre porque ouviu alguém de talento e privou de tiradas realmente inteligentes, não faltando pitadas de humor negro. Entretanto, pesam-lhe mais os erros, aquilo que você deixou fazer que as suas virtudes. Assim, vai embora convicto de que será preciso adotar uma nova estratégia para trilhar o caminho que mude as coisas e talvez faça de você um verdadeiro líder.
Dia seguinte retorno ao trabalho, à realidade e limitações que lhe são impostas no dia-a-dia. Então talvez você prefira pensar que aquele brilhante palestrante não seja um ator de verdade porque o seu discurso não é arte como essa que se vê nas peças de teatro. Será do conflito entre a sua realidade e as propostas sedutoras que ouviu na palestra que poderá nascer o seu desgosto. Ou, ao contrário, o início de uma nova fase em sua vida na qual finalmente prevaleça o seu talento. Estará, assim, nascendo ou se fortificando o líder que existe em você.
Dê asas ao seu talento - ensina o palestrante.
O uso do Kistch na tragédia do AIRBUS
As causas do acidente acontecido com o vôo 447 da Air France talvez nunca venham a ser completamente elucidadas. Há que se fazer de tudo para descobrir os fatores desencadeantes da tragédia: explicações e prevenção de novos acidentes são mais que necessárias.
Enquanto aviões, navios e submarinos procuram corpos e destroços no mar o assunto continua palpitante, atraindo a atenção pública. Até aí tudo normal e dentro do esperado sobre um fato que causou enorme comoção pública.
O que não se entende é a necessidade de divulgação de certos detalhes que mais parecem veiculados para delimitar com precisão o quadro de horror vivido pelos passageiros em seus últimos instantes. Se existem razões para se divulgar a hipótese de que os passageiros teriam sido lançados no espaço não dá para entender a necessidade de detalhar o que daí por diante teria acontecido a eles. Descrições do avião se rompendo, corpos lançados no espaço, múltiplas fraturas e, ainda, cadáveres encontrados sem pernas e braços só servem para aumentar a dor de familiares e pessoas próximas aos acidentados.
Talvez pior que isso sejam algumas manifestações que circulam pela internet, manifestações de pesar é verdade, mas muitas vezes impróprias, quando não de extremo mau gosto.
Esse é o caso de uma exibição de slides na qual se faz a remontagem fotográfica dos últimos momentos de vida de um dos passageiros do vôo 447. O interessante é que é ele, o passageiro desaparecido, que nos fala descrevendo todos os acontecimentos ocorridos desde o início da malfadada viagem a Paris.
A narrativa começa com imagens do avião levantando vôo, segue com o avião entre as nuvens, os passageiros são mostrados sentados no avião e chega-se ao momento do desastre: então o céu se torna nublado, há raios e o avião se precipita. A imagem seguinte é a do mar que espera o avião que com ele vai colidir. A partir daí o narrador descreve a sua passagem para o outro mundo, suas impressões e o seu encontro com Jesus na placidez de um banco de jardim. Há também imagens da face do passageiro tendo como fundo a cidade de Paris que ele não chegou a conhecer porque morreu no acidente.
Que não me perdoe o idealizador dessa história não comovente, mas a sua boa vontade e solidariedade converteu-se num puro exercício de Kistch, enfim, de mau gosto.
- Existem limites, existem limites - repetia um filósofo cujo nome me escapa e que talvez nem tenha existido.
Da Ásia
Mulheres, cabeças protegidas por lenços negros, aguardam a vez para votar numa seção eleitoral. São velhas, são moças, são feias, são belas, todas sérias, algumas com os braços estendidos e tendo nas mãos pequenas carteiras.
A imagem vem de longe, da Ásia, de latitudes onde os costumes são muito diferentes:
- lá mulher que não usa o hijab(lenço) é perseguida;
- lá não existe igualdade de direitos no casamento;
- lá as mulheres têm dificuldades de acesso a universidades e a empregos;
- lá existe punição pelos crimes de honra e as mulheres podem ser apedrejadas.
Quem são essas mulheres flagradas por câmara fotográfica tão impertinente? A quem pertencem as faces que de repente correm o mundo estampadas nas páginas dos jornais?
Ora, são as mulheres de Teerã, com seus hijabs, protestando contra a poligamia e dizendo ao mundo que jamais foram tão perseguidas como no governo do presidente Ahmadinejad.
Ahmadinejad quer as mulheres na cozinha – protesta uma ativista.
Ahmadinejad ganhou as eleições de ontem e foi reeleito presidente do Irã.
Bichos de estimação
Podem ser de pelúcia, mas os vivos são os preferidos. Ele(a) e o(a) dono(a) são cara de um, focinho do outro. Pelo jeito e cara do cachorro adivinha-se como é o dono e vice-versa - isso quem me diz é pessoa muita entendida. Talvez isso explique as preferências das pessoas por diferentes raças de cães e assim por diante. Em relação a gatos a coisa é mais complicada: gatos são seres mais noturnos, ativos nas madrugadas, atalaias de telhados como muita gente gostaria de ser.
Nada contra os bichos. Na sociedade atual, excludente, na qual quase todas as relações tendem ao conflito motivado por várias razões, os bichos de estimação funcionam como uma espécie de salvação: eles ouvem calados, não respondem, devolvem afetos e passam muito bem por desinteressados. Aparentemente neles existe o amor verdadeiro, quando não aquela adoração de quem é capaz de dar a vida pelo dono.
E assim os bichos vão ocupando espaços deixados pelos humanos, daí a proliferação de negócios cada vez mais rendosos. Prova disso é a palavra “pet” que encabeça larga rede de atividades de natureza econômica.
Problemas? Só para pessoas próximas aos donos dos animais. Como dizia um filósofo popular, é o tipo da coisa: você conhece bem o amigo, quer-lhe um bem danado, mas de repente reconhece no animal de estimação dele a exacerbação das suas chatices pessoais. É como se no animal se aprofundassem as idiossincrasias do dono. Ou coisa parecida, os psicólogos talvez expliquem melhor.
Tem mais: bichinho bonitinho é bonitinho mesmo para o dono; caso aliás muito parecido com o de algumas crianças, tão lindas para os pais, mas frequentemente chatinhas para outras pessoas.
Quem não concordar que atire a primeira pedra.
Abaixo o Telemarketing
Pois é, ninguém está a salvo. De quê? Ora, do telemarketing. Mas não é verdade que agora o cidadão pode se cadastrar e impedir as ligações de venda de produtos? É sim, mas como se faz isso mesmo?
Há vários problemas com o telemarketing. Para mim, o pior deles é a hora das ligações. Você pode receber uma ligação a qualquer momento, às vezes em ocasiões muito impróprias. Exemplo: dia dos namorados, você está com sua mulher num ótimo restaurante, arranjou mesa num canto aconchegante, acertou na escolha do vinho e o pianista simplesmente é o cara, demais mesmo. Ele está arrepiando num tango de Piazzola e aí… aí o celular toca. Você mete a mão no bolso, rosnando porque se esqueceu de desligar o maldito, pensa em não atender, mas pode ser importante. Quando atende, a mocinha de uma companhia de telefones diz o seu nome e começa a oferecer novos serviços que farão de você um usuário mais feliz.
Não adianta ser mal educado, quebrar o telefone etc. Nada do que possa fazer restitui o momento em que você temporariamente alienou-se do mundo, deixando-se levar em embalos de puro prazer. A interferência mudou o canal das suas impressões, devolveu os seus pés ao chão. O vinho já não tem o mesmo paladar, a música parece distante e sua mulher vai precisar fazer o máximo para que você recupere o seu bom humor.
Tudo isso por causa de uns “rings”, da moça que ganha o seu sustento ligando para os outros na hora errada, da briga intestina entre as companhias telefônicas que querem a todo custo seduzi-lo com seus serviços.
Por isso, atenção: não quero torpedos, bazucadas ou o que seja, nem WAP, nem internet pelo telefone. Sou contra ouvir MP3 pelo telefone, não tenho interesse em enviar fotos. O que quero é o meu telefone para fazer as minhas ligações e receber outras de pessoas que realmente precisam falar comigo. E, antes que me esqueça, abaixo o telemarketing.
Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG
A Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto acaba de ser escolhida como uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo. A eleição envolveu 27 monumentos e a escolha foi feita por 237 mil pessoas, de diferentes países, que votaram através da internet.
A Igreja de São Francisco de Assis é um monumento barroco de Minas Gerais. O barroco é um estilo artístico surgido na Itália, em fins do século XVI, que se disseminou pelo mundo nos dois séculos seguintes. Ele também representa a manifestação artística da Contra-Reforma, movimento de reação da Igreja Católica contra a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero. A idéia era a produção de templos e imagens que infundissem maior religiosidade nos fiéis.
Não cabe à extensão desses comentários uma investigação mais profunda do barroco, recomendando-se aos interessados a leitura de livros sobre o assunto, em particular os que analisam o barroco mineiro. De qualquer modo vale lembrar que o barroco é uma forma de arte que busca o envolvimento completo do observador. Esmerando-se em detalhes, abusando da policromia e da talha dourada os artistas barrocos alcançam efeitos visuais complexos. Nas igrejas barrocas são encontradas não só imagens sagradas, mas uma profusão de símbolos que se dispõem entre colunas em geral retorcidas tais como cachos de uvas, folhas de acanto, aves, representações de animais e plantas, anjos etc. Não só a arte escultórica é utilizada: também o é a pintura à qual se devem os magníficos tetos de igrejas nos quais predominam perspectivas ilusionistas.
Uma das variantes do barroco é o rococó no qual predominam as linhas curvas, uma simplificação geral da estrutura e certo predomínio do vazio sobre o cheio, isto é, deixa de haver excesso de ornamentos que passam a ser mais harmonizados, simples e claros.
Incorpora o estilo rococó a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, edificada em pedra. Nessa igreja trabalharam o notável artista Antonio Francisco Lisboa, cognominado “Aleijadinho” e Manuel da Costa Ataíde, realizador da pintura do teto da nave. A obra de Mestre Ataíde busca dar a impressão de que o teto se projeta para o céu mostrando Nossa Senhora da Porciúncula sendo homenageada por uma revoada de anjos.
Externamente a Igreja apresenta rara beleza: sua fachada não é reta dado que possui duas torres cilíndricas recuadas. Sua portada, esculpida em alto-relevo com pedra-sabão pelo Aleijadinho, é encimada por um frontão que apóia a cruz de Lorena. No interior da igreja destacam-se obras do Aleijadinho: os trabalhos da capela-mor, os púlpitos em pedra-sabão e, na sacristia, o chafariz. O altar-mor é magnífico: no alto, a representação da Santíssima Trindade em alto-relevo; na parte superior do trono central a imagem de Nossa Senhora e, pouco abaixo, a de São Francisco de Assis empunhando uma cruz.
Ouro Preto com suas belezas setecentistas é roteiro cultural obrigatório. Cada pessoa tem suas preferências em matéria de igrejas e santos. Quanto a mim, desde sempre elegi a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto como a minha predileta. Não é só a maravilha estética que me atrai nesse templo: existe nele uma energia positiva, algo maior que as mãos de grandes artistas aprisionaram num pequeno espaço, alguma coisa além dos badalos de seus formosos sinos, talvez a única efêmera sensação de eternidade que possamos desfrutar no mundo em que vivemos.
Paisagem de fim do mundo
Após o retorno de um amigo de viagem ao Paraguai perguntei a ele sobre aquele país. Respondeu-me que se trata de outra realidade na qual o capitalismo esmerou-se em desigualdades. Segundo ele, mesmo na capital as diferenças sociais são muito visíveis sendo que no geral, predomina a pobreza.
É verdade que esses comentários se aplicam às cidades latino-americanas em geral. Não será São Paulo um típico exemplo da multiplicidade étnica brasileira acompanhada dos comemorativos pertinentes às diferentes categorias sociais? Claro está que a diferença reside na grandiosidade de uma cidade como São Paulo onde a riqueza de grandes avenidas e prédios como que suborna os nossos sentidos fazendo-nos olvidar a pobreza reinante nas periferias. Isso representa que as impressões sobre cidades dependem de certa concentração de magnitude e riqueza a encobrir todo o restante, inclusive os imensos problemas enfrentados pelas populações em seu dia-a-dia. Creio que a cidade de Maceió exemplifica muito bem esta última afirmação: a poucos metros de sua belíssima e rica orla marítima existem bairros com outras características, mais pobres e violentos. É como se a muralha de prédios defronte ao mar separasse dois mundos.
Por outro lado, é preciso lembrar que existem olhos de turistas e olhos de moradores de cidades. Não há como se negar que a beleza pode sucumbir ao hábito. O turista que vê o Rio de Janeiro pela primeira vez apaixona-se para sempre, dominado pela beleza natural da cidade. Aos habitantes que desfrutam diariamente do painel visual que lhes oferece o Rio talvez escape pelo menos parte da grande beleza, forçados que são ao hábito de presenciá-las.
Essas considerações algo desarrumadas e vagamente ligadas a aspectos urbanísticos foram despertadas, como disse no princípio, pelos comentários de um amigo sobre o Paraguai. Tais comentários também me levaram a um exercício de memória sobre viagem que fiz, há alguns anos, ao país vizinho cujo povo é muito receptivo e amigo dos brasileiros. Estava eu em Assunção e, nada tendo a fazer, resolvi participar de excursão ao interior para visitar “o lago azul de Ypacarai” de que nos fala a bela música de Zulema de Mirkin e Demetrio Ortíz. Naquela ocasião, a decepção não foi o fato do lago não ser azul; o verdadeiro problema foi o trajeto, de cerca de 50 Km, durante o qual pude presenciar realidade diferente dos quadros de pobreza a que estamos habituados.
Ressalte-se, entretanto, que meu espanto não se deveu à pobreza em si, mas às suas características. Refiro-me ao fato de o Paraguai ser o paraíso de eletrônicos e toda sorte de produtos importados. Pois bem, durante o trajeto para Ypacarai viam-se restos de materiais produzidos pelos países industrializados os quais eram utilizados pela população. Jamais me esquecerei de uma casa pela qual passamos e que tinha, em lugar de uma de suas paredes, enorme placa metálica de propaganda dos cigarros Malboro. Ali estava, naqueles ermos, o sorridente cowboy fumando um Malboro, amassado e desbotado, mas patenteando a presença da indústria norte-americana em seu momento de deterioração. À frente do cowboy, agora transformado em parte integrante de uma casa, um pouco de mato, o chão de terra, um poço e duas crianças seminuas olhando-nos de longe.
Ainda hoje me pergunto por que diabos não fotografei aquela imagem aterradora. Lembro-me de ter pensado que se um dia o mundo acabasse as paisagens seriam como aquela; que nenhum filme, a despeito de seus efeitos especiais, conseguiria reproduzir com tal precisão o colapso final da nossa civilização. Era aquela, de fato, uma paisagem de fim do mundo.
Tragédia do Airbus: entre o público e o privado
O acidente ocorrido com o vôo AF 447, na rota Rio de Janeiro-Paris, suscita questões relacionadas às esferas pública e privada. Exemplo disso são as recentes declarações de um ministro de Estado brasileiro sobre o acidente: de um lado o ministro no exercício de sua função pública proferindo, em nome do Estado, palavras consideradas infelizes; de outro o contexto privado de vítimas do acidente e seus familiares.
Danièlle Sallenave escreve no “Le Monde” sobre esse assunto. Para a escritora francesa a homenagem nacional aos mortos, prestada na Catedral de Notre Dame e com a presença do Presidente da República, foi inoportuna. Sallenave não nega a extrema comoção gerada pelo desastre, a necessidade de compaixão pelas vítimas e conforto às famílias num momento de grande dor. Entretanto, entende que o acontecimento pertence à esfera do mundo privado daí inexistirem razões para a participação do Estado.
É para a confusão entre as esferas pública e privada que Sallenave chama a nossa atenção perguntando-se sobre a razão de ser do evento de vez que homenagens visam “manifestar a alguém seu respeito, sua deferência, por seu mérito, seu espírito de sacrifício, as qualidades iminentes que se mostrou, por exemplo, na realização de uma ação em vista do bem público”. E esse não é o caso quando da ocorrência de acidentes aéreos com vítimas.
Não para aí a articulista: para ela outro grande erro foi o de tratar-se de cerimônia religiosa assistida pelo chefe de Estado francês. Sendo ele o presidente de todos os franceses independentemente de suas religiões e governando um Estado laico não pode participar, enquanto mandatário, de cerimônia religiosa. Poderia, sim, mas como cidadão privado.
O texto de Sallenave é inquietante. Sem negar a coerência de seus argumentos fica-se com a impressão de que é exigente em demasia quando o tema é a comoção pública. Obviamente aqui, no outro lado do Atlântico, as coisas são vistas de modo um pouco diferente, talvez com maleabilidade exagerada quando comparada ao modo de ver de outros povos.
Creio que, no Brasil, dificilmente um articulista escreveria algo parecido com o texto de Sallenave: a leitura de uma homenagem aos acidentados, religiosa ou não, ficaria dentro dos limites da compaixão, da solidariedade, naquele “tudo o que podemos fazer” para abrandar a rude dor que se abate sobre as famílias dos acidentados. Certo ou errado, constitucional ou não, é assim.
Questão de temperamento, cultural talvez. Ainda assim, não se pode negar que as afirmações de Danièlle Sallenave dão muito que pensar.