Arquivo para junho, 2009
Abaixo os feiticeiros
Para quem não sabe, Gâmbia fica na África Ocidental e tem população de 1,7 milhão de habitantes. O país faz fronteira com o Senegal e, a oeste, seu litoral é banhado pelas águas do Atlântico. É para as praias dessa região que se destinam, anualmente, turistas europeus.
O regime político de Gâmbia é o presidencialismo. O atual presidente é o Dr. Al-Haji Yahya Jammeh, ditador que não perdoa adversários políticos a quem persegue, tortura, manda prender e, em muitos casos, faz desaparecer. O modo especial de ser do presidente inclui medidas incomuns como a ameaça de decapitar gays e outras consideradas absurdas. Não é homem dado a amenidades.
Gâmbia é o menor país da África, raramente despertando interesse da opinião internacional. Agora o The New York Times publica notícia sobre as atividades do ditador Jammeh que tem se dedicado à perseguição de feiticeiros os quais, em sua opinião, estão prejudicando o país. É assim que gambianos têm sido retirados de suas aldeias sendo obrigados a ingerir um estranho líquido malcheiroso que causa alucinações, dores e, em alguns casos a morte. Trata-se, portanto, de uma campanha para eliminar a bruxaria. O governo nega, mas testemunhas confirmam a perseguição.
O caso, por si só insólito, também chama a atenção por quebrar a conhecida regra de boas relações entre políticos, feiticeiros e videntes, observada mundo afora. Em nosso país, por exemplo, existem - e existiram - políticos que se aconselham com oráculos de plantão, os quais não raramente os auxiliam na tomada de decisões. Aliás, banhos protetores, rezas, trabalhos e consultas a búzios e cartas de tarô fazem parte de um arsenal que acompanha a vida de muitos brasileiros, povo muito inclinado a sincretismos religiosos.
Vai daí que em relação a Gâmbia, país em que, segundo o Times, o presidente manda tratar a AIDS com ervas e bananas, soa muito estranha essa perseguição aos feiticeiros. Talvez o Dr. Jammeh tenha notícia de que os bruxos estejam unindo esforços sobrenaturais para apeá-lo do poder. De qualquer modo, que fiquem tranqüilos os feiticeiros do Brasil: a moda de perseguição a eles aqui não pega, de jeito nenhum.
Charles Baudelaire
A minha primeira experiência com as “Flores do Mal”, de Charles Baudelaire (1821-1867), deu-se por volta de meus quinze anos de idade. Havia em casa de meus pais uma pequena biblioteca composta por livros que vinham desde a década de 1920, adquiridos por pessoas da família. Biblioteca de outro tempo com obras hoje consideradas raras, algumas das quais tive a sorte de salvar de tragédias familiares futuras: o destino dos livros em geral liga-se ao de seus proprietários cabendo-lhes, como parte do espólio, os impactos de mudanças, separações, incêndios, fenômenos atmosféricos etc.
Pois me lembro perfeitamente de meu primeiro encontro com as “Flores do Mal”. Na verdade foi um encontro com o livro “Flores das Flores do Mal”, uma edição de 1944 publicada pela Livraria José Olympio, com tradução do poeta Guilherme de Almeida. Não sou capaz de descrever o meu espanto ao ler poesias como “Uma Carniça”, “As Litanias de Satã”, “Spleen” e outras. Terá sido esta ocasião a primeira em que fui atingido pelo verdadeiro impacto da modernidade àquela altura já antiga porque Baudelaire publicara “As Flores do Mal” em 1857. Eram 100 poemas que valeram ao poeta acusações de blasfêmia e obscenidade feitas pelo governo imperial francês. O Segundo Império de Napoleão III pisava em ovos quanto ao perigo de censurar uma obra literária mas impunha-se colocar um freio à libertinagem. Baudelaire foi condenado a pagar uma multa de 300 francos e retirar de seu livro seis poemas considerados eróticos.
Há de tudo em “As Flores do Mal”. O poeta que domina as regras formais do poema esmera-se em metáforas chocantes provocando, intencionalmente, espanto e repulsa. É a subversão da ordem, a corporificação dos contrastes, a lembrança de que o belo é passageiro e seu destino é a corrosão pelos vermes. Assim, há beleza e horror plasmados no casal que, em sua carruagem defronta-se com a podridão de um cadáver animal que, à beira da estrada, se decompõe:
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações
…..
- E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim! tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
(Versos de “Uma Carniça” – Tradução de Guilherme de Almeida)
Sexo, drogas, prostituição, decomposição, seres errantes, álcool: a poesia de Charles Baudelaire é a do observador atento que flagra o efêmero durante suas andanças. É o homem diante circunstâncias absurdas que o poeta desnuda, obediente à métrica da construção de sonetos, mas interessado numa outra forma de apresentação que subverte a arte romântica.
Não sem razão o grande poeta Charles Baudelaire é considerado, por muitos críticos, o primeiro entre os modernos. Ainda hoje o contato com “As Flores do Mal” é arrepiante. Exemplares de “As Flores do Mal”, de diferentes tradutores, podem ser encontrados nas livrarias.
Livro: O Crime do Restaurante Chinês
São grandes as contribuições do Prof. Boris Fausto ao estudo da História do Brasil. Ao longo dos anos tem ele assinado obras de vulto que, além de seu valor intrínseco, revelam-se de grande utilidade a estudantes e pesquisadores em geral.
A mais recente publicação do Prof. Boris Fausto é o livro “O Crime do Restaurante Chinês” –Ed. Companhia das Letras, 2009 - cujo tema é o assassinato, a pauladas, de quatro pessoas – um chinês dono de restaurante, sua mulher e dois de seus empregados. O crime aconteceu na madrugada da quarta-feira de cinzas de 1938.
É de se imaginar a repercussão e o interesse despertado na população da cidade de São Paulo de então por crime tão bárbaro que, a princípio, não se sabia praticado por um ou mais criminosos. Supondo-se que fosse apenas um, desconheciam-se os móveis do assassino e não se fazia a menor idéia de sua identidade.
É dentro desse universo que se move o Prof. Boris Fausto, estendendo os tentáculos de sua pesquisa às notícias publicadas em jornais, relatórios policiais e sucessos ocorridos no Tribunal do Júri.
O livro é precedido por uma “Breve Explicação” na qual o Autor avisa-nos que seu trabalho é uma forma de fazer história denominada “micro-história” cujos misteres são: a redução da escala de observação do historiador permitindo apreciações que lhe escapam nas análises de grandes quadros; ouvir a voz de pessoas comuns; de fatos tidos como corriqueiros extrair dimensão sociocultural relevante; apelar para o recurso da narrativa; e situar-se no terreno da história apoiando-se nas fontes, delimitando-se, assim, claramente a obra ficcional.
É munido de tais premissas, fornecidas pelo Autor, que o leitor passa à Introdução na qual se narra o crime e seus desdobramentos. As circunstâncias do crime, o tom de dúvida quanto à sua autoria, a descrição factual e principalmente a forma de narrar nos conduz, inevitavelmente, à pergunta: está-se no terreno da história ou no de uma obra ficcional baseada em fato real?
A dúvida é pertinente. Desde logo se percebe que o Autor aventurou-se em solo movediço que sepulta, indiscriminadamente, fatos reais e fatos narrados ficcionalmente. Historiador por ofício socorre-se o Autor com farta documentação que só a pesquisa acurada logra fornecer. É assim que nos é dado acompanhar o carnaval de 1938, corso e fantasias, e a Copa do Mundo acontecida no mesmo ano. O Autor não nos apresenta esses fatos gratuitamente dado que funcionam como peças de enredo maior com o qual se relacionam. São os homens de uma cidade que já não existe, o seu modo de ser e agir que nos são devolvidos em flashes nos quais o passado nos ajuda a compreender o presente.
Há muito de romance histórico neste livro de história. Vez por outra, ao longo dos capítulos sente-se que embora o historiador que nos fala não tenha como objeto o passado – o qual apenas interroga – delicia-se com ele. Algo de memorialismo perpassa a narrativa gerando fecunda contradição entre história e obra ficcional. Aliás, fala a favor dessa última o ambiente narrativo indubitavelmente calcado nos cânones da literatura policial: o historiador cede, não sem luta, ao fio condutor do suspense levando-nos até o final em busca de solução para o caso.
É, pois, o livro, talvez a despeito das intenções de seu Autor, obra híbrida que se lê com prazer, daquelas que não se larga antes da página final porque, a todo custo, quer-se um corolário para a narrativa. Também nesse sentido o Prof. Boris Fausto não nos decepciona. O último capítulo reserva-nos relato pungente e confessional. Restitui-nos um menino com seus sonhos e impressões os quais conferem sentido maior ao conteúdo que acabamos de ler. É aí que se apagam o historiador e o professor; surge o homem que fez uso das ferramentas da história para narrar, quase ao jeito de memorialista, os sucessos de mundo desfeito ao qual um dia pertenceu.
Essas breves considerações não pretendem abordar a riqueza temática apresentada pela obra na qual, como ilustra-nos o Autor, figuram o racismo, o funcionamento do aparelho policial e judiciário etc; intencionam elas apenas destacar o historiador com domínio completo de sua ciência no momento em que se reserva o prazer de utilizar a sua arte para contar uma boa história.
Ao Grande Oceano
Estás plenamente azul e absoluto em tua grandeza nesta manhã de sábado. Talvez por concessão deixa-nos embevecidos com a suavidade das pequenas ondas tingidas de prata que arremetes a terra.
Não é esta ocasião para demonstração da tua força, tu bem o sabes. Resolvestes isso talvez na madrugada: combinastes com o Sol as magnitudes do brilho que ele emprestaria às tuas águas, juntos fizeram esta manhã de incomparável beleza.
De onde vens? Em que latitudes correram as tuas águas? Que costas e arrecifes banharam elas que agora falsamente depõem armas e força aos meus pés?
Grande oceano, não me enganas com a tua simpatia e beleza; sei eu do teu poder. Conheço de longe a tua ira, as vagas imensas que alevantas, tragando tudo à tua frente, até mesmo as grandes embarcações. Conheço a tua história ainda antes do tempo em que concordastes em dividir teu espaço com a terra, deixando emergir os continentes. Conheço o teu poder de revolta, o perigo de que decidas de novo governar o planeta cobrindo os continentes com as tuas águas.
Grande oceano, confessa teus crimes. Dize-nos o que desejamos saber, restitui-nos os afogados de todas as épocas, os desaparecidos nas tuas profundezas, os que buscamos sem encontrar porque perdidos na tua imensidão.
Grande oceano: famílias choram os seus acidentados, celebram-se missas pelos ausentes; não brinques com a dor, revela-nos teu segredo, devolve a terra os corpos que a ela pertencem.
O problema do mal em Star Trek
Das muitas interfaces propostas pelo último Star Trek destaca-se a da prática do mal. Como em outras situações, no filme o mal fica por conta de um vilão qualificado para a execução de seus atos pérfidos.
Vilões constituem-se em parte fundamental de muitas das tramas que lemos ou assistimos. Vilões identificam-se com o mal que praticam, esmeram-se ao praticá-lo, demonstram prazer quando atingem seus objetivos e mostram-se insensíveis diante do sofrimento daqueles a quem ofendem. Só a necessidade de prevalência do bem explica o insucesso dos vilões na maioria das narrativas. A vitória do bem surge como acordo tácito para que nos sintamos bem e reconfortados após refregas nas quais o mal triunfou transitoriamente. A ordem é restabelecida e podemos dormir em paz, confiando na justiça.
Não por acaso em Star Trek o vilão chama-se Nero filiando-se à prole de incendiários gerada pelo imperador que colocou fogo em Roma. Para o exercício da maldade Nero serve-se de ferramentas absurdamente formidáveis como um mecanismo capaz de gerar buracos negros fazendo desaparecer planetas inteiros. É assim que os seis bilhões de habitantes do planeta Volcano desaparecem, após o que Nero prepara-se para fazer o mesmo com a Terra.
Entretanto, o odioso Nero tem lá as suas razões e nisso diferencia-se dos vilões que praticam o mal pelo simples impulso de praticá-lo: em outra época seu planeta – Romolus - foi tragado por um buraco negro graças a uma falha de Spok, um híbrido interplanetário filho de pai volcano e mãe terrestre. Bilhões de pessoas de Romulus desapareceram daí a vingança do vilão ao destruir o planeta Volcano, a terra de Spock. Contra Nero posiciona-se a Força Estelar da qual faz parte a nave Enterprise que tem entre os seus membros justamente o cientista Spock.
A personagem de Nero é construída com requintes de maldade necessários ao perfil de um vilão. Ódio, violência e intempestividade associam-se no vilão que captura, mas não mata Spock, mantendo-o vivo para que assista ao desaparecimento de Volcano.
Analisando-se o contexto da narrativa de Star Trek chega-se à conclusão de que Nero não corresponde ao que se espera de um vilão convincente. Se o ódio e a vingança guiam as suas ações, se ele faz desaparecer seis bilhões de volcanos, também é verdade que seus atos são precedidos pela grande catástrofe que eliminou todos os habitantes de Romolus. Seu sonho de reunir os poucos que restaram de sua raça e reconstituir a civilização onde um dia viveu não mais será possível. Resta-lhe a destruição, o exercício do mal de vez que, isolado e sem seu planeta, inexistem razões para a prática do bem, esse o perfil que a ele infundiram os seus criadores.
Star Trek estrutura-se em ritmo frenético. Os apaixonados por histórias em quadrinhos, séries e ficção científica gostarão muito do filme. Os avanços tecnológicos ainda não alcançados, viagens rapidíssimas através de dobras espaciais, naves imensas, armas poderosíssimas e mesmo os efeitos especiais utilizados harmonizam-se com a trama desenvolvida.
Star Trek é uma excelente diversão!
Trabalho Escravo
Falar em trabalho escravo na época atual soa incoerência. Acreditamos na civilização e somos ciosos de suas conquistas, uma delas a liberdade individual. No Brasil, a Princesa Isabel colocou ponto final na escravidão em 13 de maio de 1888. Os historiadores divergem quanto ao peso da Abolição sobre a derrocada do Império, mas isso não tem lá grande importância, pelo menos em termos de memória: o significado humano da Abolição é bem maior que o fim do Império.
A liberdade individual está garantida na Constituição, mas é desrespeitada. Estamos cansados de ouvir histórias sobre pessoas que trabalham em regiões distantes e tornam-se escravos porque são obrigados a comprar víveres de seus senhores a preços que os salários que percebem não podem pagar. O endividamento decorrente desse tipo de negócio não é nada retórico: obriga o trabalhador a produzir mais, endividando-se progressivamente até que sua dívida acumulada torna-se impagável. As narrativas sobre casos desse tipo são coincidentes: o trabalhador é levado a um lugar diferente do que prometeram a ele; não é preciso vigiá-lo porque não há como ir embora; sua dívida cresce e desconta-se com a própria liberdade.
Situações de escravidão podem acontecer bem mais perto do que podemos imaginar. É o caso desses vinte e nove trabalhadores que foram resgatados por fiscais recentemente numa cidade do Paraná, a 149 quilômetros de Curitiba. Homens dormindo em currais, banheiros sem higiene, água de córrego para beber, falta de equipamentos de proteção para o trabalho, ausência de registro em carteira, não recolhimento do Fundo de Garantia, pagamento diário pelos serviços prestados e a anotação dos gastos pessoais em cadernetas…
O parágrafo anterior reúne condições observadas pelos fiscais e que traduzem o desrespeito pelos seres humanos, obrigados a situações humilhantes das quais não conseguem se livrar e que podem ser caracterizadas como de tolhimento de suas liberdades individuais.
Trata-se, sim, de outra forma de escravidão, que aquela encerrada em 1888 na qual uma raça era punida com a subserviência. Mas continua a ser escravidão, exploração do homem pelo homem, daí ser inaceitável.
O VOO AF 447
Não há como passar ao largo das notícias sobre o acidente aéreo ocorrido dias trás com um avião da Air France. O assunto é tratado à exaustão em todos os meios de comunicação acrescentando-se, a cada hora, pronunciamentos sobre as razões do acidente, busca de sobreviventes, destroços e sinais captados por radares.
A pior parte de tudo isso acontece quando a até então massa indefinida de possíveis mortos começa a se personalizar. De repente, aqui e ali, os nomes de uma lista transformam-se em pessoas, vemos suas fotos e conhecidos falam sobre elas. Um casal viajava em férias, um engenheiro ia para receber um prêmio, um assessor de governo viajava a serviço e levava a esposa para a lua-de-mel que não puderam ter dois anos antes.
Devagar nos damos conta de que estão a falar sobre gente como nós e começamos a partilhar da dor dos parentes e amigos. O que de início figurava-se como acontecimento distante e que pouco tinha a ver com a nossa rotina atinge-nos mais fortemente e nos perguntamos o porquê disso tudo, e se alguém que amamos estivesse a bordo, e se tivesse acontecido comigo e assim por diante.
Em casos assim me assombram os tais últimos segundos, o curto e imenso período entre o desencadeamento da catástrofe e a consumação final da morte. Imagino a incredulidade diante do irreversível, talvez a esperança de que por milagre tudo volte ao normal, enfim as coisas que possivelmente passam pela cabeça das pessoas em seus instantes finais de vida, se é que lhes é dado um último momento de racionalidade em meio à catástrofe.
Mais de duzentas pessoas desaparecem para sempre, tragicamente. Acontecimentos dessa ordem depõem contra a noção que temos sobre a racionalidade do que fazemos. Mas a vida continua plena de inquietações que se renovam as quais, felizmente ou não, nos ajudarão a deixar para trás tão horrível tragédia.
Sobre o lamarckismo
Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) é o autor de teoria evolucionista que freqüentemente serve como motivo de pilhéria para os professores de Biologia. O problema é que Lamarck propôs a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos como motor da evolução, ou seja, da modificação das espécies. Segundo Lamarck, características adquiridas pelo uso e desuso dos órgãos seriam transmitidas à descendência. Por esse modo as girafas obrigadas a esticar os seus pescoços para conseguir alimento nas copas das árvores chegaram a ter o tamanho de pescoço que atualmente apresentam: a hipertrofia ocorrida em função do uso, em cada geração, transmitiu-se à descendência e gradualmente o pescoço aumentou de tamanho.
A teoria evolucionista de Charles Darwin (1808-1882) - aliada à posterior constatação de que apenas alterações do genoma em células da linhagem sexual podem ser transmitidas à descendência - sepultou as idéias de Lamarck. Entretanto, nos últimos tempos os estudos sobre o DNA têm modificado substancialmente os conhecimentos disponíveis na área de Biologia. Exemplo desse fato é que até poucos anos supunha-se que parte do material genético seria completamente inútil, espécie de lixo genético. Atualmente sabe-se que o tal lixo pode influir sobre o funcionamento de muitos genes e, mais que isso, que tais ações dependem de hábitos, circunstâncias, ou seja, de fatores ambientais. Além disso, as características adquiridas através desse mecanismo genético podem ser transmitidas à descendência. Isso explica, por exemplo, porque dois gêmeos univitelinos, geneticamente idênticos, podem diferenciar-se ao longo da vida em função de fatores ambientais que determinam mudanças em seus genes. Note-se que quanto mais jovens são esses gêmeos mais semelhantes são entre si; é o fato de viverem em ambientes diferentes que os diferencia, fato até hoje explicado apenas por mudanças físicas não transmissíveis à prole.
É ainda cedo para afirmar tudo isso categoricamente, mas vários experimentos nos levam a acreditar que certas características modificadas em razão de condicionamentos ambientais podem ser transmitidas à descendência. Ora, isso nos devolveria à Lamarck. É verdade que Lamarck propôs os seus princípios antes do nascimento da Biologia Molecular, mas não deixa de ser interessante o fato de que o seu pensamento, considerado errado a despeito da época em que foi proposto, possa de alguma forma vir a ser confirmado.
2014
“A Copa do Mundo é nossa, com o brasileiro não há quem possa” - cantava-se assim nas ruas após a magnética conquista de 58. Naquele mundo de 1958 ouviam-se as transmissões dos jogos pelo rádio. Através dele sabia-se das diabruras de Garrincha e comemoravam-se as fenomenais investidas de um novo jogador chamado Pelé. Um país e seu povo, ambos carentes de auto-afirmação, finalmente davam o troco no resto do mundo e isso com chutes de seus jogadores.
Agora o Brasil sediará a Copa de 2014. Saudosistas incorrigíveis, os brasileiros mais velhos sonharão com o fantasma de 1950: aquela bola do uruguaio Gighia passando pelo goleiro Barbosa e decretando a incrível vitória do Uruguai, em pleno Maracanã, está entre os fatos mais marcantes de nossa história.
Acontecerá de novo? Seremos campeões mundiais jogando em casa? Mais do que tudo talvez a vitória dependa do empenho dos jogadores, do compromisso de cada um com a sua nacionalidade. O fato é que, hoje em dia, a maioria dos nossos craques vive e joga no exterior, afastada de suas raízes. Fazer parte da seleção nacional é ganhar projeção aos olhos do mundo, valorizar o passe, ganhar mais dinheiro.
Talvez por essas razões não tenhamos visto o choro de nossos craques quando a seleção nacional foi eliminada na última Copa do Mundo. Para a maioria deles era só um jogo e nada mais. Choraram por eles as tristes bandeiras e os enfeites verde-amarelos nas portas das casas e ao longo das ruas das grandes cidades e vastos interiores do país. Choramos também nós, torcedores fanáticos, saudosos dos tempos em que, caso fosse preciso, um jogador morreria no campo em nome da camisa da seleção brasileira.