2009 julho at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para julho, 2009

My way

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Trata-se de um grande sucesso da música norte-americana na voz de Frank Sinatra. A letra fala sobre a vida de alguém que insiste em dizer que, adversidades à parte, fez as coisas “do seu jeito” ou, em primeira pessoa, “do meu jeito” (my way).

Há uma tradução de My Way para o português, interpretada pelo já falecido radialista Hélio Ribeiro que trabalhou em várias rádios brasileiras e, como narrador, em empresas cinematográficas como a Metro, a Paramount, a Universal e outras.

A gravação de “My Way” com Frank Sinatra e a voz de Hélio traduzindo as palavras do cantor é, até hoje, reproduzida em algumas rádios brasileiras, isso para a delícia dos inúmeros admiradores dessa versão.

Dias atrás ouvi no rádio do carro “My Way” e fiquei pensando no que teria acontecido com essa história de fazermos as coisas ao nosso modo ou do nosso jeito. Não será preciso uma pesquisa para constatar que a maioria das pessoas participa, nos dias atuais, de uma trama cada vez mais complexa de acontecimentos e situações que as obrigam a agir mais em função da expectativa da comunidade que as cerca do que como gostariam.

Dirão que sempre foi assim. Mesmo em família, quantas e quantas vezes aturamos situações que perduram e nos incomodam, relações e até relacionamentos mais próximos que nos impedem de simplesmente ser aquilo que realmente somos. Sem me estender na teoria das máscaras, o fato é que criamos versões de nós mesmos, às vezes diferentes de nossa identidade mais profunda, só para conviver, para não discutir, brigar etc. Existem máscaras disponíveis para tudo, para a vida a dois, para o mundo do trabalho, para os companheiros de churrasco etc. Aliás, coisa interessante é quando nos encontramos com algum conhecido em outro contexto, no qual não se pode representar bem o papel através do qual ele nos conhece.

Não é exagero. Atribuo cada vez mais o fato de deixarmos de ser nós mesmos e não fazermos coisas a nosso modo à velocidade das transformações observadas no cotidiano e à crescente cobrança da sociedade que exige perfis determinados e atuantes.

É desse modo perdemos o direito a ter as nossas esquisitices e exibir reações um tanto esdrúxulas antes vistas como interessantes e produto de personalidades eventualmente não alinhadas com aquilo que se considera de bom senso. É assim que o mundo vai perdendo muito de sua poesia, de conversas aparentemente sem sentido que tão bem fazem à alma. Reduz-se o universo da franqueza, das loucuras mansas, das liberdades apensas a certos individualismos inquietantes para quem com eles convive.

Certo que muitas vezes as coisas tendem para o insólito. Anos atrás estive, numa passagem de ano, em casa de amigos numa praia do nordeste. Reuniram-se ali várias pessoas conhecidas em festa genuinamente alegre e feliz. Tudo segundo os costumes da velha sociedade patriarcal: homens e um lado, mulheres de outro e assim por diante.

Entre os presentes se destacava um homem de cerca de 50 anos, grande dançarino de forró, tipo alegre, daqueles de trato fácil e que depressa nos faz amigos. Conversamos muito eu e ele. Mais tarde, comentei com a mulher dele sobre a excelência de seu parceiro de vida conjugal. Ela riu muito e me contou que ele era de fato ótimo, companheiro perfeito. Se tivesse que reclamar do marido seria só por um hábito dele: toda noite, após todos estarem deitados em sua casa, o marido se levantava e ia à cozinha para desligar a geladeira. Essa era a loucura dele, disse-me a mulher que, depois do marido dormir, religava a geladeira. Era aceito assim, fazia as coisas do seu jeito, dava asas à sua loucura mansa, inofensiva.

Convido as pessoas que leem este texto a refletir sobre o seu dia-a-dia. Que se perguntem sobre a liberdade de que dispõem para as suas esquisitices e idiossincrasias, enfim para ser eles mesmos, sem disfarces. Porque o importante é fazer as coisas “do meu jeito” como diz a música:

E pra que é um homem, o que ele tem
Se não ele mesmo, então ele não tem nada
Para dizer as coisas que ele sente de verdade
E não as palavras que ele deveria revelar
Os registros mostram que eu recebi as desgraças
E fiz do meu jeito.

Escrito por Ayrton Marcondes

31 julho, 2009 às 8:57 am

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Fotos Digitais

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De que o mundo das fotos digitais é fascinante não restam dúvidas. Hoje em dia você não precisa pensar muito antes do clique: se errar a sua máquina é dotada de memória que permite muitas outras tomadas, seguidas se quiser. Tem mais: o resultado é instantâneo. A telinha da sua máquina mostra a foto na hora e você tem até a opção de descartá-la caso não goste dela.

O grande problema de alguns avanços tecnológicos é que, por suas qualidades de interação com o usuário, são incorporados aos costumes como algo que existiu desde sempre. As múltiplas facilidades inerentes a eletrônicos de vários tipos, cada vez menores e portáteis, fazem deles produtos rotineiros e integrados aos hábitos das pessoas. Quem imagina um mundo sem computadores, sem o editor de texto que estou usando para escrever essas mal traçadas?

Outro dia em conversa com um jovem percebi certa dificuldade dele em compreender coisas ocorridas há algum tempo, quando não dispúnhamos das facilidades de hoje. Afirmar, por exemplo, que há poucos anos ligações só podiam ser realizadas a partir de telefones fixos causa tanta estranheza que mesmo nós talvez tenhamos nos esquecido disso.

O fato é que as coisas nem sempre foram assim e talvez em poucos anos possamos dizer o mesmo ao nos referirmos à época em que atualmente vivemos. Se ficarmos apenas no território das câmeras fotográficas, tanta coisa mudou que custa lembrar como tudo era muito diferente.

A primeira câmera boa que consegui comprar foi uma reflex da Assay Pentax, com objetiva intercambiável. Aquilo era o máximo. Claro que se usavam filmes coloridos de 12, 24 o 36 poses. A conhecida rotina iniciava-se com o ato de fotografar, a retirada do filme da máquina, a entrega do filme a um laboratório de revelação e o recebimento das fotos impressas, em geral dois ou três dias depois. Só aí se podia ver as fotos, mesmo as imprestáveis. Claro que existia a possibilidade da revelação ser feita num laboratório mais profissional. Nesse caso fazia-se um copião com miniaturas, escolhiam-se as fotos de interesse que depois eram impressas no tamanho desejado. Detalhe: nada disso ficava barato.

Tudo muito diferente desse mágico clique que grava a foto numa memória de vários megas na qual cabem, às vezes, centenas de fotos, todas observadas na hora em um pequeno monitor da própria máquina. Isso para não falar nas impressoras de fotos, de baixo custo. Com elas, em segundos, qualquer pessoa pode imprimir em casa as suas fotos sem perder tempo de levá-las a laboratórios de impressão.

Bem, para que lembrar o passado e falar sobre tecnologias superadas que não tem hoje grande interesse, exceto para alguns profissionais da área de fotografia? Ah, o problema é que o homem continua a ser o mesmo daí ter-se perdido alguma coisa referencial com tantas mudanças. Pois havia certo carisma na tecnologia ultrapassada. Não tirávamos foto à toa e de qualquer jeito, nem acumulávamos milhares delas sem saber bem o que fazer com elas. Havia, também, certo mistério e apreensão em relação às fotos porque não sabíamos de antemão se teriam ficado boas. Um aniversário, uma festa em família, uma viagem: e se as fotos não saíssem ou ficassem ruins? Mais: escolhíamos as boas entre as poucas e com que prazer as mostrávamos a outras pessoas.

As máquinas fotográficas digitais são práticas, excelentes e insubstituíveis. De tal forma são simples e úteis que afetaram o mistério da fotografia e com ele parte do prazer em fotografar. O automatismo das máquinas refreou o interesse e a inteligência aplicada a uma estimulante técnica de captura de momentos que não voltam.

Saudades de uma velha Rolley-Flex, modelo caixote, que emprestei a um amigo que nunca mais a devolveu…

Você talvez não concorde com nada disso e ache todo esse saudosismo pura besteira. É que você é um cara do futuro.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 julho, 2009 às 11:23 am

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Cinco Minutos

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São Paulo, Rua Oscar Freire, 11h22mm

De repente a chuva devolve à calçada outro menino, pouco maior, talvez 15 anos. Junta-se ao primeiro que se levanta, agora estão os dois em pé, postura de arremesso, dir-se-ia corredores com os músculos retesados, esperando o sinal de partida.

Terá 12 anos, não mais. Está sentado num canto da calçada, sob a beirada de um telhado, protegido da chuva.

Olhar vago, indefinido, roupa leve para o dia de frio, tênis sujo e o jeito escachado de quem não está nem aí.

Ninguém os vê: não são ninguém na atmosfera elegante da rua de lojas chiques, gentes de casacos compridos, sombrinhas coloridas, painéis de vidro esfumaçados de belezas complexas, atraentes. 

 Ficariam assim, imóveis, contidos, estatuária fora de lugar, talvez um requinte contrastante criado por artista interessado na gasta temática da luta de classes.

O que ninguém vê são os peitos arfando debaixo das camisas, os olhares precisos de aves predadoras prontas para a ação, a análise de todas as probabilidades e a natureza do impulso que de repente os move.

Agem rápido. A mulher mal tem tempo de curvar-se, a mão do menor traz a faca que corta a alça da bolsa, a mão do maior encarrega-se do empurrão.

Antes que a mulher chegue ao chão eles já vão longe, atletas repentinos deslizando no asfalto, nas faces estampada e alegria breve de uma vitória estranha e do imperfeito jeito de ser que tornou-se meio de vida.

São Paulo, Rua Oscar Freire, 11h27m

Os meninos desapareceram. Funcionários de uma loja ajudam a mulher a se levantar, dizem a ela que teve muita sorte, poderia ser pior, a vida na cidade é um perigo nos dias de hoje, Deus nos proteja.

Escrito por Ayrton Marcondes

29 julho, 2009 às 1:48 pm

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Pelo telefone

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Não se trata do maravilhoso samba sobre cuja autoria ainda hoje existem dúvidas embora o compositor Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos) o tenha registrado como seu. “Pelo Telefone” foi a primeira composição classificada como samba a ter sucesso. A gravação original, de 1917, é considerada o marco inicial da história fonográfica do samba.

Mas, infelizmente o assunto não é samba. O título se refere às ligações telefônicas nas quais um bandido avisa sobre sequestro e exige pagamento pelo resgate. Do outro lado da linha está alguém que, temendo o sequestro de um familiar, apavora-se e se dispõe a fazer o que é exigido pelo bandido.

O que impressiona nesse tipo de golpe são as circunstâncias em que ocorre. Em primeiro lugar está o fato de que, em geral, não há sequestro; segue que o marginal ao telefone na maioria das vezes está preso e tem um cúmplice encarregado de pegar o dinheiro; finalmente que, apesar de tratar-se de um golpe “manjado”, os envolvidos apavoram-se e se dispõem a fazer o que é exigido pelo marginal.

O que é revoltante: em primeiro lugar o fato de um preso em cadeia de segurança máxima conseguir praticar crimes via telefone; e a maldade com que o crime é praticado pela violência verbal utilizada.

O que escandaliza: o modo como os bandidos tratam esse tipo de extorsão,  aparentemente um simples negócio a ser realizado o mais depressa possível; e o caráter de uma operação que pode-se dizer vitoriosa porque continua a acontecer.

Tem-se, assim, um quadro deprimente sobre o qual ouvimos falar constantemente. Histórias de idosos que passam mal, de pessoas desesperadas que correm a bancos para retirar o pouco dinheiro que possuem e assim por diante.

Nos dois últimos dias um canal de televisão reproduziu em seus telejornais gravações nas quais presos intimidavam pessoas exigindo dinheiro. Num dos casos destacou-se a crueldade contra uma idosa que se sentiu muito mal durante a ligação do criminoso.

As gravações foram reproduzidas porque os criminosos responsáveis pelas ligações foram localizados. Eram três e já estavam encarcerados em presídio de segurança máxima. Um aparelho celular e um artefato para furar o bloqueio de ligações foram usados para a prática dos crimes.

Uma câmera de televisão deu um close na face dos três homens. Mostravam-se calmos, frios e insensíveis. Vendo-os, pincei da letra do samba “Pelo Telefone” apenas duas frases:

Tomara que tu apanhes

 Pra nunca mais fazer isso

Se o “apanhes” puder ser substituído por “fiques eternamente na prisão” a letra será perfeita.

As muitas faces do ódio

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O título parece nome de filme, mas não é. Muitas pessoas que se odeiam convivem diariamente, tantas vezes sem opção de separação.

As histórias são muitas. Conheci um velho senhor que odiava tenazmente a própria mulher, não sei se a recíproca era verdadeira.  Segundo ele me disse, seu erro foi não ter tido coragem de separar-se dela quando moço. Estavam velhos, dividindo o espaço de uma casa pequena, cada um com as suas rotas estudadas para não dar de cara com o outro. Não sei que fim levaram. Moravam numa travessa da Av.Brigadeiro Luís Antônio, numa casinha sufocada por prédios altos e cheios de gente. Eram como resquícios de outro tempo, outra cidade, afastados de tudo e consumindo-se no ódio.

O problema da vida é o varejo, o mundo das pequenas coisas que incomodam e se somam lentamente, quase imperceptivelmente até escaparem do controle. É a partir daí que a convivência chega ao patamar de insuportável.

Um cidadão com quem convivi era chefe de uma repartição estatal, lugar onde conheceu uma funcionária subalterna a ele, que seria a sua futura mulher. Amaram-se, casaram-se, tiveram filhos até que um dia deixaram de falar a mesma língua, isso para ficar no mínimo. Mas não se separaram. Depois disso ele passou a perseguir a esposa no trabalho. Fez isso metodicamente, durante anos, até que ambos se aposentaram. Gastaram a vida nisso, para desespero dos filhos que jamais entenderam porque, afinal, os dois viviam juntos.

Eu poderia ficar horas me lembrando de situações nas quais o ódio serviu como mola mestra para o desencadeamento de vidas desgraçadas. Quantos crimes não acontecem como consequência de situações determinadas pelo ódio de uma pessoa a outra?

Pois é justamente em função desse tipo de crimes que resolvi tocar no assunto. Na verdade dois fatos ocorridos no último fim-de-semana chamaram a minha atenção. O primeiro deles foi o caso de uma mulher simples que descobriu que o marido a traía. Sua vingança foi terrível: estava o marido dormindo no sofá quando ela jogou álcool em seu corpo e ateou fogo…

O outro acontecimento é tétrico: não aceitando o filho gerado pela mocinha com quem vive, um rapaz os espancava com frequência. Isso durou até ontem quando o rapaz quebrou o pescoço de seu filho de quatro meses de vida.

Vi na televisão imagens das pessoas envolvidas nos dois casos e não percebi nelas sinais de arrependimento. Pareciam ter resolvido seus problemas a seu modo, ainda que animalescamente. Foram as suas faces que me incomodaram pois as situações que exacerbaram o seu ódio pareciam justificá-las: num caso a traição; noutro a gravidez e o filho indesejados.

Escrito por Ayrton Marcondes

27 julho, 2009 às 3:14 pm

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Os 500 anos de João Calvino

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Assisti a uma missa de sétimo dia e fiquei impressionado com os rumos da celebração. Vieram-me imagens do barroco de Minas Gerais e a perseverança da antiga liturgia no interior daquele Estado. Quem duvida que vá a São João Del Rei e assista a missas na Igreja do Carmo ou na de São Francisco de Assis. Terá a impressão de que nada mudou, falta o latim, mas tudo se realiza em acordo com os velhos cerimoniais. Muito diferente de hoje quando a necessidade de atrair fiéis ou não perdê-los aproximou as cerimônias católicas dos rituais de outras igrejas e religiões.

Voltei para casa pensando na contra-reforma católica que nos rendeu a exuberância das igrejas de Minas. Representou ela a reação à reforma protestante de Martinho Lutero (1483-1546).  Lutero cobrava mais moralidade dentro do cristianismo. Rebelava-se contra a venda de indulgências para a construção da Basílica de São Pedro – elas serviriam para livrar os fiéis das penas do purgatório. Para ele a Igreja Católica corrompera-se e passara a manipular o problema do pecado. O papa vendia bênçãos, instituía favorecimentos para oferecer o perdão. Vendendo-se indulgências subornava-se Deus. Em outras palavras: a salvação poderia ser adquirida. Lutero propunha que a natureza pecaminosa do homem só pode ser redimida pela fé e não pela compra do perdão.

De Lutero a João Calvino (1509-1564). Calvino acreditava que a humanidade se perdera pelo pecado original, daí todos os humanos merecerem a condenação. Mais que isso: Deus predestinara ao pecado alguns homens enquanto outros foram destinados por Ele à salvação. De nada valeriam em termos de salvação, portanto, os esforços para o bem, as boas obras etc: Deus determinara antes o destino de cada um e ponto final. Eram sinais do favor de Deus aos seus eleitos uma vida materialmente próspera, com preponderância do trabalho e sem ostentações materiais. Calvino recomendava austeridade. O seu elogio ao trabalho e à economia foram, segundo o sociólogo Max Weber, as razões da simpatia da burguesia européia pelo calvinismo.

Agora estão sendo comemorados 500 anos do nascimento do reformador francês. E o calvinismo sobrevive justamente pelas suas recomendações ao trabalho e à economia. Isso é o se lê no jornal espanhol “El País” em sua edição de 18 de julho. Segundo o jornal, o primeiro-ministro da Holanda, Jan Peter Balkenende, calvinista, como também seu ministro das Finanças, o social-democrata Wouter Bos, e o ministro da Família e da Juventude, André Rouvoet -, o triunvirato que hoje governa em coalizão – apelaram para a austeridade como meio de resolver a crise econômica mundial.

O apelo do primeiro-ministro foi feito na homenagem aos 500 anos de Calvino. Segundo o político holandês a atual crise mundial é moral, foi provocada por fatores como a ganância e a preocupação com o dinheiro. Comportamentos distantes, portanto da recomendação calvinista de utilizar a liberdade individual em prol do bem-estar comum, deixando de lado as ostentações materiais.

Como se vê o calvinismo sobrevive 500 anos depois embora não diretamente ligado à religião, mas à necessidade de atitudes que se revertam em favor da humanidade. Isso quer dizer que a palavra chave para a solução dos muitos problemas que temos presenciado é austeridade.

Chuva e frio

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Sábado de manhã, chove e faz frio, você está debaixo das cobertas indeciso quanto a levantar-se ou não. De todo modo está bem acordado, não vai dormir mais e a cama está gostosa. Basta conseguir não pensar em nada para que a situação continue perfeita.

Mas é aí que você se lembra de que tem cabeça, dentro dela um cérebro formado por bilhões de neurônios interligados que adoram enviar, um ao outro, impulsos elétricos que viram pensamentos, memórias etc. De repente você imagina como seria bom bloquear essas transmissões, legal se o cérebro fosse como um rádio, uma televisão ou qualquer outro aparelho que pode ser desligado com o simples aperto um botão. O problema é que ao imaginar isso você já está pensando, daí concluir que a gente não para nunca de pensar, somos seres escravos do pensamento.

Já que não é possível parar, você passa a raciocinar sobre vantagens e desvantagens de uma lobotomia e acaba concluindo que o melhor é ficar como está, sofrendo de tanto pensar, mas consciente de si e do mundo que o cerca. Cirurgia na cabeça pode não dar certo: em “Um Estranho no Ninho” Jack Nicholson fez o papel de um interno de hospício que foi submetido a uma lobotomia e a coisa toda não acabou bem. Talvez você até permitisse que fizessem algo com a sua cabeça caso fosse possível atender a um pedido como aquele feito por uma personagem do Ignácio de Loyola Brandão: o sujeito foi a um Pronto Socorro exigir que apagassem a memória dele porque não queria mais se lembrar de nada.

E você? Também não quer se lembrar de nada? Nem das coisas boas? A pergunta fere fundo porque a vida anda tão complicada que as coisas boas são raras;  a última delas foi um favor inesperado que você recebeu de um desconhecido e rendeu uns bons trocados. Mas você não quer mesmo é se lembrar das contas a pagar, do colégio dos filhos, da sua mulher que se levantou bem antes e anda tão insatisfeita, do amor que vai cedendo lugar a discussões bestas e sem sentido, do pessoal da firma em que trabalha, do seu time do coração que só perde e deixa você tão irritado, do médico que dá ordens dizendo não coma isso e aquilo, do imposto de renda, da crise mundial,das multas de trânsito, do vazamento na cozinha, da velhice chegando, do medo de sofrer para morrer e de tanta coisa que você  evita pensar, mas já pensando.

Você pega o controle remoto no criado-mudo e imagina ser o Peter Sellers em “Muito Além do Jardim”, no papel de um jardineiro que nunca havia saído à rua e conhecia o mundo só pela televisão. Quando algo o incomodava, simplesmente mudava de canal. Um dia saiu de casa e, quando as coisas se complicaram, tirou o controle do bolso e clicou para mudar o canal da realidade. Mas não é possível desligar o mundo real, daí que você desiste e não liga a televisão. Então fecha os olhos, puxa as cobertas sobre a cabeça e fica assim, sozinho no escuro, escondido do mundo, deitado em posição fetal, sentindo-se de alguma forma protegido.

Chove e está frio. Você se lembra de um poema de Paul Verlaine que começa dizendo: “chove, que bom, ficaremos em casa” - e assim por diante. Então é assim, Paul Verlaine estava certo, é exatamente isso que você vai fazer hoje e pronto. Nada de se levantar, sair, enfiar a cara num mundo que insiste em afrontar as pessoas.

Você está recitando baixinho os versos do Verlaine, quieto debaixo das cobertas, a seu modo vingando-se de tudo com a negação da realidade em um dia de chuva . É quando a sua mulher entra no quarto e abre a janela. Ela traz uma bandeja com café, você repara que ela está muito bonita nesse dia tão frio e de chuva e no cuidado com que derrama o café na xícara. Depois ela se aproxima, dá um beijo na sua testa, diz bom dia e a vida já não parece tão ruim assim, dá até para adivinhar o que você pretende fazer daqui a pouco, assim que tomar um bom gole de café.

Questão de temperamento

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Existe gente de todo tipo. Diariamente você cruza com pessoas de latitudes diferentes. Há quem diga que tudo não passa de uma questão de gênio – nisso se apóiam e justificam-se os tais geniosos.

No fabuloso livro que é “Grande Sertão Veredas” Guimarães Rosa prende-nos a um emaranhando de histórias que se interligam através da desventura de Riobaldo. Dentre elas sempre me lembro aquela do Aleixo, um sujeito que criava num lago, perto de sua casa, uns peixes que comiam gente. De vez em quando o Aleixo arranjava alguém para dar de comida aos peixes. Um dia Deus puniu o Aleixo com um sarampão nos três filhos dele, que ficaram cegos.

Guimarães Rosa explica o temperamento do Aleixo dizendo que ele era homem de “ruindades calmas”. Tem muita gente que é capaz dessas ruindades calmas, você mesmo talvez conheça alguém assim.

Gente boa é que anda escasseando. Essa vida moderna (pós-moderna?) que joga todo mundo numa correria, competindo, não deixa muito espaço para que as pessoas se conheçam, nem mesmo para que se verifique o que há de bom em alguém - as primeiras impressões nem sempre são agradáveis (quantas pessoas têm sido simpáticas com você num primeiro contato?).

Temperamentos fortes são o diabo. O tipo esquentado invoca-se com pouco e adora uma diferençazinha. De coisa pequena faz grande. Pronto: está montado o palco para uma discussão que pode até passar dos limites. Esses caras são os que se transfiguram no trânsito, como aquela personagem de um desenho do Walt Disney que salva uma formiga, mas quando senta-se ao volante…

Os fede nem cheira vão vivendo com seu patrimônio amorfo de atitudes diante de tudo. São pessoas quase sempre retraídas, prontas para dar desconto mesmo a ofensas graves que recebam. Variantes deles são os que agüentam um montão até que explodem. Conheço um cidadão que agüentou horrores do patrão mal educado e só explodiu três dias antes de morrer, anos depois.

O bom do mundo é que a fauna humana é vasta e perecível. Existe gente para todos os gostos e ocasiões. O difícil é entendê-las porque em geral se recusam a falar a língua do outro. Sartre estava certo: o inferno são os outros.

O importante é que é preciso conviver e isso está ficando muito difícil. A boa regra de valorizar o lado bom, aceitar os defeitos dos outros e ser aceito nas mesmas condições nem sempre é valorizada. Veja alguns dos seus vizinhos de condomínio, aquelas pessoas simpáticas com quem você se encontra no elevador. Elas o cumprimentam com urbanidade e tudo vai bem até que você faça algum barulho, surja um vazamento no apartamento de baixo ou outra coisa qualquer.

Conheci pessoas que morreram de mal com tudo, a tal ponto que pareciam até mesmo desajeitadas dentro de seus caixões. Fui a enterros nos quais o melhor comentário que se ouviu sobre o morto foi aquele “enfim sossegou”, isso dito com algum alívio pela própria família.

Há quem acredite que as pessoas nascem para ser de um determinado jeito e assim serão por toda a vida. Não custa lembrá-las de que existem meios de amansar temperamentos e evoluir espiritualmente.

Ninguém é forte o bastante. Talvez por isso Hemingway tenha dito que a vida dobra qualquer um, mesmo aqueles que continuam fortes nas partes dobradas. 

Escrito por Ayrton Marcondes

24 julho, 2009 às 9:21 am

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Você nunca será um deles

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Recebo email de um rapaz que não conheço - ele diz ter 19 anos - perguntando-me o porquê da minha omissão, em certos textos, do nome de pessoas envolvidas em algum tipo de acontecimento.

 A resposta, meu caro, relaciona-se com a distância das fontes de informação. Eu, você e quase todo mundo somos receptores finais de notícias. Estamos bem longe das fontes e dificilmente temos acesso direto a elas. Isso quer dizer que temos que tomar muito cuidado com as nossas opiniões porque a maioria delas fundamenta-se em algo que alguém nos relatou segundo o ponto de vista dela, ou seja, o modo como recebeu a notícia em primeira ou segunda mão, a sua interpretação e o jeito que escolheu para passá-la adiante. Claro que isso deixa de ser verdade quando temos acesso mais direto aos fatos.

Sei que é meio triste constatar isso, mas o fato é que muitas das nossas opiniões correm o risco de ser mediadas por relatos de outras pessoas que souberam primeiro e fizeram matérias sobre um assunto que chegou até nós. É nessas circunstâncias que bandidos às vezes viram heróis e heróis natos passam a ser abominados. Obviamente, esperamos, sempre, que o cidadão que nos serve como intermediário na veiculação de notícias seja fidedigno, um cara honrado e que não está aí para fazer a cabeça de ninguém. Mas, tanta gente nesse mundo peca pela arte que…

Então é assim: o melhor é em determinadas situações ficar apenas nas impressões que nos provocaram certos acontecimentos e omitir os nomes dos participantes dado que não é impossível que se cometa alguma injustiça. Salvam-se desse modo de agir alguns comportamentos por demais categóricos que não sugerem outra visão que não a da realidade de fatos se impõem. Serve como exemplo a atual crise do Senado e a incrível demanda de notícias desairosas que correm sobre o seu atual presidente.

De todo jeito, quem escreve deve temer a injustiça contra pessoas por mais que eu entenda que não vim a esse mundo para fazer justiça ou ser justiceiro. Trata-se apenas de um amor cego pela verdade que é a única coisa que prevalece no final das contas. Semana passada, por exemplo, vi numa coluna social – as tais onde os ricos desfilam e que bom para eles que seja assim – pessoas que me pareceram intrusas a um cenário de festa glamorosa. Pelo amor de Deus, não é que não tivessem o direito de estar ali, afinal a noção de igualdade está entranhada na cabeça de todos nós, vejam-se os lemas da saudosa Revolução Francesa.  Então qual era o problema, o que de fato me incomodou? Pois foi o passado daquelas pessoas fotografadas em meio àquela riqueza toda. Eram elas oriundas de grandes movimentos sindicais, gente que jurou dogmas agora abandonados, pessoas atualmente aliadas àqueles que combateram durante quase toda a vida até que o poder- sempre ele - influiu dramaticamente sobre as suas convicções.

Então eu vi as fotos e tive a sensação, talvez errada e absurda, de que alguma coisa estava fora do lugar. Fiquei dividido, refleti, revi meus conceitos, acusei-me de preconceito e só depois voltei a ver as fotos: nem assim me livrei da impressão anterior.

Daí que estava revendo as tais fotos o jornal e me veio à cabeça o título de um dos livros do grande jornalista Joel Silveira chamado “Você nunca será um deles”. Fiquei com o título na cabeça e nada mais tenho a dizer sobre esse assunto.

Acho que essa história de pessoas em contexto aparentemente errado explica porque às vezes é melhor omitir nomes em algumas coisas que escrevemos.

Ritos de passagem

com um comentário

Fico meio em dúvida com o título acima. Afinal ritos de passagem referem-se a momentos de grande importância na vida das pessoas. Para o meu tema melhor seria talvez falar em algo mais indefinido, mas ligado à idéia de atravessar grandes obstáculos. Assim me parece porque sempre compreendi certos momentos mais como uma travessia de fronteiras consideradas inatingíveis para um homem que, de repente, são vencidas.

Pode parecer estranho, mas a vitória de Muhamed Ali sobre George Foreman no célebre combate realizado no Zaire, em 1974, ficou para mim como um desses momentos em que um homem liberta-se de todas as amarras e nada pode segurá-lo. Foreman era fortíssimo e 25 anos mais novo que Ali. Quase dava pena ver Ali sentado nas cordas, apanhando daquele jeito. Até que no oitavo round Ali saiu das cordas e nocauteou Foreman. É difícil descrever o que se passou em seguida. Na época eu morava num pequeno apartamento em São Paulo. Assim que Foreman caiu, saí da frente da televisão preto-e-branco e corri até a janela. Eram duas horas da manhã e vi inúmeras outras janelas abertas com pessoas gritando, como se elas tivessem vencido um enorme obstáculo. Ali tinha “atravessado” e muita gente com ele..

Não restam dúvidas de que a maior travessia que presenciei foi aquela na qual os astronautas da Appolo-11 pisaram em solo lunar. Eu estava numa pequena cidade do interior e vi as imagens pela televisão justamente no momento em que Neil Armstrong imprimiu a marca de seu calçado no solo lunar. Não me lembro bem de todas as pessoas que estavam comigo naquele instante, mas vi gente chorando. Um senhor, ex-feitor de fazendas de eucalipto no Vale do Paraíba lá pelos anos 30, negou-se a acreditar e disse bem alto que aquilo era coisa do cinema norte-americano. Aliás, esse senhor que veio a morrer antes dos anos 70 não chegou a compreender as radicais mudanças do mundo ocorridas durante os últimos anos de sua vida. Quando seu ex-patrão ou algum dos seus descendentes vendeu o prédio que era a sede do império Matarazzo, o então velhinho chorou na minha frente o fim de uma era de ouro da qual fizera parte como obscuro coadjuvante.

Quanto a mim, ainda me emociono um pouco com essa história toda de conquista da Lua. Não me importa que naquela época os EUA estivessem travando uma corrida espacial com a antiga União Soviética, nem aquela lengalenga a respeito de derrotar o comunismo. Ficou que um homem, um de nós, atravessara o espaço impossível. Isso era e continua sendo muito, ainda agora quando se comemoram os 40 anos anos desde aquele 20 de julho de 1969 em que astronautas chegaram ao satélite que embeleza as nossas noites.

Talvez atualmente o feito não pareça nem um pouco espetacular; ainda assim, considero o episódio de 1964 como um rito de passagem da espécie humana.