Arquivo para agosto, 2009
Fotos antigas
Elas estão dentro de um envelope, numa gaveta esperando por você. Com o tempo tornaram-se amareladas, muitas delas um tanto apagadas. Mas as pessoas estão lá. Aqui um avô flagrado para sempre num sorriso que se eternizou numa última memória; ali uma tia que foi morar longe e veio em visita aos parentes, ocasião em que foi fotografada. Na seguinte você mesmo, mais novo, cheio de vida e esperanças, sugerindo que o futuro que só agora você conhece não precisaria, necessariamente, ter sido como foi.
Fotos de pessoas, casas, ruas inteiras, imagens sobrepostas por outras mais novas, recentes. É assim que épocas desaparecem, amarelando-se, apagando-se, deixando de existir, cedendo lugar ao novo que um dia também desaparecerá.
Aí está a Av. Paulista com suas árvores frondosas, talvez numa tarde morna na qual tudo o que se pode ver é uma carroça preguiçosamente puxada por um burro. No entorno, ricos palacetes, dentro deles gente orgulhosa de estar ali num tempo de dinheiros em alta pelos bons negócios das fazendas de café. Tudo isso continua vivo nas páginas de um álbum de fotografias antigas, testemunho de uma época aprisionada entre as capas duras com as quais um editor houve por bem delimitar as margens do passado.
As velhas fotografias são passaporte seguro para o passado. Elas permitem a você reencontrar pessoas queridas, muitas delas há tempos esquecidas. É como se caminhar numa rua cuja paisagem de repente se transforma e o colorido converte-se em preto-e-branco. Você percebe que entrou em outra realidade, mundo virtual e refeito, no qual pode dialogar com os mortos. Tudo isso ao alcance da imaginação despertada pelo contato visual com fotos impressas em papel.
Mas fotos antigas também servem para trazer lembranças indesejáveis. Lembrei-me disso ao saber da morte de Edward Kennedy dias atrás. As exéquias do senador norte-americano realizaram-se com toda pompa e circunstâncias devidas a um grande homem público que se destacou pela sua combatividade. Ele representava, na opinião de analistas, a alma do Partido Democrata e converteu-se, ao longo dos anos, num esteio moral do mesmo partido.
Entretanto, tinha o senador em seu passado uma mácula devida ao famoso acidente em que faleceu uma ex-secretária. Ted Kennedy dirigia o carro. Pois na maioria das notas sobre a morte do senador liam-se referências ao acidente, ainda que para demonstrar como alguém que cometeu algo errado pode superar-se. Nem no momento de sua morte Edward Kennedy livrou-se do estigma de ter abandonado a ex-secretaria Mary Jo Kopechne à própria sorte no interior do rio onde caiu o carro.
Na época de sua ocorrência o acidente de rendeu material abundante aos fotógrafos de jornais que flagraram a retirada do carro do rio e o resgate do corpo da vítima. Todas as fotos estão disponíveis na internet funcionando como memória permanente de um fato que maculou a trajetória do senador agora morto.
O barbeiro português
Hoje é domingo e deu-me na telha contar a história - ou a desdita – de um barbeiro/cabeleireiro português.
Quando o conheci São Paulo era São Paulo. Ou melhor: o centro era o centro, os homens usavam ternos e as mulheres tailleurs. Havia a Exposição na Praça do Patriarca e a Rua São Bento era chique com suas lojas elegantes. Mais para baixo, atravessando o Viaduto do Chá em direção à Barão de Itapetininga, ficavam o Mappin e as galerias, hoje tão depreciadas. Ah, a rua Barão, a Sete de Abril, o Largo do Paissandu, velha, velhíssima São Paulo.
O barbeiro era filho de portugueses, gente do interior de Portugal que atravessara os mares para tentar a sorte no Novo Mundo. Ele nasceu no Rio de Janeiro e foi batizado com o nome de português, Manuel, Joaquim ou outro nome que você quiser dar a ele – aliás, desde já considere-se convidado para apadrinhá-lo.
Os pais do futuro barbeiro retornaram a Portugal e com eles o filho pequeno que viveu no país além mar até os 17 anos de idade, ocasião em que decidiu vir para o Brasil. Consta que morou nas redondezas do Largo do Machado e trabalhou num salão ao lado do palácio do Catete. Ainda moço foi chamado em palácio para fazer o cabelo do então presidente Juscelino Kubistcheck que tornou-se seu cliente até mudar-se, com todo o governo, para Brasília.
Um dia o barbeiro português veio passar um fim-de-semana em São Paulo. Quis a sorte que nessa ocasião conhecesse a portuguesa que seria sua mulher e com a qual teria filhos.
Radicando-se em São Paulo o barbeiro participou de alguns negócios, embora continuasse sempre em sua profissão. Não chegou a fazer fortuna, mas amealhou bens com a participação da mulher cujo espírito empreendedor sempre destacou.
Envelheceram assim até que a prolongada doença da mulher os separou. Viúvo, filhos criados, entendeu o barbeiro acertar as coisas passando em cartório suas posses aos filhos. Houve quem o aconselhasse a pensar melhor, esperar um pouco, mas era a sua intenção e assim foi feito.
Tristeza e solidão na cidade grande encaminham qualquer um para encontros fortuitos que podem se prolongar em relações duradouras. Aconteceu ao barbeiro, cerca de um ano após a morte da esposa, conhecer uma mulher, pouco mais nova que ele. A relação entre os dois despertou a ira dos filhos que, como é comum nesses casos, passaram a acusá-lo de tê-la como amante mesmo antes da morte da mãe.
Aborrecido, o barbeiro largou tudo e foi morar no interior. A namorada não vive com ele, vez ou outra se encontram. Está ele agora, mais de 70 anos e idade, começando de novo o seu negócio num pequeno salão onde se cortam cabelos a preços populares. Quanto aos filhos, não procuram pelo pai.
O barbeiro português me odiaria se soubesse que escrevi sobre ele. Para a minha felicidade ele não usa computadores, não lê blogs e assim por diante. Escrevi como aquelas pessoas que enviam correntes, esperando que a sorte as faça cair na caixa postal de pessoas interessadas. Quem sabe, por um capricho do destino, um dos filhos do barbeiro acabe lendo esse texto. Se isso vier a acontecer informo que o seu pai está muito sozinho e sofre pela ausência dos filhos. No dia dos pais ele esperou em vão por vocês, por qualquer sinal de reconhecimento a ele. Mais: ele jura que não tinha amante antes do falecimento da mãe de vocês coisa não tão difícil de verificar.
Que me perdoem, ou não, pela intromissão.
A cabeça na bandeja
James Ensor (1860-1949), pintor belga, não é tão celebrado como Cézanne, Van Gogh e outros modernistas. Sua obra plena de expedientes macabros caracteriza-se pela presença de esqueletos em situações diferentes. Em “A entrada de Cristo em Bruxelas”, quadro mais conhecido do pintor, Jesus está montado em um burrico e tem a sua volta uma multidão. No alto há uma faixa onde se lê “Vive La Sociale” e no primeiro plano aparece um esqueleto usando uma cartola.
“Os cozinheiros perigosos” é outro quadro impressionante de Ensor. Nele se vê a cabeça de Ensor em uma bandeja, sendo carregada por um garçom vestido de branco que a servirá a estranhas pessoas sentadas ao redor de uma mesa. Sobre a cabeça de Ensor há uma etiqueta de identificação com o seu nome. “Os cozinheiros perigosos” é um auto-retrato horrível e macabro.
Lembrei-me de James Ensor ao receber a notícia de que o ex-ministro Antonio Palocci foi absolvido pelo STF acusado que foi pela quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Não sendo jurista e desconhecendo os meandros das leis, devo acreditar que homens do gabarito dos ministros do STF tenham agido acertadamente. Entretanto, caso me apóie no que a imprensa noticiou a respeito do assunto e na opinião de vários juristas, a decisão do STF estourou do lado do mais fraco. E não há porque se negar que o resultado não era o esperado pela população, daí somar-se no imaginário popular como mais um arranjo em torno da impunidade de membros pertencentes à cúpula que governa o país.
Mas foi a imagem do caseiro Francenildo, homem simples cuja palavra foi vencida no embate com a do poderoso ex-ministro, que me levou ao auto-retrato de James Ensor. Caso Francenildo fosse um pintor e se dispusesse a pintar um auto-retrato, como o faria? Pois me pareceu que desenharia algo como “Os cozinheiros perigosos”, pois seria inevitável que entendesse de modo diferente a sequência de fatos que deram a ele tanta notoriedade.
Fernando Rodrigues escreveu na “Folha de São Paulo” que o STF ministrou a caseiros, mordomos, secretários e motoristas de poderosos a lição de que as suas palavras não valem nada. Devem, portanto, tomar cuidado. Acrescento que não é nem um pouco difícil terem as suas cabeças servidas em bandejas por garçons vestidos de branco e a convivas inebriados pelo poder.
O fim de um planeta
Não se trata de ficção: o planeta gigante Wasp-18b, recentemente descoberto, está com seus dias contados. De fato, ele está prestes a ser engolido pela sua estrela-mãe da qual está separado por apenas 2 milhões de quilômetros.
O detalhe é que esse “está prestes” significa um tempo igual a 500 mil anos. Note-se que 500 mil anos é muito pouco diante do tempo total vida de uma estrela, conforme explicam os astrônomos.
Assim, o destino de Wasp-18b está selado. A cada dia o planeta completa uma órbita inteira e a hipótese é a de que esteja seguindo o trajeto de uma espiral para dentro, fato que o levará ao choque com a estrela.
A brevidade do tempo que resta a Wasp-18b impressiona. Apenas 500 mil anos o separam do terrível momento em que a estrela-mãe, essa desalmada Pacman do universo, o engolirá. Nada se pode fazer para impedir algo talvez determinado por forças do mal comandadas por algum Darth Vader inimigo de planetas.
O problema em relação à brevidade do tempo fica por conta do período de duração da civilização humana. As civilizações humanas de que temos noticias floresceram há 6 mil anos AC; somando-se a eles os 2 mil anos DC, chegamos a míseros 8 mil anos. Daí que os tais “apenas 500 mil anos” que restam a Wasp-18b representam para nós, pobres mortais, algo como a própria eternidade ainda mais se considerarmos que raramente atinge-se a marca dos 100 anos de idade.
Entre os temas prediletos de Machado de Assis estão o da passagem do tempo, a brevidade da vida, a morte, e o caráter perecível das coisas. Tudo acaba e as gerações passam. A vida é breve, que o digam as lápides dos cemitérios que se entreolham em silêncio. Entretanto, no breve período de menos de uma centena de anos somos capazes de experimentar a sensação de imortalidade e fingimos que nossas conquistas são eternas. Amor, ódio, paixão, alegrias, tristezas e emoções são vividas às últimas consequências, sem o vislumbre de que somos, à semelhança das coisas, seres perecíveis. Assim é o homem e a vida não teria sentido caso não a entendêssemos desse modo.
A proximidade com pessoas e coisas nos apóia e dá singularidade à nossa existência. Sendo assim, idéias como as de universo, longas e intransponíveis distâncias, morte de planetas e anos contados aos milhares não nos soam bem dado que nos apequenam por demonstrar a insignificância do homem. Salva-nos em parte a noção de continuidade da vida através da geração de filhos aos quais, assim esperamos, transferimos o legado da nossa civilização. Ainda assim, prevalece a brevidade da história do homem e a de nossas vidas.
Vida longa a todos nós que não passamos dos 100 anos!
Vida longa ao planeta Wasp-18b ferido de morte e com apenas 500 mil anos à frente para chorar as suas mágoas galácticas.
Que ainda existam homens na Terra – e a própria Terra - no dia fatal para juntos chorarem o desaparecimento de Wasp-18b!
Roberto Carlos no Ibirapuera
Os grandes intérpretes da música popular brasileira sempre mantiveram públicos cativos. Gerações anteriores às nossas endeusaram nomes como os de Francisco Alves, Carmem Miranda e Orlando Silva. Entretanto, não creio que qualquer um deles tenha sido distinguido, em seu tempo, com pelo menos uma parcela da idolatria hoje verificada em relação a Roberto Carlos.
Robert o é o Rei e isso diz tudo. Entre ele e seu público vigora um magnetismo de dimensões impressionantes que ultrapassa toda lógica e formalidades. Homens e mulheres de várias idades foram encantados pelo Rei e nenhuma força pode interpor-se a essa relação frenética entre dois lados que se entendem nos mínimos gestos, nas pequenas nuanças, na dimensão de um sorriso, na face algo entristecida que corrobora a letra de uma música que se refere a amores desfeitos.
Roberto imanta as pessoas e as mantêm presas ao seu manto real. Um simples movimento de suas mãos, mostrado em close no telão ao seu lado, desperta milhares de ohs, suspiros incontidos e profundos que ecoam com a densidade de ventos fortes, impossíveis de conter.
Se você nunca foi a um show de Roberto Carlos, então vá: terá a oportunidade única de assistir ao vivo a atuação de um fenômeno e poderá observar um ídolo em plena realização de sua função, coisa rara e inesquecível. E não importa se você gosta da música de Roberto Carlos, se o acha meio brega, enfim, se o cantor não desperta a sua sensibilidade. Não importa mesmo, porque você, de repente, se verá no meio de uma atmosfera aparentemente incontrolável de pessoas ensandecidas e gritando:
- Robertoooo, lindoooo, eu te amooooo…
Não havia um só lugar vago no ginásio do Ibirapuera. Foi só por rotina que os organizadores avisaram que os celulares deveriam ser desligados e não seriam permitidas fotos, uso de flashes, filmadoras etc. No momento em que Roberto Carlos entrou no palco instalou-se um momento de loucura com luzes de flashes ininterruptas e uma barulheira infernal.
Mas Roberto não se deu por achado. Curvou-se cumprimentou o público e começou a cantar em meio a uivos, gritos e palmas. Aliás, essa barulheira perdurou na maior parte do show sugerindo que a muita gente bastava a presença do Rei. No mais, as pessoas cantavam e o cantor estimulava-as a isso.
Durante 50 anos de carreira Roberto Carlos compôs e cantou um grande número de canções que se tornaram sucessos. A longa carreira e os sucessos alcançados fizeram do cantor uma verdadeira lenda. Todos conhecem Roberto e quase todo mundo sabe as letras de suas músicas. É dentro desse clima de perfeita integração entre o intérprete e seu público que transcorre o show. Destaque-se que Roberto, já perto dos setenta anos, mantém a sua voz e domina o palco com a perfeição que se espera do grande artista que realmente é.
O público que compareceu ao ginásio do Ibirapuera na noite de terça-feira assistiu a um grande show, tecnicamente perfeito no qual Roberto Carlos foi acompanhado por músicos de alto nível. Uma noite de fato inesquecível para os milhares de fãs do cantor, que terminou com ele jogando dúzias de flores para o seu público, como se distribuísse pedaços de si aos sortudos que as recebecem.
A morte continuada de Getúlio Vargas
Já se escreveu mais sobre o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, do que se pode imaginar. Historiadores se ocupam do último governo de Getúlio, levado que foi ao poder pelo voto popular; romancistas utilizam o cenário do final do governo de Getúlio, as agitações políticas, o crime da Rua Tonelero, figuras como as de Carlos de Lacerda, Gregório Fortunato e a de vários militares em suas narrativas. Em todos os trabalhos destaca-se a intenção de eternizar os acontecimentos do dia 24 de agosto, data do suicídio do presidente.
A “Carta Testamento” de Getúlio permanece como profissão de fé de um homem que deu a sua vida pelo país em nome dos trabalhadores. O fato é que Getúlio Vargas tornou-se, “ao sair da vida e entrar na história” o mais emblemático personagem da história recente do país.
Vai daí que o Museu da República, instalado no antigo Palácio do Catete, foi transformado, há alguns anos, numa extensão do túmulo de Getúlio. O quarto onde o presidente se matou permanece intacto, com os mesmos móveis, compondo uma atmosfera sinistra pela qual passam diariamente inúmeras pessoas. Antes de chegar a ele, último pórtico da visita ao palácio, o visitante passa por salas onde encontra fotos de Getúlio, trechos de seus pronunciamentos etc. Há, portanto, uma espécie de imersão no mundo em que Getúlio viveu, servindo como preâmbulo à chegada ao quarto onde ocorreu o desfecho fatal.
Não há, durante o trajeto que leva ao quarto, como não se pensar na historia do país, nos homens que escreveram essa mesma história com os seus atos e nas multidões desaparecidas que se empolgaram com os acontecimentos de então. É como se a voz de Getúlio ecoasse de um mundo desfeito para dizer que o Brasil foi assim e talvez continue a ser assim.
De modo que, ao adentrar o quarto, está o visitante imbuído da atmosfera de luto acontecida em 1954 e não será demais dizer que ele saia de lá esperando encontrar, fora do palácio, multidões comovidas e chorosas pela perda de um grande ídolo nacional.
A permanente atmosfera fúnebre criada em torno de Getúlio Vargas tem muito de culto a alguém deificado pelas multidões cujas circunstâncias da própria morte - assim entendem os organizadores do trajeto do Palácio do Catete - devem ser preservadas. Para isso certamente concorre o retorno ao palácio do pijama usado por Getúlio no momento em que atirou em seu próprio coração. O pijama de seda acaba de ser restaurado e foi devolvido ao museu para que os visitantes possam ver as machas de sangue do presidente e o buraco por onde atravessou o projétil. Está lá, portanto, ao alcance dos olhos de quem quiser ver, uma peça da tragédia como a atestar a existência real de um mito.
Há muito de lúgubre no cenário preservado no Catete para o qual convergem visitantes – cinquenta mil em 2008, segundo informações. Pode ser que as coisas estejam bem como estão, mas Getúlio talvez merecesse outro tipo de memória que não a consolidada em torno de seu último ato.
Tancredo Neves, que foi ministro durante o governo de Getúlio, morreu muitos anos depois dele num momento em que o país depositava muita esperança em seu governo por se iniciar. A morte de Tancredo de tal forma alterou os destinos do país que até hoje figura-se como capricho da história, talvez traição dela em relação ao povo brasileiro.
Tancredo repousa em seu túmulo no pequeno cemitério da igreja de São Francisco de Assis, em São João Del Rei. A cidade homenageia Tancredo com um museu onde são mostrados aos visitantes cenas e fatos importantes da vida do político mineiro.
Creio que a posteridade favoreceu mais a Tancredo Neves que a Getúlio Vargas cuja memória de seu suicídio celebra-se ininterruptamente no local onde ocorreu a histórica tragédia.
A Associacão de Carecas
É dos carecas que elas gostam mais?
Não consta que exista pesquisa a respeito. Conheci uma senhora com mais de 50 anos de idade e solteira que queria casar-se de qualquer jeito. Não vou morrer invicta – dizia – fazendo-nos pensar sobre a extensão da palavra invicta em sua vida particular. Ela acrescentava:
- Agora que sou cinquentona, caso até com um careca.
Casou-se. O careca era vinte anos mais velho que ela e muita gente achava que ele não ia longe. Como o careca tinha algumas posses houve quem falasse em golpe do baú. Entretanto, o careca recuperou-se, passou a praticar esportes e exibir aspecto físico saudável. Tinha o hábito de acordar às cinco da manhã para fazer ginástica e obrigava a mulher a exercitar-se com ele. Ela morreu alguns anos antes dele, dizia-se a boca pequena, no velório, que a falecida sucumbira por não acompanhar o ritmo do marido.
Leio que na cidade espanhola de Allo existe uma Associação de Carecas que, dias trás, reuniu-se para comemorar o Dia do Careca. A associação foi fundada há dez anos, tem até um presidente de honra. Allo recebe membros da associação vindos de varias localidades para a comemoração. Os novos membros são batizados com a água de uma fonte jogada sobre suas cabeças: carecas batizados unidos permanecem unidos.
Mas Allo não está sozinha em termos associativos de falta de cabelos. Desde 1970 existe nos Estados Unidos uma associação de carecas que tem representantes em 42 estados e cinco outros países.
A idéia poderia ser trazida para o Brasil fundando-se aqui uma filial da associação de Allo. É de se supor que carecas de várias partes do país se filiariam à nova agremiação. De fato, uma rápida pesquisa na internet digitando-se a palavra “careca” resulta em impressionantes manifestações de pessoas calvas que variam de propostas de associações a lamurias pela falta de cabelos.
O fato é que existe no país uma grande quantidade de carecas estimada em quase 1/4 da população. Note-se que nem todos são portadores de calvície hereditária; e tem muita gente cabeluda por aí que tende a ficar com a cabeça lisa devido à queda de cabelos com o passar dos anos.
Há quem ache os carecas feios. Existem carecas insatisfeitos com a sua condição e dispostos a tudo para terem cabelos. Implantes, perucas, tratamentos e curiosos métodos nos quais cabeleiras são coladas à cabeça durante alguns meses fazem parte do arsenal utilizado pra driblar a calvície.
Entretanto, grande parte dos carecas diz-se satisfeita por não ter cabelos e aponta vantagens em sua condição entre as quais figuram a higiene e não perder tempo com o cabelo. Além disso, não custa lembrar que muita gente cabeluda prefere raspar a cabeça, aí se incluindo muitos atletas. O look tipo sarado, cabeça raspada e óculos escuros faz sucesso e a verdade é que muita gente gostaria de fazer parte dessa turma.
Sondando o mundo do meu poleiro particular
Segunda-feira. O telefone toca, são sete da manhã. Uma mulher pergunta:
- A Adair está aí?
- Não senhora a Adair não está, aliás, nunca esteve.
- Mas o número não é…
Não a deixo terminar, coloco o fone fora do gancho, preciso dormir mais alguns minutos porque o dia vai ser longo.
Não sei quanto tempo se passa até que ouço a campainha. Levanto-me com dificuldade, vou até a porta e me preparo para ver através do olho mágico. Demoro um pouco, sempre tive medo dos olhos mágicos: e se for um assalto ou um crime planejado a ser praticado por um sujeito de sangue frio que justamente nesse momento tem o cano do revólver do outro lado da porta esperando pelo meu olho?
No corredor estão o zelador do prédio e um vizinho do andar de baixo. Vem ele se queixar de um vazamento. Reclamo que é muito cedo, que posso eu contra canos que se rebelam nas madrugadas? O vizinho me ouve, faz uma careta, não sei se de revolta ou desconsolo e diz:
- É que está caindo muita água. O senhor poderia fechar o registro até que se chame um encanador.
Fecho a porta, fecho o registro, fecho os olhos, estou de novo deitado. É quando toca o despertador, agora sim é oficial.
Levanto-me de uma vez, pego o barbeador elétrico e ligo a televisão. A comentarista de economia aparece no vídeo com um cabelo enorme e arrepiado, creio que passou a noite toda fazendo o penteado tão estranho. Ela fala sobre o crescimento da economia no Japão e anuncia o fim da crise naquele país. Em seguida aparece um repórter policial dizendo que prenderam um pedófilo com três meninas num motel. O pedófilo é um cara meio velho, cabelos brancos, gordo e tem cara de gente bem de vida. Fico pensado na mulher dele, quem sabe com a televisão ligada e vendo o marido preso, isso tudo antes das oito da manhã que é horário mais que fatídico, hora de receber notícias novas na cara sem apelação.
Chove em Niterói, a ponte que liga a cidade ao Rio tem movimento razoável. Brasília também tem sol, vejo São Paulo debaixo dos fios da ponte estaiada, carros passando pela marginal como se estivessem pregados ali repetindo o movimento de todo dia.
Termino a barba, mudo de canal porque não agüento a gritaria do intervalo comercial, alguém muito sensato e poderoso tem que proibir o aumento de volume da televisão durante os comerciais.
Estou me vestindo e pensando no café da manhã quando ouço notícias sobre o empenho do governo em perpetuar-se no poder: não foi só o aumento do bolsa-família, fecharam em torno do presidente do Senado um esquema absurdo de defesa só para garantir alianças partidárias. O presidente da República não faz outra coisa que não agir em função da continuidade do seu grupo no próximo governo, ainda que para isso tenha que sacrificar princípios que defendeu no passado e por eles foi eleito.
Ainda que apressado, arranjo tempo para um gole de café que desce quente goela abaixo queimando um pouco a língua. Então me lembro de um ensaio do historiador Eric Hobsbawm no qual ele diz que muitas vezes supomos que a experiência individual de vida também seja uma experiência coletiva. Isso representa que cada observador tem, diz ele, o seu próprio tempo de vida, um poleiro particular a partir do qual pode sondar a mundo.
Então é isso, tenho o meu próprio poleiro para observar o mundo e acompanhar a trajetória das pessoas em tempos e circunstâncias diferentes. E se conto com essa possibilidade penso não estar tão longe de uma opinião coletiva ao repetir o que todo mundo diz por aí, ou seja, que os políticos atualmente no governo deixaram a ética de lado e fazem qualquer negócio pare se segurarem no poder. Daí que a política adotada não passa de uma série de acobertamentos e favorecimentos realizados sem qualquer escrúpulo.
Estou no elevador junto com uma mocinha que caprichou na quantidade de perfume quando penso em princípios éticos abandonados e no andamento da história. O fato é que o poder inebria e é preciso avisar aos mandatários do país que a História existe, assim como os legados pessoais. Daí que é asneira achar que pouco importa o que se pense a respeito de alguém daqui a alguns anos porque esse alguém já estará morto. Ainda que não exista nada após a morte, ainda que tudo acabe definitivamente, nada de alma nem nada, o fato é que os verdadeiros homens são aqueles que constroem as suas legendas para serem lembrados no futuro pela sua dignidade.
Vai daí que não adianta ter uma trajetória de apelos pela ética para depois inebriar-se pelo poder e pactuar com tudo o que se negou antes com veemência. A História não costuma perdoar esse tipo de gente. Quando as sortes estiverem definitivamente seladas e o tempo houver decorrido, será sobre lápides empoeiradas que os historiadores do futuro escreverão a História dos homens desses tempos. E não existe saga pior que o julgamento dos pósteros sobre o caráter duvidoso de quem quer que seja.
Estaciono o carro na garagem do prédio onde trabalho imaginando o horror de ser lembrado pelo que se fez de pior na vida. Em breve encontrarei as pessoas de todo dia, falaremos sobre o futebol e alguém mais inflamado tocará no assunto política. Acontece todo dia, fala-se sobre tudo, discute-se a linha de impedimento, de vez em quando alguém se lembra de políticos e pergunta como algumas pessoas podem mudar tanto. Como sempre a conversa prossegue e em geral termina com alguém dizendo que fulano de tal não mudou nada, sempre foi assim, o fato é que antes ele disfarçava, esse que está aí é o verdadeiro.
A internet e a literatura
O jornal “O Estado de São Paulo” de hoje traz foto de uma escritora canadense autografando livros nos Estados Unidos. O fato seria normal se a escritora não estivesse no Canadá exatamente no momento em que os livros eram autografados nos EUA. Como isso foi possível? O autógrafo a distância foi realizado com um aparelho chamado LongPen. Uma caneta especial utilizada pela escritora foi usada para transmitir, via internet, os dados da assinatura.
Há muita gente preocupada com os destinos da literatura e dos livros em papel dada a emergência dos blogs, do Twitter e dos e-books. Já são feitas poesias com restos de spams e emails. Circulam pela internet romances interativos, seriados, escritos a muitas mãos. Miscelâneas de textos escolhidos ao acaso podem, facilmente, ser compostas através do recurso copiar e colar somado a pitadas de mudanças feitas apenas para disfarçar. Nas escolas os professores enfrentam a questão da paternidade dos textos apresentados nos trabalhos de seus alunos: nunca foi tão fácil montar um trabalho extenso grilando idéias e até parágrafos inteiros alheios.
Editoras e algumas universidades já dispõem de sistemas capazes de comparar os textos que recebem com uma infinidade de outros reproduzidos na internet. Trata-se de meio seguro de reprimir plágios e flagrar falsos autores.
Mas o que acontecerá aos livros em papel e à literatura? Quanto aos livros parece que o fiel da balança será a mudança de hábitos verificada de uma geração para outra. De fato, é espantosa a integração entre os mais jovens e as tecnologias recentes, em especial o computador. Entre os jovens ler numa tela é algo mais que natural de modo que não será demais prever que as novas gerações venham a prescindir de textos em papel. Entretanto, o mesmo não se pode dizer da turma, digamos assim, da retaguarda. A boa e velha retaguarda não é muito dada a olhar para uma telinha cheia de letras e ainda prefere segurar os livros em papel cujo prazer do manuseio é insubstituível. Infelizmente as retaguardas envelhecem a cada dia que passa e são substituídas por outras: periga, portanto, que em alguns anos tenhamos retaguardas habituadas somente a e-books. Quando e se isso acontecer, será decretado o fim do livro em papel, com direito a enterro e missa de sétimo dia.
A literatura sobreviverá sempre, que não se tenham dívidas sobre isso. Os seres humanos são dotados de grande curiosidade e contar histórias faz parte da natureza da espécie. Se elas vão ser contadas impressas em papel ou em telinhas, se através da voz de um locutor ou de novos meios que venham a ser inventados, tanto faz. O que se pode esperar e já se verifica são novas formas de fazer literatura e de chegar ao público. Note-se que nessa afirmação não existe nenhum juízo de valor coisa, aliás, ignorada nesses tempos em que a possibilidade de publicação de qualquer texto tornou-se muito democrática através da internet.
Particularmente, vejo com muitos bons olhos toda essa revolução e sou grato por ter vivido para presenciá-la. Num país em que pessoas de talento encontram enormes dificuldades para publicar um livro e onde as editoras têm declarada preferência por obras traduzidas, a internet tornou-se um reduto no qual muita gente boa pode se expressar e, talvez, emergir fortalecendo a pálida literatura nacional.
Assim, não se trata do fim dos tempos, nada apocalíptico como esse tom de velório frequentemente utilizado para decretar o fim dos livros e a banalização da literatura. As revoluções costumam ter algo de inovador daí que dessa gigantesca montanha de coisas diariamente publicadas na internet, algo de muito bom haverá de sobrar e persistir.
Ninguém
Acabo de receber um email de uma pessoa que se identifica (melhor dizer não se identifica?) como Ninguém.
Leio o texto curto, escrito talvez às pressas e imagino que o teclado do computador tenha escondido dedos capazes de uma letrinha magra, sofrida, coisa de retirante que, cansado (a) de tudo, entrou na internet e enviou um email esperando encontrar outro Ninguém.
O email caiu na minha caixa postal eletrônica. Sabe-se lá por quais mistérios terá errado seu caminho nessa coisa monstruosa que talvez nada mais seja que uma barafunda de linhas invisíveis, correndo em todas as direções, carregando informações até chegarem ao seu destino final que é um programinha de recepção de emails.
Não vou dizer a ninguém o que me escreveu essa pessoa chamada Ninguém, em primeiro lugar porque esse é o seu pedido. Quis ela que alguém soubesse de sua desdita sem conhecê-la e sem possibilidades de encontrá-la. A única coisa que diz não ser segredo é que está fugindo, embora não diga de que ou de quem.
Não dá para saber com certeza, mas para mim, Ninguém é uma mulher, tem pouco mais de 30 anos, aborreceu-se da vida, abandonou o marido ciumento e fincou o pé nesse mundo de Deus. Ninguém se cansou da vida doméstica, do marido cheirando a cerveja de todo dia depois do trabalho e chegando a casa querendo sexo. Não era vida, não senhor. Certo que ela viera do interior para morar na cidade grande em busca de oportunidades. Certo que moça e bonitinha foi trabalhar na casa de uma mulher que conheceu através de uma agência de empregos. Também certo que a mulher era muito boa, mas o marido dela um danado sem escrúpulos que jurou pegar a empregada nova desde o primeiro dia em que a viu. Foi por causa dele que Ninguém deixou o emprego, desesperou-se e acabou casando com esse homem de quem agora foge. Terá sido assim?
Como será a Ninguém? Alta, baixa, loira, negra ou mulata? Que tal uma morena alta e bonita que saiu de casa num dia frio, vestindo um capote meio surrado e agora está numa estação ferroviária esperando o trem? Ou uma loirinha alternativa carregando uma mochila nas costas, pedindo carona na beira de uma estrada? Ou…
Não posso dizer o que Ninguém escreveu embora morra de vontade de fazê-lo. São poucas palavras, não muito mais que duas dúzias que, no conjunto, mais parecem uma mensagem cifrada. Começa com “Não conte a ninguém” e termina com “estou fugindo”. O miolo da mensagem diz coisas um tanto desconexas, mas que fazem algum sentido.
Qualquer pessoa pode preencher o miolo da mensagem enviada por Ninguém e imaginar essa mulher do modo que lhe aprouver. Se achar que Ninguém é um homem, tudo bem. No mais resta aos interessados dar a Ninguém uma historia plausível, melhor que essa de mulher aborrecida da vida etc.
Não vou mentir: tive medo de que o email que recebi fosse um tipo novo de corrente, daquelas que quem se recusa a participar morre tragicamente em poucos dias. Como tenho medo de correntes, resolvi responder ao email enviado por Ninguém. Escrevi um texto meio longo, me dispus a ajudá-la e enderecei a ninguem@ninguem.com.
Enviei o email há dez dias e ainda espero pela resposta. Tenho a impressão de que a demora se deva a essa confusão de linhas invisíveis que ligam as caixas postais eletrônicas de milhões de pessoas. Mas Ninguém responderá, tenho certeza disso.