2009 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2009

A negativa da ministra-chefe

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O depoimento da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff como testemunha no processo movido pelo Ministério Público contra 39 réus no caso do mensalão constitui-se numa peça e tanto pela natureza do seu conteúdo.

A ministra-chefe negou a existência do esquema do mensalão, dizendo ser impossível que partidos políticos exigissem “vantagem financeira”; afirmou que ex-ministro da Casa Civil e deputado cassado José Dirceu (PT-SP) é um “injustiçado”; negou conhecer o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, tido como o “operador” do esquema do mensalão; elogiou deputado Paulo Rocha (PT-PA), que renunciou ao mandato para se livrar de condenação na época do escândalo do mensalão; e defendeu o ex-deputado Professor Luisinho (PT-SP), que não se reelegeu depois da denúncia do mensalão. São informações publicadas pela imprensa.

E agora? O que nos resta para pensar? Senhora ministra-chefe, a senhora que é pré-candidata à presidência da República, considere, por favor, a situação em que ficamos todos nós, os eleitores que votarão em 2010. Afinal, em quem devemos acreditar? No depoimento que a senhora fez sobre o mensalão aí Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede provisória da presidência da República, em Brasília? Ou em tudo o que aconteceu naquele terrível espaço de tempo durante o qual a República teve aberto o seu ventre para a exposição de acusações terríveis que tanto nos chocaram?

Eis aí uma situação que se enquadra à perfeição dentro de um sistema binário do tipo aconteceu/não aconteceu, verdade/mentira etc. Num sistema desse tipo está-se no território que os matemáticos chamam de eventos mutuamente exclusivos, nos quais a ocorrência de um significa a não ocorrência do outro. Enfim: se existiu ou não o mensalão, e ponto final.

Dirão que não é tão simples, o evento em questão é muito complexo, etc. Mas numa coisa devemos insistir: detalhes à parte, nós precisamos saber se afinal houve ou não o mensalão porque o que está em jogo é a confiança que temos nas instituições, nos políticos, nos candidatos que se apresentarão às próximas eleições e, por que não, na imprensa.

O povo brasileiro é calmo e ordeiro, gosta de festa, adora foguetório e quase sempre esquece muito depressa tudo o que acontece, especialmente aquilo que o incomoda. Mas a história do mensalão, essa aí ainda não foi possível esquecer. Afinal, a imensa massa de brasileiros que trabalha e paga taxas muito altas de impostos foi, durante um bom tempo, bombardeada, dia e noite, por um noticiário que incriminava muita gente, envolvendo grandes somas de dinheiro público. Na época houve até gente que, para se livrar de perder o mandato, renunciou e saiu pela porta dos fundos do Congresso, esperando que a fraca memória popular os esquecesse até que pudessem voltar aos seus postos.

Então era tudo mentira? Fomos enganados por alguma campanha maléfica engendrada pela mídia? Ou a própria mídia foi enganada por gente muito esperta e usada para espalhar mentiras que abalaram o país?

Senhora ministra-chefe, eu jamais escreveria isso se o assunto não me incomodasse tanto. Entretanto, como tantas outras pessoas, eu me vejo entre duas versões irreconciliáveis sobre um mesmo fato. Espero, sinceramente, que esse assunto venha a ser esclarecido antes das eleições do ano que vem para que eu possa votar com muita consciência.

Sabe, é um voto só, um votinho. Mas é o meu.

Recado do Morro

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Não é samba, não é livro: é projétil. O recado enviado pelo Morro dos Macacos veio sob a forma de projéteis lançados por armas potentes, com direito a abate de helicóptero e muitas mortes.

Tem gente chamando de ataque terrorista o conflito entre a Polícia Militar e os traficantes do Morro dos Macacos. Errado: o que aconteceu lá é um recado, talvez o maior deles, avisando sobre situações insustentáveis, desequilíbrios, desigualdades, pobreza, fome, corrupção, destinação errada de dinheiro público, ufanismo fora de hora, exploração do homem pelo homem, vícios, disputas entre criminosos pelo domínio de territórios, veículos queimados, tráfico de drogas, sofrimento de famílias marginalizadas que não têm para onde ir e tudo que se refere à existência de áreas urbanas fora do alcance da lei.

Na rotina de acontecimentos dessa ordem há sempre o depois no qual as autoridades falam e falam sobre diferentes aspectos, sempre prometendo dias melhores. Urge o combate ao crime organizado, as famílias que vivem nos morros não dão guarida aos criminosos, o Rio de Janeiro estará preparado para os grandes eventos esportivos que lá se realizarão num futuro próximo, segurança é preocupação de primeira ordem e assim por diante.

Você ouve e não acredita no que eles estão dizendo. É que você ouviu e entendeu o recado do Morro dos Macacos. Você também viu as imagens desses repórteres e cinegrafistas meio loucos que têm e tiveram a coragem de trabalhar no meio daquele verdadeiro ciclone levantado por gente que corria para todos os lados, cuidando de salvar a própria pele. Você ouviu o ritmo frenético das armas disparando sem parar. Também assistiu ao desespero de gente como a gente, perdida em meio à confusão e procurando abrigos.

O recado do Morro dos Macacos foi um aviso de que se trata de guerra civil, no momento fora de controle e que pode ser reiniciada a qualquer momento, ali ou em outros morros dominados pelo tráfico. O recado é uma mensagem dos bandidos de que pouco estão se lixando para o presidente da República que apareceu na televisão para dizer que a imagem deste país de trabalhadores não pode ser manchada por meia dúzia de bandidos. O recado é um grito ao mundo de que “este país” está crescendo, mas que ainda falta muito para resolver os seus problemas básicos.

O recado do Morro dos Macacos é algo que queremos olvidar, transformar em ficção, desacreditar e fingir que não aconteceu de verdade para que possamos dormir em paz com as nossas consciências.

Biopirataria

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A biopirataria é dos assuntos que mais nos assustam. As notícias sobre seres vivos levados para fora das fronteiras do país são frequentes e, como acontece em relação a muitos outros crimes, os criminosos ficam sem punição. É assim que os direitos sobre a biodiversidade do país mudam de mãos e produtos naturais brasileiros são patenteados por empresas estrangeiras.

Quando se fala em biopirataria o que vem à mente é o comércio ilegal de animais que são levados para fora do país. Entretanto, o problema é bem mais amplo. Nesse sentido a entrevista de Bruno Barbosa, coordenador-geral do Ibama, concedida ao jornal “O Estado de São Paulo” e publicada em 18/10/09, é bastante elucidativa. Pela importância do assunto e a necessidade de esclarecimento da população, reproduziremos a seguir alguns dos tópicos abordados por Bruno Barbosa. São eles:

- Biopirataria não é o mesmo que tráfico de animais. Não é necessário cruzar a fronteira com o bicho inteiro. Pode ser uma gota de sangue ou uma pena. Às vezes uma semente ou, até mesmo um pouco de terra com microrganismos – qualquer ser vivo interessa aos biopiratas. O importante são as informações genéticas. No limite, pode ser só um arquivo de computador que descreve o DNA da espécie “roubada”.

- Os genes guardam instruções para a produção de diversas substâncias que despertam o interesse da indústria farmacêutica e química. Eles podem ser inseridos nas células de outros seres vivos que se tornam pequenas fábricas para a produção da substância cobiçada … Cerca de 40% dos remédios usados hoje já são fruto da biotecnologia … Nessa corrida por novos princípios ativos o Brasil é o maior alvo … O Brasil tem um quinto da biodiversidade do mundo.

- Os seres vivos mais procurados em geral são aqueles que possuem toxinas: aranhas escorpiões, centopéias, cobras, sapos etc … Seria muito conveniente se o Estado brasileiro realizasse um levantamento das patentes internacionais obtidas com o patrimônio genético nacional, uma tarefa muito trabalhosa, mas relativamente fácil.

- A solução é, no âmbito internacional, os países com grande biodiversidade – e o Brasil pode desempenhar um importante papel aqui – devem lutar para unir os dois acordos anteriores: respeito à propriedade intelectual e respeito ao interesse dos países que cedem sua biodiversidade para o desenvolvimento de produtos.

Aí está. Trata-se de um conjunto de informações importantes para que os cidadãos possam opinar sobre o assunto. Mas não devemos nos esquecer que a briga é de foice. De um lado estão os países ricos em biodiversidade que se sentem espoliados, pois as informações genéticas de sua fauna e flora são processadas por outros países e retornam como medicamentos caros pelos quais a população deve pagar sem qualquer vantagem. No pólo oposto estão os países que fazem uso das informações genéticas obtidas no exterior.  Advogam eles que gastam enormes fortunas para decodificar as informações e transformá-las em produtos úteis à humanidade, daí a necessidade de serem ressarcidos.

O que não pode acontecer é o olvido do problema que faz parte de um conjunto de ações esperadas em relação aos homens do governo. A enorme biodiversidade do país deve ser protegida e estruturada em acordos que tragam benefícios à população.

Sim ou não aos refrigerantes

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No Herald Tribune de 08/10 há um artigo sobre a guerra travada entre o governo dos EUA e os fabricantes de refrigerantes. O governo faz campanha contra o hábito de tomar refrigerantes responsabilizando esse tipo de bebida pela sua contribuição em relação às altas taxas de obesidade observadas no país. Autoridades governamentais e a Associação Médica Norte-americana recomendam a cobrança de impostos mais altos sobre os refrigerantes para que haja redução do consumo.

Em sentido diametralmente oposto atuam os fabricantes cuja contra-propaganda diz que os refrigerantes não são tão ruins e acusam o governo de pretender interferir nas liberdades individuais.

Há quem diga que a possível intervenção do governo não surtirá efeito, não agindo na redução da obesidade. Outros acham que é a partir de pequenas coisas como a maior taxação de bebidas açucaradas que o governo vai assumindo o controle total sobre a vida dos cidadãos.

De que governantes têm uma tendência natural a ampliar a atuação do Estado não existem dúvidas. Está acontecendo agora no Brasil cujo presidente da República, embasado em grande apoio popular, interfere em problemas além da alçada do cargo em que está investido. A pressão de Lula contra a diretoria da empresa Vale do Rio Doce é mais um passo na ampliação de seu poder pessoal.

Destaque-se que existem, sim, honrosas exceções personificadas por autênticos praticantes do liberalismo.

Voltando aos refrigerantes: afinal, você precisa de alguém, ou governo, que o ajude a tomar menos refrigerantes? É necessária uma proibição ou aumento dos preços para inibir o consumo?

O que espanta em discussões como essa dos refrigerantes é o fato de que as partes envolvidas sempre apelam para campanhas extremadas cujos resultados são reconhecidamente insatisfatórios. A verdade é que pouco ou nada adianta elevar o preço de latas de refrigerantes ou colocar cartazes por aí avisando que eles fazem mal à saúde. Nem adianta bater na tecla da restrição das liberdades individuais ou que é assim que começam os regimes totalitários. Como em tantos outros casos o que funciona mesmo é conscientizar. A palavra certa é, portanto, educação. Com ela uma enormidade de problemas pode ser reduzida, inclusive esse do consumo exagerado de refrigerantes. A questão é que esse modo de agir não produz resultados imediatos: educação é coisa que vem de trás, dos bancos escolares, da formação correta e integral de cada ser humano.

Conheço gente realmente viciada em refrigerantes. Tenho um amigo que não bebe água: ele só consome refrigerantes. São casos extremos. Para muita gente crescida uma campanha educativa talvez melhore um pouco as coisas. Mas insisto: é preciso ensinar bons hábitos alimentares aos pequenos, só assim se resolverá de fato o problema da obesidade e da saúde em geral. Portanto, sem essa de que estão restringindo as minhas liberdades e fora com essa coisa de elevar os impostos para reduzir o consumo.

A minha saúde e a sua saúde, caro leitor, dependem de termos consciência do que precisamos fazer para mantê-las. Consumir ou não refrigerantes é assunto que quem decide mesmo é o interessado.

Na Somália

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O Brasil perdeu o campeonato mundial Sub-20 para Gana. Torci pelo Brasil, obviamente. Entretanto, confesso que em muitos momentos não pude conter a minha simpatia por Gana. Por detrás desse sentimento uma só palavra: África.

Gana vive uma situação estável embora tenha grandes desafios pela frente, entre eles a pobreza e a desigualdade. Em abril deste ano realizou-se no país a XII Conferência da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). Em julho Barak Obama visitou Gana onde fez pronunciamento sobre a política norte-americana a ser adotada em relação ao continente africano.

Em águas diferentes navega a Somália, país que volta e meia aparece no noticiário graças aos seus piratas que atacam navios no Oceano Índico. O país vive um caos, daí com frequência ser lembrado como uma terra sem lei. Trava-se ali uma guerra que nenhuma das facções em conflito pode vencer. São várias as facções: as milícias radicais Shabaab, os clérigos Sufi, o governo islâmico moderado e dois governos autónomos do norte do país. Ninguém se entende e a guerra civil é permanente. Em consequência a fome no país atinge limites catastróficos. As fotos de crianças e adultos descarnados, pele e ossos, chocam. E como desgraça chama desgraça, a Somália foi atingida pelo grande tsunami que varreu países da região, tempos atrás.

A Somália é um dos países mais pobres do mundo. Notícias boas nunca chegam de lá. É o caso de uma recentemente divulgada sobre ações do grupo radical islâmico Al Shabaad. Eles estão chicoteando em público mulheres somalis que usam sutiã, acusando-as de enganar outras pessoas. Basta que vejam uma mulher que tem busto firme: imeditamente a chicoteiam e a obrigam a tirar o sutiã.

Os radicais do Al Shabaad não dão mole. Dias trás amputaram um pé e uma mão de dois jovens acusados de roubo. Também é proibido assistir e jogar futebol, ver filmes etc. Homens sem barba são açoitados.

Nem é o caso de falar em atraso cultural. A crise é mais profunda, animalesca. Na Somália 98% das mulheres é atingida pela mutilação do clítoris ou circunsisão feminina. Quase todas as meninas são circuncisadas entre oito e 14 anos de idade.

 Civis mortos como bodes, mulheres estrupadas, a Somália é o território da barbárie.

Que mundo é esse?

Mundo, mundo, vasto mundo – como dizia o poeta.

A nega é minha, ninguém tasca

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Um juiz julgou improcedente o pedido de indenização movido por um policial traído pela mulher. A indenização deveria ser paga pelo ex-amante da mulher já que o policial, por causa da traição, tornou-se alvo de chacota no seu ambiente de trabalho.

A sentença do juiz é uma peça interessante. Após classificar o policial como “corno solene”, o juiz lembra que alguns homens enfrentam problemas relacionados à virilidade e passam a culpar suas mulheres por esse fato, acusando-as de gordas etc.

Segundo o juiz o marido não se acha responsável pela situação, daí não aceitar que a mulher procure um amante e ameaçar matá-lo. Após sugerir ao marido traído que procure um psiquiatra o juiz avisa que a vitima não deve perder de vista que “a nega é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro” é só uma letra de samba. Termina dizendo que “pássaro que aprende a voar livremente não se adapta mais à gaiola… só se muito bem cuidado”.

Não se pode negar que se trata de uma sentença bem-humorada. E quem sou eu, primo, para duvidar do acerto de uma sentença como essa.

Mas o assunto é interessante e nos leva a outras situações presenciadas ao longo da vida. Tenho um amigo que elaborou uma curiosa hierarquia de homens cornos que, se bem me lembro é a seguinte: os que não aceitam a condição; os que aceitam; e os que não aceitam durante um tempo, mas acabam voltando atrás. Note-se que aí não está incluído o grande contingente dos corneados que jamais souberam que foram traídos.

Tenho certeza de que cada leitor é capaz de ilustrar as diferentes condições anteriormente apontadas, relembrando casos que presenciou ou de que teve notícia.

Da minha infância trago uma lembrança de um fato que só vim a entender anos mais tarde em conversa com um dos meus irmãos. Presenciei, certa vez, uma cena de filme: numa cidade do interior vi um homem ajoelhado diante da porta de um ônibus chorando e rogando a uma mulher que não fosse embora. Pela janelinha da jardineira que percorria estradas de terra um belo rosto de mulher observava impassível o homem que bradava a todos os ventos o seu coração partido.

Essa cena ficou gravada na minha memória. Ainda hoje consigo ver aquele homem alto e magro, branco como cera, ajoelhado na rua, chorando, inconsolável.

Como disse, só anos mais tarde vim conhecer detalhes da história. A bela mulher era casada com o cidadão inconsolável. Ela fora expulsa de casa após o marido descobrir que o traía justamente com um irmão dele. O rapaz, mais moço que o irmão, viera morar com o casal há alguns meses e o resto pode-se imaginar.

Então é assim que as coisas acontecem e as vidas se cruzam afetando destinos. Existem homens que convivem com a traição e outros para quem ela é inaceitável. Pessoas mais extremadas advogam que ninguém está seguro, é preciso cuidado. Isso é o que o juiz do caso citado quis dizer com aquela citação de letra de samba que, aliás, caiu muito bem na situação.

Então é isso, estão todos informados sobre a sentença do juiz.

Acabou? Como? E o que aconteceu? A mulher desceu do ônibus ou partiu?

Rapaz foi uma das cenas mais bonitas a que assisti nessa louca vida. O interessante é que, a certa altura, o motorista do ônibus, vendo o marido em prantos, resolveu perguntar à mulher se podiam seguir caminho.

A mulher disse que sim, mas logo que o ônibus saiu, parou metros adiante. E lá veio ela, formosa como uma flor desgarrada das nuvens, bonita de doer em seu vestido de lírios, correndo com na direção do marido que já se jogava ao chão em completo desespero.

Foi aí que ele renasceu: de um salto ergueu-se, foi em direção a ela e atracaram-se num beijo de dar inveja a muitos finais felizes de filmes.

Guardo essas cenas na memória e ainda agora me parece que o perfume exalado naquele reencontro está presente enquanto escrevo essas mal traçadas.

O fim? Ora, consta que, a partir daí, os três - ele, a mulher e o irmão dele - viveram felizes para sempre.

Escrito por Ayrton Marcondes

16 outubro, 2009 às 3:38 pm

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Bastardos Inglórios

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O diretor Quentin Tarantino é, antes de tudo, um mestre da narrativa. O seu filme “Pulp Fiction” continua sendo uma aula cinematográfica sobre a arte de contar histórias, desenvolvendo-se no mais genuíno estilo dos grandes romancistas.

Em acordo com esse retrospecto não se pode dizer que Tarantino nos surpreende com o seu mais recente filme, “Bastardos Inglórios”. É preciso lembrar que o maior fantasma dos criadores está na necessidade não só inovar como renovar-se. Por essa razão tantas vezes encontramos os chamados escritores de um só livro, aqueles que após a repercussão de uma obra não conseguem repetir o feito. Descontem-se da afirmação anterior os casos em que novas produções, ainda que boas, infelizmente não superam as expectativas do público.

Tarantino não padece desse mal. Para ele a criação surge como universo amplo no qual todo experimentalismo é possível. Com essa concepção filmou “Bastardos Inglórios”. O filme é dividido em cinco histórias cujo fio condutor é o embate entre nazistas aos judeus, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. Mas é justamente aí que Tarantino inova: ele trata o seu tema como obra exclusivamente de ficção, sendo que em nenhum momento tenta ser coerente com a história real.

É importante frisar que o diretor jamais pretende navegar nas águas da história, repetindo a abordagem usada em outros filmes sobre o holocausto. De fato, Tarantino não fez um filme de denúncia e jamais teve a intenção de mortificar a platéia com cenas de sofrimento de um povo perseguido. Acima do fato histórico e suas conotações está a ficção e nela situa-se o universo no qual Tarantino trabalha.

Quentin Tarantino toma emprestado a um dos maiores traumas experimentados pela humanidade apenas o contexto em que aconteceu e é absolutamente infiel aos fatos reais que o cercaram. Sob seu comando nomes como os de Hitler, Goebbels e Goering não passam de figuras dentro de um processo ficcional cujos destinos em nenhum momento se ligam aos das personagens reais que atuaram na Grande Guerra. Dentro desse contexto as peripécias da trama e mesmo o seu desfecho tornam-se imprevisíveis ao expectador dado pertencerem unicamente à imaginação e desejo do criador.

“Bastardos Inglórios” não é um filme sobre a violência do grande conflito mundial. Antes, trata-se de uma trama na qual o elemento mais forte é a sequência brilhante de diálogos entre as personagens. Há mais tensão na situação entre um inglês disfarçado de nazista e o nazista que o identifica que na ação do grupo de soldados de origem judaica, chefiados pelo incrível tenente Aldo – personificado por Brad Pitt -, conhecidos por torturar e matar soldados alemães.

Há quem tenha visto no filme de Tarantino a intenção de mostrar vingança dos judeus contra os nazistas. Nada mais absurdo. A seu modo o diretor expõe as fraquezas humanas de alemães e judeus mostrando-os capazes dos mesmos delitos cujas proporções dependem de quem dispõe de mais força e poder. A catedral do nazismo é mostrada em sua imperfeição e loucura através de um Hitler fanatizado por fatos menores que o genocídio que se pratica diariamente. Goebbels nada mais é que um aspirante de cineasta que produz filmes para sua glória pessoal e para que Hitler aprove.

Nesse mundo de vaidades, intrigas, violências, medos, perseguições, racismo e fanatismo, ninguém escapa porque o homem é um ser imperfeito e engaja-se em ações que permitam a ele dar vazão aos seus instintos.

Num filme de tal dimensão destaque-se o trabalho dos atores e a produção impecável. Brad Pitt está bem como o tenente Aldo Raine no comando dos judeus que matam nazistas. Mas o grande papel fica por conta do coronel nazista Hans Landa, interpretado por Cristoph Walts que persegue e localiza judeus. O irretocável Landa desde o início nos propõe a direção de suas ações : ele nos avisa que seu mérito é não pensar como alemão e sim como os judeus, daí o seu faro para encontrá-los onde quer que se escondam.

“Bastardos inglórios” é um filme sobre cinema e no cinema se resolve. Consegue isso em dois planos: no universo da ficção trabalhada e nas cenas finais da trama engendrada por Quentin Tarantino.

Uruguai X Argentina

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Cinco da tarde. Onde eu gostaria de estar agora? Ora, Montevidéu, naturalmente. Acontece que o clima que precede os grandes jogos é mágico, feito para ser vivido e bem aproveitado. Dá para sentir daqui o desespero da torcida argentina invadindo o Uruguai; do mesmo modo não é impossível respirar-se o ar de necessidade de vitória que rola entre os uruguaios.

Futebol tem disso: consegue catalisar a emoção de um povo inteiro, estabelecendo entre as pessoas um laço de unidade que nenhuma outra manifestação logra realizar. Estão, pois, os uruguaios em pé de guerra, atrás de uma classificação que, preferencialmente, desclassifique a Argentina.

Imagino o clima de agora nas ruas de Montevidéu; imagino milhares de pessoas que já se deslocam para o velho estádio Centenário, palco de tantas glórias do pequeno país do Sul; e imagino Buenos Aires, tão cosmopolita, com o orgulho de sua seleção nacional abalado pelos péssimos resultados que têm conseguido.

Quem vai ganhar? Guerra é guerra, não adianta especular. Se tivesse que apostar num bolão, não saberia que placar colocar. Mas não preciso mentir que a minha preferência pende para o lado do Uruguai. Aliás, creio que não só a minha, mas a de todo mundo por aqui de vez que, no futebol, a Argentina é a nossa maior rival.

Também não adianta mentir sobre o fato de que se a Argentina não for classificada para a próxima Copa do Mundo haverá muita alegria entre os brasileiros. E comemorações.

A hora do grande e decisivo jogo se aproxima. Que vença o melhor? Ah, sim, desde que seja a equipe que veste a camisa da Celeste Olímpica.

A pior coisa do mundo

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São frequentes notícias sobre roubo de espécies nativas do Brasil, algumas delas ameaçadas de extinção. O que está em jogo é a biodiversidade do país e o uso de substâncias que acabam sendo patenteadas no exterior.

A pirataria parece não ter limites. Semana passada li que as caranguejeiras nacionais valem 80 reais, cada uma, no mercado externo. Não é difícil imaginar um bando de esfomeados correndo atrás de caranguejeiras para entregá-las a bandidos que as repassarão a outros países.

Ao Estado totalitário do livro 1984, de George Orwell, é insuportável qualquer tipo de liberdade, principalmente a de pensar e questionar a política do governo. Os que infringem as regras são severamente punidos sendo, inclusive, submetidos à tortura. Para isso existe uma sala onde o torturado é submetido à pior coisa do mundo.

O que é a pior coisa do mundo? Depois de algumas páginas ficamos sabendo que a pior coisa do mundo depende do medo de cada um. Para Winston Smith, a personagem de Orwell que é torturada, a pior coisa do mundo é um grupo de ratos que são colocados perto do seu rosto, separados por uma pequena grade.

Não sei dizer se as baratas são a pior coisa do mundo para a maioria das mulheres. Há que se lembrar do efeito devastador que uma simples perereca é capaz de causar nas pessoas do sexo feminino.

Quanto a mim, nunca me dei bem com serpentes e aracnídeos. Não se trata de medo que me paralise a ponto de não ter coragem para enfrentar esses seres ou sair correndo. Como em geral acontece, o medo está ligado a alguma passagem da infância, esquecida ou não. No meu caso trata-se de uma velha casa de fazenda que pertenceu ao meu avô e onde dormíamos de vez em quando. Era dessas casas com piso de madeira e porão habitado por toda sorte de bichos, predominantemente aranhas e escorpiões. Eu me lembro de meu pai ao meu lado, durante a madrugada, afastando da minha cama um escorpião. Assim nasceu o medo. Freud explica.

Mas os meus medos não são o meu assunto.  O meu tema é a recente descoberta de uma aranha boazinha, porque vegetariana. Ela vive no México e foi batizada como Bagheera kiplingi, nome que de modo algum faz justiça a ela. Acontece que “Bagheera” é o nome de um predador - a pantera das histórias de Mowgli, o menino lobo.

A notícia sobre a aranha vegetariana foi divulgada pela revista científica “Current Biology”. Trata-se, até onde se sabe, da única aranha do mundo a comer praticamente só plantas. E que não se assustem os leitores com esse “praticamente”: ocasionalmente a Bagheera pode comer larvas de formigas que vivem em folhas de acácias. Além disso, suspeita-se que ela não coma as larvas por simples gula. Os cientistas que a descobriram acham que as larvas ingeridas talvez forneçam à Bagheera bactérias da flora intestinal das formigas, permitindo a ela digerir pontas de folhas.

O que não se pode tirar da Bagheera é o jeitão agressivo que toda aranha tem. Tudo bem que ela é gente boa, vegetariana e tal, mas para quem tem medo continua sendo aranha. Vai daí que o melhor mesmo é saber da existência só por fotografia.

Relato sobre sonhos

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Em 1977 o escritor argentino Jorge Luís Borges proferiu sete conferências no teatro Coliseu, em Buenos Aires. Elas foram reunidas em livro com o título de “Sete Noites” (publicado no Brasil em 1983, Editora Max Limonad). A segunda dessas conferências recebeu o título de “O pesadelo”. Nela Borges fala sobre sonhos e pesadelos. Sendo os sonhos o que ora nos interessam, vamos ater-nos a algumas observações feitas por Borges em relação a eles, observações essas úteis para que possamos nos aproximar de algum tipo de explicação sobre a breve história que contaremos a seguir.

Borges lembra-nos de que não se podem analisar os sonhos diretamente, mas somente através da memória que guardamos deles. O escritor cita Sir James Frazer, antropólogo que publicou, em 1922, a obra que recebeu o nome de “O ramo de Ouro” (publicado no Brasil em 1982, Zahar Editores). Segundo Frazer os selvagens não distinguem entre a vigília e o sonho de vez que para eles os sonhos nada mais são que episódios da vigília. Borges acrescenta que para os poetas e os místicos toda vigília parece ser um sonho. Cita Calderón para quem a vida é um sonho e Shakespeare que afirma que “somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos”.

A literatura nos oferece várias interpretações a respeito da dualidade de sonho e vigília, não sendo raras narrativas em que ambas se confundem, sendo impossível determinar em que lado fica a realidade. Escritores latino-americanos tratam do assunto e na literatura árabe encontram-se narrativas do mesmo gênero.

Recorro a essas informações antes de narrar o estranho caso de um homem que, entre a vigília e o sonho, confundiu-se justamente no tocante à realidade. Mas vamos ao caso que falará melhor por si só.

A princípio ele estranhou, mas logo admitiu ter dupla existência: o funcionário público que era durante o dia deixava de existir ao adormecer e sonhar que era uma jovem, vivendo noutra cidade e país.  Já a vida dessa mulher interrompia-se no momento em que ela se deitava, fechava os olhos e sonhava que era um funcionário público. 

Durante algum tempo, o funcionário e a jovem viveram um no sonho do outro. De naturezas muito semelhantes, conheciam-se apenas através dos sonhos e um se deliciava com as aventuras do outro nos mundos diferentes em que viviam. Essa situação perdurou até a ocasião em que o funcionário começou a sair mais cedo da repartição onde trabalhava para tentar adormecer.  E pioraram ainda mais quando ele passou a usar soníferos.  Agora o funcionário passava quase todo o tempo dormindo e a jovem raramente pregava os olhos. Até o dia em que ele sonhou que ela tomava calmantes fortes para adormecer.

Foi nesse período que o funcionário passou a dormir pouco e adoeceu. Desesperava-o a idéia de estar condenado à vigília para que a jovem de seus sonhos pudesse dormir e sonhar. Debalde um psiquiatra tentou convencê-lo de que a sua vigília não era determinada pelo sonho de alguém cuja existência não poderia ser real.  

Não será preciso dizer que o caso evoluiu mal. A internação e grandes doses de tranqüilizantes resultaram infrutíferas. No final, o funcionário, magro e torturado, andava de um lado para outro dizendo coisas desconexas.

Conta-se que na sua última hora ele se deitou e fechou os olhos. Há quem diga que talvez ele tenha conseguido dormir por alguns instantes. Entretanto, logo abriu os olhos e balbuciou algo sobre não temer a morte porque descobrira a chave do enigma: ele jamais fora real, sua existência nada mais fora que o sonho de outra pessoa.

Esse caso foi apresentado a estudantes de psiquiatria que divergiram, classificando-o apenas com o diagnóstico genérico de “loucura”. Análises da estrutura do cérebro do funcionário, realizadas após a autópsia, não revelaram qualquer tipo de anormalidade.

Se Sir James Frazer estiver certo quanto à não distinção entre sono e vigília não é impossível que a jovem tenha sonhado a loucura e a morte do funcionário.