Arquivo para novembro, 2009
Dinheiro público carregado nas meias
Em matéria de corrupção o Brasil é pós-graduado. Não bastam os atos ilícitos em si: vez ou outra eles são ilustrados com tristes imagens de corrupção explícita. Mas, evolui-se: o dinheiro passou de dentro das cuecas para o interior das meias.
Uma coisa é tomar conhecimento de que fulano de tal é corrupto, tendo praticado tal e tais deslizes; outra é assisti-lo ao praticar o ato, na mesma dimensão que se presencia, por exemplo, uma cena de sexo explícito.
A intimidade de um crime, quando exposta, estarrece e indigna. Além disso, faz de quem a presencia partícipe de um momento de degradação. Existe a natural revolta diante do ato; há a crítica feroz ao que é inconcebível; mas, também vigora a desilusão com a natureza humana e a parcela de vergonha que nos cabe por um erro gravíssimo que, pelo menos em parte, nos faz sentir culpados.
Culpados? De quê? O cidadão mete a mão no dinheiro público e eu tenho lá alguma responsabilidade em relação ao ato dele? Pois é. Mas, esse cidadão pode ter sido eleito pelo meu voto, eu posso tê-lo levado, degrau por degrau, ao cargo que atualmente ocupa, tendo por obrigação zelar pelo bem público. Também não custa lembrar de que o mesmo cidadão pode ter sido acusado, no passado, de atos ilícitos que não levei a sério, achei que não eram graves e resolvi ignorá-los na hora de votar. E aí está o resultado. Então, sendo honesto comigo mesmo, caso tenha agido assim, devo assumir a parte que me toca nesse triste espólio.
Meu caro eleitor, as eleições vêm aí. Você que sempre se pergunta por que neste raio de país o voto é obrigatório, você que preferiria ficar em casa ao invés de comparecer à sessão na qual vota, você que não acompanha política, você que recebe algum tipo de ajuda do governo e acha que vive no melhor mundo possível, você que recebeu promessa de emprego de um candidato, você não pode ignorar o fato de que é um cara muito importante. O seu voto, meu caro, pode mudar muita coisa, no mínimo mudar a cara dos corruptos ou determinar um rodízio entre eles. Portanto, pense muito bem no que estará fazendo na hora em que entrar naquele cubículo onde está a urna ou o aparelhinho em que se digitam os votos.
Olhe, não estou dizendo tudo isso a você gratuitamente. Acontece que a primeira coisa que vi hoje foi a cena do presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Leonardo Prudente, recebendo dinheiro do então presidente da Codeplan (empresa do DF), Durval Barbosa. Veja só: o Prudente foi de uma imprudência total porque recebeu o dinheiro das mãos do Barbosa e enfiou parte nos bolsos, parte dentro das meias. Foi exatamente essa cena, a de um político enfiando notas de reais nas meias, locupletando-se com dinheiro público da maneira mais grosseira e explícita possível, que me fez sentir envergonhado.
Quem gravou a cena? O Barbosa. Aliás, também foi ele quem gravou a cena do governador Arruda recebendo aquele dinheiro que, segundo se diz, era para comprar panetone para os pobres.
Depois disso tudo, o mínimo que posso desejar a você é um bom dia.
Fisiologia dos escândalos no Brasil
No país dos escândalos mais um não faz grande diferença, acostumados que estamos com as soluções “à brasileira”.
Vá lá, a descoberta das tramóias é sempre impactante. Personagens importantes estão envolvidas, existem gravações sobre os atos ilícitos e a imprensa deita e rola apontando os corruptos. Páginas inteiras são preenchidas com resultados de investigações, aparecem personagens menores como secretárias e motoristas que de repente atraem a atenção e são chamados a depor nas CPIs do Congresso. A Polícia Federal se agita, o Ministério Público sai a campo até que, finalmente, o processo entra na fase de andamento lento.
É assim que o escândalo vai sendo esquecido, tendo a seu favor uma variável sempre presente: a meio caminho outro escândalo é descoberto e ganha notoriedade, abafando o anterior. Então recomeça o ciclo, novas personagens importantes aparecem, gravações são exibidas, a imprensa denuncia, secretárias e motoristas depõem e todo o aparato policial e jurídico entra em ação.
Se for correto o princípio que define como normal aquilo que é mais frequente, então corremos o risco de normalizar a corrupção e os escândalos dela decorrentes. Se você não concorda pense um pouco sobre a rotina de escândalos no Brasil e as personagens que estão por detrás dela, alguns deles reincidentes e muito hábeis em manobras corporativas que até mesmo os preservam em seus cargos. Veja-se lá o caso Sarney. O ex-presidente da República passou, neste ano de 2009, pelo pior inferno astral da sua carreira. A vida dele foi devassada, podres estouraram para todo lado e quase todo mundo apontou o dedo exigindo a sua renúncia ao cargo que atualmente ocupa à frente do Congresso. E deu exatamente no quê?
A diferença que existe entre pessoas como eu e você e um homem como José Sarney é que ele conhece profundamente as regras do jogo. Sarney enfrenta a tempestade com um sorriso maroto nos lábios, como aquele jogador que usa cartas marcadas e não perde nunca. Além disso, mais que ninguém ele é perito nessa matéria chamada “fisiologia dos escândalos no Brasil”, daí utilizar muito bem a rotina dos desvios de atenção, do novo escândalo que abafa o anterior.
Do mesmo modo o mensalão vai perdendo a sua força, tanto que o antes notório Marcos Valério hoje está reduzido a poucas e diminutas citações na mídia que, há não muito tempo, não parava de falar dele.
E eis que temos um novo escândalo em andamento, desta vez sendo citado até mesmo o governador de Brasília, Sr José Roberto Arruda. Para quem não se lembra, Arruda é o mesmo homem que, em 2001, foi acusado de violar o painel de eletrônico de votação do Senado e acabou renunciando ao cargo por esse motivo.
Está circulando na internet um vídeo estarrecedor no qual Arruda recebe um pacote de dinheiro das mãos de um interlocutor. Não fica claro ao que o vídeo se refere, supondo-se que seja de 2006, ocasião em que Arruda era candidato ao governo do Distrito Federal. Segundo o advogado do governador trata-se de um pacote de dinheiro destinado à compra de panetones para pessoas carentes. Normalíssimo, portanto.
O governador do Distrito Federal está sendo acusado de corrupção. A Polícia Federal realizou uma operação para averiguar um esquema de propina que envolve diretamente a pessoa do governador e alguns de seus acessores. A imprensa já noticia amplamente o escândalo. Existem gravações. Personagens importantes estão envolvidas. O Ministério Público entra em ação. Em pouco correrão os processos, tudo de acordo com o figurino esperado.
Desta vez vai dar em alguma coisa além de uma ou outra cassação de mandatos?
El Mal Entendido
Não sei precisar exatamente o ano, mas seguramente foi no final da década de 70. Liguei a televisão a cores – a primeira que comprei após um demorado período de imagens em preto-e-branco - e dei com a imagem de um homem tocando um bandonéon, acompanhado de outros quatro músicos. Tratava-se de tango, obviamente, mas tocado de um jeito diferente, muito forte, bronqueado, sofrido e, principalmente, belo.
Assisti até o fim, preso àquela música que me parecia estranha - ouvia pela primeira vez - mas, que me falava muito de perto. Era um show ao vivo, se não me engano no campus da USP; o músico – soube no final – chamava-se Astor Piazzola.
O passo seguinte foi arranjar um tempinho em meio à correria da semana para ir até á mais cotada loja de discos de São Paulo, o Breno Rossi, localizada na Rua 24 de Maio, centro da cidade. Defronte a ela existia outra loja importante, a Casa Manon, que além de discos, comercializava instrumentos musicais.
Voltei para casa com o long-play de Piazzola. No fim de semana veio me visitar um amigo e começamos a ouvir Piazzola ali pelas duas da tarde, de vez em quando tomando uma cerveja. Eram nove da noite quando ele se foi. Ouvíramos repetidas vezes “Buenos Aires Hora Zéro”, “Adiós Nonino”, “Libertango” e outras famosas composições tocadas pelo quinteto de Piazzola. Ficáramos irresistivelmente encantados.
Desde então jamais abandonei a música de Piazzola, sempre atento às suas parcerias com grandes músicos como aquela com o saxofonista Gerry Mulligan que resultou no estupendo disco “Piazzola & Mulligan” do qual faz parte a maravilhosa “Years of Solitude”.
Piazzola morreu em 1992. Agora sai pela Editora Edhasa uma biografia do músico argentino, de autoria de Diego Fisherman e Abel Gilbert, cujo título é “El Mal Entendido”. Após muitas pesquisas entenderam os autores que Piazzola construiu uma imagem de si mesmo nem sempre verdadeira. Assim, ele teria inventado uma biografia mais pertinente ao que ele deveria ser e realmente não foi. Os autores citam fatos relevantes para comprovar as suas afirmações: Piazzola não tocou com alguns artistas norte-americanos por ele nomeados, não era grande entendido de música clássica e assim por diante.
Mas o livro não se reduz à crítica ao modo de ser de Piazzola. Trata-se de uma biografia que passa pela infância do músico em Nova York, a influência do jazz em sua música, a paixão pelo tango e as relações dele com o peronismo e a ditadura militar argentina. A tônica é sempre a da busca do status de músico sério e importante no contexto local e internacional.
Os autores não deixam de reconhecer a importância do músico e contextualizam a posição dele em seu país. Entretanto, ao folhear as páginas do livro e ler várias partes ao acaso fico com a impressão de que não gostaria de conhecer tantos detalhes que envolvem a trajetória do homem Piazzola. Basta-me o músico que conheço através dos solos de seu bandonéon e composições. O fato é que prefiro apenas o Piazzola que gravou a música “Balada por um Loco” com o “cantante” Roberto Goyaneche.
Pode até ser que o meu posicionamento nada tenha de positivo em relação à exaustiva pesquisa feita pelos autores de “El Mal Entendido” na sua busca da verdade.
Mas, que fazer se me comove, a cada vez que me contam, a história de que Piazzola ao receber, em Nova York, a notícia da morte do pai trancou-se num quarto, pedindo que não o incomodassem e compôs, de uma só tirada, “Adiós Nonino”? Que fazer se prefiro essa versão àquela apresentada pelos autores de que essa história não passa de um mito inventado por Piazzola e pessoas próximas já que ele era um intelectual e escreveu calculadamente notas para fazer chorar?
Coisas para não pensar
O controle absoluto do pensamento é improvável ainda que certas doutrinas relacionadas à mente acenem com essa possibilidade. Talvez monges tibetanos, budistas e seguidores de outros credos alcancem avanços nesse campo. A imagem do jovem Siddhartha, mais tarde Buda, meditando é um convite ao isolamento das coisas terrenas, ao combate aos desejos que sempre trazem dor e a uma imersão em estados superiores do espírito. Cultivar a mente, praticar o bem e evitar o mal são os ensinamentos de Buda, úteis quando o que se pretende é atingir a paz interior que conduz à felicidade.
Mas como seguir essas diretrizes no convulso mundo de nosso dia-a-dia? Que fazer com o estresse inerente a toda sorte de atividades que começam pelas cada vez mais difíceis relações entre os seres humanos?
Sobre esse assunto conversei hoje de manhã com um homem bastante estranho, o Sábio que mora no terceiro andar. Primeiramente devo dizer que a figura do Sábio não é nada exemplar. Homem de pouco mais de quarenta anos de idade, o sábio veste-se de modo insólito: usa calça jeans e tênis acompanhados de uma bata indiana bastante colorida. No meio da testa traz sempre o bindi que, diz ele, simboliza a condição de pertencer a uma casta superior. Completam o quadro os longos cabelos desgrenhados e a barba muito comprida. Aspirante de oráculo é o que ele parece.
Na opinião do Sábio o mundo moderno é contraditório, daí abrigar o choque contínuo entre forças antagônicas. Explica ele que tremendas batalhas são travadas no terreno do invisível gerando-se energias avassaladoras que afetam a vida no planeta. Deriva do grande embate entre forças opostas o estresse do cotidiano. Trata-se de um fluir contínuo de energia que se propaga pelos corpos, imantando-os. Por essa razão, passam os corpos a atrair tudo o que está perto deles, inclusive outras formas de energia, negativas, provocando depressão e estresse.
Essas coisas o Sábio me disse, por vezes olhando para cima a apontando o dedo indicador para o Cosmos, fonte primária de todas as energias circulantes que afetam o comportamento humano.
Dado serem constantes e irreversíveis os fatos apresentados pelo Sábio compreendi que vivemos num planeta onde nada ou pouco podemos fazer no sentido de evitar o afluxo permanente das energias que atravessam os nossos corpos e impactam dramaticamente as nossas atitudes. Disse isso ao Sábio que sorriu e acusou-me de falta de conhecimento. Justamente - afirmou ele – é aí que entram os ensinamentos de Buda. É preciso deixar-se iluminar, buscar a luz – acrescentou.
A partir daí o Sábio estendeu-se sobre os mistérios do budismo. A conversa já ia longe quando dei um jeito de abreviar o encontro perguntando a ele sobre alguma forma prática de reduzir o estresse. Foi quando o Sábio me falou sobre as tais coisas em que não se deve pensar, coisas que nos aborrecem e que temos que evitar. Na prática trata-se de implantar um sinal de alerta no cérebro capaz de soar toda vez que uma sequência de pensamentos nos leve a um assunto que a todo custo deve ser barrado. Segundo o Sábio, com algum esforço pode-se bloquear uma rotina de pensamentos componentes de um contexto maior ao qual chegaremos caso não se evite a progressão deles. Os exemplos são vários e ligados a aborrecimentos cotidianos como contas a pagar, doenças, declaração do Imposto de Renda, atividades de políticos, desemprego, corrupção, violência etc. Nunca pensar nisso tudo reduz dramaticamente o estresse.
De nada me adiantou protestar que não pensar em nada disso representaria não fazer parte do mundo etc. Diante da minha incredulidade o Sábio disse:
- É por você ser como é que vive tão estressado. Evite e ignore compromissos. Procure a luz, ilumine-se. Só assim encontrará a paz e a felicidade.
Posto o que entrou no elevador e recolheu-se ao seu Nirvana, localizado no terceiro andar.
O que há com os jovens?
Tudo bem, o rapaz cresceu na favela, não teve oportunidades, compreendeu que o Estado não vai resolver o problema dele e foi iniciado bem cedo no crime. Para ele a violência é algo natural, faz parte do cotidiano, matar não passa de um ofício estimulante com o qual se consegue alguma coisa. Tudo isso sem crise, porque filosofia é coisa de gente estudada, de filósofo e sociólogo, da gente toda que quer explicar o inexplicável que é essa merda de vida.
Tudo bem. Então o rapaz que está nessa é capaz de atirar num casal dentro de um carro só para roubar qualquer coisa, ele faz isso sem remorso e do mesmo jeito que mastiga um pão com mortadela. Para esse carinha aí até que se pode buscar alguma explicação, para ele que mata, depreda coisas, destrói por destruir, arrebenta bens públicos e comete toda sorte de maldades que nos deixam parvos e revoltados. Explicação, nunca justificativa.
Mas, que dizer dos bem nascidos, dos que crescem em lares separados do mundo por paredes firmes, dos muitos que até viajam para o exterior de vez em quando e dessa cambada da camada alta que opta pelo mesmo caminho dos bandidos em formação? Pois esses outros carinhas, os bem-nascidos, não trazem em seus currículos passagens por favelas, momentos de fome, obediência a milícias, adestramento para uso de armas avançadas e tudo o mais que corre solto entre a bandidagem.
Você aí me diga: o que há com esses jovens bem-nascidos que fazem o diabo, desrespeitam leis, depredam os ambientes escolares e até botam fogo em índio e mulher grávida? O que há com esses rebeldes sem causa que fazem questão de ser iletrados ainda que a eles se ofereça o que há de melhor em termos de formação?
Alguém tem que responder a essas perguntas para que alguma coisa possa ser feita contra a disseminação da violência gratuita a que assistimos quase todo dia. Isso digo por que não é possível aceitar e compreender todo esse arsenal de atitudes condenáveis e absurdas.
E não adianta comparecer com as explicações de sempre: o exemplo vem de cima, os pais trabalham fora e não cuidam da educação dos filhos, é preciso resolver o problema da droga na porta – e dentro – das escolas, num país onde existe tanta impunidade só pode acontecer isso, a corrupção é uma epidemia difícil de controlar daí afetar diretamente os valores em que se acredita, existe demasiada liberação de costumes etc.
As imagens recentes exibidas na televisão, mostrando estudantes arrebentando escolas, são inaceitáveis e apontam para um tipo de deformação decorrente de falha social. O crime não se justifica independentemente da origem de quem os pratica. Se não podemos aceitar a violência dos jovens oriundos de favelas ou de condição social inferior o mesmo se pode dizer, com maior ênfase, em relação aos jovens pertencentes a camadas sociais mais privilegiadas.
Tudo bem? Não, nada de tudo bem, nada está bem.
Conversa no táxi
Entro no táxi na esquina do canal. O taxista é um homem de cerca de 60 anos, muito sorridente. Mal me acomodo e lá vem ele com comentários sobre o calor e o inevitável papo sobre o campeonato brasileiro.
Atuação de juízes, resultados de jogos, classificação das equipes, pressão para o Flamengo ser campeão, sobre isso e muito mais fala o homem, pedindo a minha opinião. Até que passa uma moça bonita e o assunto muda para beleza e coisas boas de ver. É nessa altura que ele assume um tom grave e dispara alguns impropérios contra o destino.
É curiosa a teoria do taxista. Ele me diz que as mulheres bonitas são as mais sensíveis a problemas que afetem as suas aparências. Respondo que se isso for verdade talvez seja porque nas mais bonitas se percebe mais facilmente a ação do tempo sobre a beleza delas.
Ele não concorda e acrescenta que esse mundo foi feito para que tudo acabe lentamente, de modo que possamos presenciar a decrepitude. Nessa altura decido olhar para o espelho retrovisor, buscando a imagem do rosto do taxista: pode bem ser que eu esteja vivendo uma impossível experiência surrealista e tenha entrado num táxi dirigido pelo próprio Machado de Assis.
Machado ou não, o homem prossegue com a sua teoria:
- O senhor talvez não tenha prestado atenção, mas como explicar certos acontecimentos? Já disse ao senhor que o destino da beleza das mulheres é minguar dia-a-dia, irreversivelmente. Então, basta observar bem os fatos para concluir que algo de estranho acontece com certas pessoas, como se uma força maior quisesse afirmar a sua presença e o controle sobre todos nós. O senhor se lembra do João do Pulo? Ela era recordista mundial de salto triplo. O que aconteceu a ele? Ora um acidente no qual ele perdeu o que tinha de mais precioso: uma perna. Pode? E aquele locutor esportivo, o Osmar Santos? Pois num acidente de carro ele perdeu a voz que era o seu instrumento de trabalho. E quanto ao Lars Grael, campeão de vela cuja perna foi decepada durante um acidente em pleno mar? O que o senhor acha disso?
Eu ia dizer a ele que Jorge Luís Borges, cuja paixão era ler, ficou cego e um meu tio, matemático, sofreu um derrame que lhe roubou apenas a capacidade defazer contas. Também me ocorreu um amigo que casou-se com uma modelo lindíssima e sofreu irreversíveis problemas de natureza sexual, ele que sempre fora tão galante e mulherengo.
Mas não disse nada por que chegamos ao local determinado por mim. Já na calçada parei para olhar o carro se afastando e tive a impressão de que nada daquilo fora real, na verdade o motorista não dissera uma só palavra e eu imaginara toda a conversa.
Não sei dizer. Mas entrei no elevador pensando sobre a eterna discussão quanto à bondade de Deus. Lembrei-me das teorias que afirmam que Deus só seria realmente completo criando tudo o que existe, daí ter Ele criado também o mal ou não seria verdadeiramente Deus. Eu me interrogava sobre a bondade divina ao ferir pessoas tirando-lhes justamente aquilo que elas têm de melhor quando cheguei, finalmente, ao escritório e vi pela janela o mar, azul, lindo, maravilhoso, testemunhando com alguma insolência os contrastes deste mundo.
Tinha o olhar de cachorro abandonado…
Confesso que esperei com alguma ansiedade os comentários sobre a morte do ex-prefeito de São Paulo, Sr. Celso Pitta. Em primeiro lugar porque a morte de qualquer pessoa leva-nos a uma atitude silenciosa, quando não respeitosa. Em segundo porque no caso de Pitta não há que se negar que a sua trajetória pública foi marcada por uma série de inconveniências, acusações graves de corrupção e até mesmo prisão. Mas, ele morreu. Então tive a minha curiosidade aguçada sobre o comportamento da imprensa que não o poupou em vida. Como o tratariam na morte? Desde logo me pareceu que no caso de Pitta não deveriam ser condescendentes com ele. Sou dos que teimam em lembrar-se do passado das pessoas que muita gente escolhe apagar quando elas morrem. É assim que surgem nas famílias verdadeiras santidades, pessoas santificadas após a morte porque o luto serve para apagar a lembrança de falcatruas, maldades e outras irresponsabilidades praticadas por elas quando vivas.
Entretanto, devo dizer que fiquei verdadeiramente embasbacado com o artigo de autoria do Sr. Fernando Barros e Silva, publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 23/11/09, com o título “O ocaso de Pitta”.
De fato, o texto do Sr. Fernando Barros dá o que pensar não sobre os fatos ligados à trajetória de Pitta, mas quanto ao tratamento dado à pessoa do falecido ex-prefeito e as circunstâncias em que esteve envolvido.
O texto começa falando sobre a morte já em vida do ex-prefeito, alvo da operação Satiagraha, filmado em casa sendo preso de pijamas. Depois desce às terríveis relações entre Pitta e Maluf, seu mentor que o levou do anonimato à glória e desta à ruína. “Pitta foi empregado de Maluf na Eucatex antes de ser seu empregado na vida pública” – afirma o articulista, assim resumindo as relações entre os dois homens públicos.
Mas é no final que Fernando Barros se expressa com maior ênfase sobre o passamento de Celso Pitta:
“A secura das mensagens de pêsames que a família recebeu mostra o ostracismo em que se achava. Trinta pessoas foram ao enterro. Seria útil contar melhor a vida deste político acidental, que tinha o olhar de cachorro abandonado e parecia triste até quando sorria”.
Longe de mim defender o indefensável Celso Pitta que surgiu por aí sob a tutela de Paulo Maluf e cuja vida pública é de triste memória. Mas, não me lembro de ter lido obituário da natureza do escrito pelo Sr. Fernando Barros e Silva em relação a políticos falecidos nos últimos anos no Brasil, ainda quando corruptos e tudo o mais. Esse “tinha o olhar de cachorro abandonado” teria sido convenientemente utilizado quando o homem estava vivo. Podería-se, então, escrever: “tem o olhar de cachorro abandonado…”.
No fim, fico me lembrando daquele dito popular tão usado por aí, o tal “chutar pessoas mortas”. O senhor Fernando de Barros e Silva que não me perdoe: mas, foi o que ele fez.
Villa-Lobos, intérprete do Brasil
O jornalista Gilberto de Mello Kujawski publicou em seu site um belo artigo sobre o maestro Villa-Lobos. O endereço eletrônico é:
http://www.gilbertokujawski.com.br/
Para Kujawski a lição maior de Villa-Lobos é a possibilidade de “integrar todas as contradições na unidade deste país que “tem a forma de um coração”, o Brasil de todos nós.”
Tom Jobim contava que, certa vez, foi visitar Villa-Lobos e o encontrou trabalhando em meio a muitos ruídos: rádio ligado, pessoas falando etc. Diante disso, Jobim perguntou ao maestro se o barulho não o atrapalhava. Ao que ele respondeu:
- O barulho é para o ouvido externo; o interno é o que ouve e compõe.
Villa-Lobos ouviu o Brasil, país que traduziu em sua música. Sua obra é monumental de vez que, através de sons, logra representar toda a diversidade do país sobre a qual nos fala Kujawski em seu artigo.
Com frequência estudiosos publicam livros sobre escritores considerados intérpretes do Brasil. Os nomes variam de um autor para outro, mas as listas sempre incluem Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e alguns outros. Tem-se esquecido de incluir Villa-Lobos nesses estudos: o maestro interpretou o país com outra ferramenta, a música, e o fez de forma magistral.
Aquecimento Global
Há quem não acredite no aquecimento global ou quem não esteja nem um pouco preocupado com ele. Para muita gente essa história de emissão de gases-estufa não passa de argumento para discussões intermináveis que se traduzem em pressões entre governos. Ao entrar na pauta de negociações o aquecimento global serviria a interesses vários, nem sempre direcionados ao bem estar comum. E assim por diante.
De uma coisa podemos estar certos: pouca gente se dispõe a abrir mão de seu modo de vida em prol da saúde do planeta. Nos países ricos prevalece a idéia de que os mais pobres é que devem ser mais contidos. O “The american way of life” é uma prova substancial dessa afirmação.
O recente encontro entre os presidentes Obama e Hu Jintao foi uma decepção em termos de acordos climáticos. É preciso lembrar que, juntos, EUA e China são responsáveis pela emissão de 40% dos gases responsáveis pelo efeito estufa. O presidente chinês fechou a conversa com a seguinte frase: “Cada país fará a sua parte de acordo com a sua capacidade”. De concreto, nada. Para Obama o mundo deve ser convocado para buscar a solução para o problema climático.
A oportunidade está próxima: dentro de poucos dias terá início a Convenção de Mudanças Climáticas da ONU, a ser realizada em Copenhague. Se atentarmos para a evolução anterior das discussões sobre o assunto infelizmente não teremos motivo para achar que do encontro sairá um tratado capaz de reduzir a emissão de gases-estufa.
Enquanto isso, o clima vai sendo alterado e a olhos vistos. Não me lembro de períodos tão longos de transformações climáticas abruptas e com conseqüências danosas para a população. O sul do Brasil tem sido alvo de grandes tormentas que ultrapassam as médias anuais desse tipo de acontecimento. Grandes ventos, tornados, vendavais, chuvas e enchentes têm se tornado rotina na vida de milhares de pessoas.
É indispensável que pelo menos um grande passo seja dado na reunião de Copenhague. Trata-se da necessidade de minimizar um risco que cresce a cada dia. Segundo um relatório das Nações Unidas, de 2006, a população humana atual de 6,2 bilhões de habitantes deverá a chegar 9,2 bilhões em 2050. Serão mais 2,5 bilhões de pessoas alimentando-se, poluindo, grande parte delas dirigindo carros.
Está mais que na hora dos governos buscarem soluções alternativas para o problema da energia. Todo mundo repete isso e não se pode negar que se dissemina cada vez mais a consciência coletiva sobre essa necessidade. Mas de nada adianta ficar nas palavras como, aliás, acontece com esse texto.
É preciso agir: acordos entre governos, ações efetivas e a participação das populações de cada país. Sem romantismo. Sem essa de que o nosso pobre planeta está ameaçado e precisamos fazer alguma coisa. É para fazer e pronto. As gerações futuras agradecem.
Domingo
O dia começa sob intenso calor. Na fila da padaria um homem fala sobre a explosão demográfica prevista para o litoral, devida à descoberta do pré-sal. A Petrobrás vai ocupando espaços, o governo do Estado projeta obras, o mundo junto ao mar parece encolher-se diante disso que chamam de progresso.
Alguém se anima a dizer que tudo isso é muito bom, novos empregos serão gerados na região. Um senhor, idoso e provavelmente aposentado, interfere dizendo que já viu esse filme antes, no fim as grandes corporações ganham e para o bolso do cidadão comum nada.
Não deixa de ser interessante ouvir o que dizem as pessoas na rua. O jornaleiro da esquina, um sujeito meio fechado, de uns tempos para cá deu de puxar conversa. É louco por futebol, santista roxo e não gostou muito da candidatura de última hora do Teixeira para presidente do Santos. Para ele está na hora de mudar, gastar mais dinheiro com o time que com comissão técnica. O Luxemburgo… e por aí vai.
O porteiro do prédio onde moro é corintiano até o pescoço e tem um radinho de pilha sempre ligado em programas esportivos. Ele reclama dos cariocas que sempre mandaram em tudo e ainda hoje comandam o futebol.
- Pode? – pergunta ele.
A opinião do porteiro é a de que o detestável São Paulo – ele não gosta do tricolor – está sendo vítima de uma armação carioca. Um morador, homem de mais de 70 anos, ouve o porteiro e acrescenta:
- Isso não tem jeito. Carioca manda. Não lembra da seleção de 50? O técnico era o Flávio Costa. Ele escalou para a ponta esquerda o Chico que era parente dele. Enquanto isso, aqui em São Paulo, o Teixerinha comia a bola. E o Brasil perdeu, com Zizinho e tudo.
Deixo os homens falando, esperando não encontrar ninguém no elevador. Quando a porta se abre, surge o português do quinto andar que vive às turras com a irmã dele. A razão ele me contou outro dia, pedindo segredo: ela pinta quadros, gasta um dinheirão com tintas e não vende nenhum.
Passo pelo quinto andar imaginado um apartamento cheio de quadros e uma pintora empenhada em retratar o mundo para ninguém ver. Penso que numa de suas telas estará o irmão, com sua grande barriga, dedo em riste gritando: chega de quadros.
Depois disso não sei dizer o que mais acontece. É domingo, faz muito calor, de vez em quando cai uma chuva de verão que passa depressa e as pessoas continuam andando por aí, dizendo coisas, aplaudindo, reclamando, relembrando, amando, odiando, mostrando-se simplesmente humanas.