Arquivo para novembro, 2009
Apagão
Às 22h15min a luz apagou. Ouvimos uns gritos, os de sempre, as mesmas vozes no escuro de toda vez que a luz apaga, como se fosse uma gravação.
O prédio defronte manteve a luz durante algum tempo e nos perguntamos por que, afinal, pagamos tanto condomínio para não termos geradores. Mas não durou e o prédio defronte – que já nos irritava com a sua ofuscante claridade – enfim apagou.
No mundo às escuras começamos a nos mover devagar. Uma hora depois nos lembramos de nossos ancestrais animais, movendo-se na noite dos tempos. De repente, sentidos adormecidos aguçaram-se em nossos corpos, a memória passou a mostrar com clareza detalhes do mobiliário com os quais podíamos colidir e tivemos a clara noção de que, afinal, somos animais.
Lá pelas 22h50min soubemos que o apagão atingira vários estados. Minha mulher falou-me sobre o apagão de Santa Catarina que os americanos do norte atribuíram à obra de hackers.
Ouvi isso e pensei que afinal foram descobertos os inimigos da civilização: são os hackers. Posto isso, imediatamente decidi sugerir que todos os hackers sejam enviados ao Irã para serem punidos. Não existe na Terra melhor lugar para punições públicas que o Irã, talvez por isso o presidente Lula tenha decidido receber no Brasil o presidente Mahmoud Ahmadinejad, contrariando todas as opiniões sensatas em contrário.
Às 23h00 o apagão não deu mostras de terminar e um amigo me ligou no celular perguntando se não estaríamos todos mortos, mas ainda numa primeira fase que seria a de ilusão de luz apagada.
A idéia de estarmos todos mortos pareceu-me interessante, exceto pela sensação de morte coletiva e enterros coletivos o que, convenhamos, é democrático demais – considerando-se que alguns eleitos sejam poupados para enterrar os demais. O fato é que sempre sonhei com uma morte isolada, sem exageros, mas com os comemorativos que acompanham o fim de todo mundo. Eu quero um velório particular e um caixão bonitinho, ainda que tudo isso possa não representar nada para um morto.
Entretanto, não estávamos mortos. Tive certeza disso ao ouvir o ruído de uma colisão de trânsito no sinal da esquina próxima da minha casa. Uma mulher gritou profundamente, acho que por estar machucada. Bem, vivos bem vivos não gritam.
Agora já é madrugada e estou aqui vigiando o escuro. De vez em quando penso em colapsos definitivos de energia e no fim do mundo. Esse apagão não será um sinal? Será que ele não foi previsto no calendário maia?
Vou dormir daqui a pouco e juro que não tenho certeza sobre o mundo em que vou acordar. Apagão é apagão e pode ser que o escuro, sombra absoluta, seja o destino da nossa civilização.
PS: os noticiários da manhã não informam com certeza a natureza do problema que deixou cerca de 60 milhões de brasileiros sem luz. O sistema energético brasileiro não é como diz o Ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, um dos mais seguros do mundo. E um país que corre célere em direção ao topo das maiores economias do mundo não pode ter um apagão desses. Consequências políticas à vista porque o atual governo, então oposição, baixou o pau no anterior quando dos apagões ocorridos em 2001.
A ver. De preferência com luz.
Celebridade
Você quer se tornar uma celebridade ainda que o seu reinado não dure muito? A fórmula é simples: precisa ser ousado e contar com a sorte.
Duvida? Veja aí a estudante da UNIBAN que foi perseguida pelos colegas por ir de minissaia às aulas. Pois foi preciso um vestido quase convencional, mais curto é verdade, para virar notícia no mundo inteiro. “El País” (Espanha), “Guardian” (Reino Unido) e “China Dayli” são só alguns dos jornais que noticiaram o caso nas últimas horas.
O assunto tem rendido análises, despertando a ira de muita gente que fala em machismo e intolerância. O reitor da UNIBAN voltou atrás em relação à decisão do Conselho da faculdade de expulsar a aluna considerada por eles como causadora do tumulto.
Enquanto tudo isso rola na mídia a jovem estudante vive os seus instantes de celebridade. Até que a notícia se desgaste pela perda da novidade e ninguém mais se lembre do assunto.
Viva o efêmero que faz heróis e os desbanca da noite para o dia.
Para que nunca nos esqueçamos
Penso que os detratores da História fiquem bastante incomodados com celebrações de fatos importantes do passado. Há cerca de dois anos presenciei discussão entre dois historiadores sobre a importância da investigação do passado. Para um deles, seguindo parte da historiografia francesa, o que importa são os vastos períodos históricos sendo inútil a perda de tempo com acontecimentos pontuais; o outro era mais favorável à pesquisa documental e à imersão em fatos cotidianos que, segundo dizia na ocasião, revelam-se verdadeiros termômetros de épocas.
De todo modo o fato é que estamos vivos e não conseguimos nos livrar dos mortos e daquilo que fizeram. Tal impressão tive ontem ao assistir às celebrações, em Berlim, da queda do muro que dividia a cidade em dois blocos físicos e ideológicos. Chovia muito, mas o povo alemão não se furtou a sair às ruas para rememorar um momento marcante da sua História. Ressalte-se que em relação ao Muro de Berlim muitas das personagens que dela participaram estão vivas. Mas, a Alemanha é a Alemanha e se existe um país cujo passado integra-se ao cotidiano do presente é justamente esse. De fato, não há como interromper um continuum de fatos que ainda hoje são relevantes embora distanciados no tempo quanto à sua ocorrência. Basta citar o nazismo e mesmo a ainda imperfeita integração dos antigos Blocos Ocidental e Oriental do país para ilustrar o que acabamos de dizer.
As comemorações da queda do Muro de Berlim realizadas na noite de ontem foram emocionantes. Elas representavam o fim de uma época, de um modo de ser e pensar, de engajamentos ideológicos comprometidos com apenas duas vertentes: capitalismo e comunismo. Elas nos fizeram lembrar tempos mais soturnos, posturas rígidas e atmosferas ameaçadoras que, vez por outra, descambavam para o território de perigo de ocorrência de uma hecatombe universal. Elas sepultavam a era dos telefones vermelhos interligados entre Washington e Moscou, os tão temidos telefones vermelhos dos quais dependia a sorte do mundo.
Por isso, quando Lech Walesa empurrou a primeira peça de isopor do dominó que representava o Muro, foi como se presenciássemos um momento de libertação da humanidade de grilhões aos quais estivemos presos durante muito tempo e que tanto interferiram nas nossas vidas. Daí a emoção, a sensação de que mesmo à distância fazíamos parte do acontecimento celebrado, tratava-se de um grito contra tudo o que é demasiadamente restrito, um grito que ecoou fundo nas nossas almas e nos comoveu, intensamente.
Serviço Militar Obrigatório
O Ministério da Defesa quer tornar obrigatório o serviço militar para médicos, dentistas, farmacêuticos e veterinários. Universitários dispensados por excesso de contingente ou por estarem na faculdade poderão ser convocados após a formatura. Quer-se, desse modo, levar profissionais de saúde para trabalharem em áreas remotas do país.
Segundo as leis vigentes profissionais da área de saúde com certificado de reservista podem ser chamados para o serviço militar, mas a Justiça tem entendido que a lei não se aplica a quem foi dispensado por excesso de contingente antes de entrar na faculdade.
A idéia não é nova. Quando da minha formatura, ainda durante o regime militar, os membros da minha turma foram convocados ao QG do Ibirapuera. Creio que a maioria fora dispensada justamente por excesso de contingente.
Lembro-me de que atendemos ao chamado com alguma apreensão. Afinal eram tempos bicudos e a ditadura militar causava-nos certo temor. Entretanto, toda a apreensão revelou-se desnecessária: fomos muito bem tratados, na verdade consultados sobre o interesse de cada um em entrar para o Exército.
Creio que poucas pessoas revelaram interesse e somente um dos meus colegas efetivamente seguiu a carreira militar. Dado curioso foi o de um colega, na época já casado e receoso de que fosse obrigado ao serviço militar. Ao ser atendido por um oficial ele foi logo dizendo que não poderia servir porque era casado. Ao que o oficial respondeu:
- Eu também sou casado e estou no Exército.
O problema da excessiva concentração de profissionais da área de saúde nos grandes centros e suas proximidades realmente requer atenção. Não se pode esquecer de que existem regiões imensas onde inexistem ou há falta de profissionais, fato que acarreta sérios problemas às populações locais. Por outro lado, há que se ressaltar que muitos profissionais não querem ir para essas regiões pela absoluta falta de meios para exercerem as suas profissões. Existem casos conhecidos de atendimento ineficiente por falta de recursos e que evoluem para o óbito, não sendo raro que a culpa recaia sobre os profissionais responsáveis pelos serviços.
Não há como não ver com bons olhos a iniciativa das autoridades em suprir regiões com profissionais de saúde que deles precisam. Mas o problema não será resolvido apenas com a obrigatoriedade do serviço militar. Há que se pensar no estabelecimento de infra-estruturas e no respeito às opções individuais. Obrigar pessoas ao trabalho contra a sua vontade talvez não seja a melhor solução. Além disso, não custa valorizar uma carreira como a militar mostrando os seus atrativos aos jovens recém-formados, muitos deles ainda indecisos quanto ao seu futuro posicionamento no mercado de trabalho.
Geração careta
- Podem me prender, podem me bater, podem até deixarem-me sem comer, mas eu não mudo de opinião…
É o que dizia a letra da música de Zé Keti, em 1964. Tempos arrojados aqueles! Saudosismo? Em primeiro lugar é preciso dizer que de vez em quando somos obrigados a apelar para o passado. Nada a ver com a idéia de que a história se repete. Nada disso. Retornamos ao passado quando o presente não nos satisfaz e temos a clara noção de retrocesso em relação a conquistas bem sedimentadas em tempos anteriores.
Então não se trata mesmo de saudosismo, nem um pouco. Na verdade é só comparação. Do que? Ora, da ocorrência e prolongamentos do triste episódio da estudante de turismo que foi agredida por ir de minissaia à faculdade.
Tem muita gente por aí dando opinião sobre isso. De repente psicólogos, educadores, sociólogos e até a turma do deixa disso pula para a ribalta, desfraldando bandeiras teóricas para explicar o fenômeno. Em cena uma jovem de minissaia perseguida pela turba com direito a filmagens que circulam no YouTube.
Pelo amor de Deus, nada de teorias. Será que não existe um aparelho que possa enviar aos anos sessenta e setenta uma dessas máquinas fotográficas digitais para que alguém de lá filme as mocinhas chegando às aulas com aqueles vestidinhos curtos que torturavam a masculinidade em flor do país de então? Pois que filmassem num dia qualquer e enviassem para nós, ao vivo e a cores, aquela festança para os olhos, tão delicada e nada desrespeitosa, tão profunda e meditativa para os rapazes que babavam nas horas certas porque era possível conviver em paz com a beleza que se espalhava pelos campus universitários.
Mas, pessoal, que retrocesso é esse? A quem interessa se uma jovem usa minissaia ou não? E que súbitos pudores ofendidos são esses que de repente brotam por aí, como se o mundo fosse uma sociedade de mórmons, fechada manifestações tão rotineiras?
Olhem, não adianta: para quem viu como as coisas eram no passado é muito difícil compreender esse caso de agressão. Fica a impressão de que algo na cabeça dos jovens de hoje involuiu, as conquistas das gerações anteriores foram recusadas por uma nova ordem de conduta e pensamento. Trocando em miúdos: eta geração careta essa que anda por aí, não?
A faculdade decidiu expulsar a aluna causadora do tumulto. Na internet podem ser lidos comentários de jovens sobre o caso, muitos deles começando com coisa do tipo “se pelo menos ela fosse bonita e gostosa”. Outros perguntam: “o que ela queria com uma roupa daquelas?”. Como se tudo isso tivesse alguma importância.
Turbas são turbas. Sabemos que as multidões agem em acordo com uma consciência coletiva não necessariamente racional. Ainda assim, tudo soa muito estranho.
Agora, se me permitem, uma pitada de saudosismo que não faz mal a ninguém: ah, que saudades das daquelas tardes fagueiras, dos grupos de estudo tão esperados, do sexo feminino tão visível e desprotegido, dos sonhos imaginosos que de vez em quando se realizavam.
Vigiando o trânsito
Comprou um apito, vestiu um paletó surrado e foi para a esquina dirigir o trânsito: sinal fechado, apitos, aviso aos pedestres para atravessar; sinal aberto, apitos, mão ao alto proibindo a travessia de pedestres, carros seguindo pela avenida.
Era um mulato mais para magro, cabelos grisalhos, barba por fazer, apito vermelho na boca, desses de brinquedo. Esteve ali durante algumas horas, absoluto, mandando no trânsito, regulando o fluxo. As pessoas o viam, sorriam, fingiam que obedeciam, na verdade seguiam o ritmo dos sinais.
Às três da tarde uma senhora que atravessava a rua deixou cair um pacotinho. Pressuroso o homem do apito correu sem perceber que o sinal abrira. A meio caminho o carro grande o colheu com grande impacto.
Estava no meio-fio quando passei, estendido sobre o asfalto e coberto por folhas de jornal. Perto dele uma enorme poça de sangue emprestava à cena o tom escarlate da desgraça ocorrida.
Uma mulher de cerca de 60 anos dizia a outra que ele era um sujeito bom, gostava de ajudar. Um velhote que presenciara o acidente repetia sobre o perigo das ruas nos dias de hoje. Um policial desviava o trânsito, um fotógrafo registrava a ocorrência. Do outro lado da avenida o movimento na porta do supermercado era o de sempre para o mesmo horário.
Morreu assim, incógnito, sem nome nem nada, vigiando o trânsito. No fim da tarde choveu. O sangue foi parar no bueiro, as pessoas continuaram a atravessar no verde e os carros a correr pela avenida.
É provável que agora, nove horas da noite, ninguém mais se lembre do homem atropelado e morto defronte o supermercado. A vida tem disso, de vez em quando arranja um acidente e sacrifica alguém, talvez para avisar-nos sobre a sua brevidade e o modo como seremos rapidamente esquecidos.
A política de hoje
Sinceramente não invejo os colunistas diários de jornais cujo assunto é a política brasileira. Gente… Os caras são obrigados a uma atividade cansativa que, imagino, não dê a eles nenhum prazer. Vejam-se lá as idas e vindas de opiniões, as afirmações seguidas de negativas peremptórias, os disfarces e conchavos, a falsidade dos discursos, a corrupção, as traições ideológicas e, principalmente, o habitual descaso pelo bem público solapado por interesses menores.
Estamos assistindo nesse momento à agitação que precede as candidaturas que concorrerão à presidência da República no próximo ano. Meu Deus haja estômago! De um lado o presidente da República com sua mal disfarçada campanha em prol de sua candidata, levando a várias partes do país uma caravana ufanista, creditando-se realizações pessoais nunca antes alcançadas por nenhum homem público “deste país”. De outro, o tucanato indeciso que não sabe bem o que dizer ao povo para desmontar o espetáculo propiciado pelos homens do governo.
Os jornais são férteis em comentários que buscam desmascarar o presidente, apontando seus exageros e frases infelizes. Também não perdoam a oposição que, com justiça, querem mais atuantes. Mas a maior parte do povo não lê jornais e nem mesmo se interessa pelo noticiário político da televisão. No Brasil de hoje a política está desacreditada justamente pelo comportamento de grande parte dos homens públicos do país. Veja-se o caso da desobediência do Congresso Nacional a uma determinação do Supremo Tribunal Federal. Quem tem razão? Em qual instituição podemos confiar?
À margem dos homens o Brasil cresce, seguindo a sua vocação de ser grande. Às vezes penso no Brasil em termos de prosopopéia, transferindo a ele sentimentos e voz. Pois, pudesse o Brasil falar, que diria? Que dores choraria ele pelas matas devastadas, animais em extinção, alta criminalidade, falcatruas a céu aberto, mentiras proclamadas, riqueza e miséria contrastantes? Que alegrias externaria em função de suas belezas e progressos?
Diz a letra de uma música que o Brasil não conhece o Brasil. Conhece sim. Decorridos mais de 500 anos desde o descobrimento, o país deixou de ser adolescente e assume ares de maioridade. Ele tem consciência de sua imensidão, pensa grande e abre o jogo dando a conhecer riquezas até então escondidas. De repente, não mais que de repente, o grande país impressiona com fabulosas reservas energéticas bem próximas de sua orla marítima. De repente, não mais de que de repente, ele sente pairar sobre o seu território a atmosfera de autossuficiência. E assim vai.
É preciso discutir se o Brasil está crescendo pela ação dos homens ou apesar deles. Obviamente o assunto é controverso e de difícil conclusão. Mas acredito que seja um dos pontos de partida quando o que está em jogo é o destino de milhões de pessoas.
É aí que entram os colunistas que tratam da política, os sociólogos, os cientistas políticos e toda gente que tem espaço para opinar sobre os destinos do país. Diante de um governo que canta vitórias e uma oposição até agora ineficiente cabe aos analistas um estudo mais profundo e ordenado da situação. E não importa a impressão de que as suas palavras possam ser inúteis e nada venham a resolver: é preciso buscar caminhos e apontá-los.
O Brasil agradece.
O Fim do Mundo
Ultimamente os filmes de desenho animado têm apostado numa fórmula curiosa: a da existência de mundos de diferentes tamanhos, desproporcionais. A intenção é óbvia: contrapor a Terra e a humanidade à vastidão do universo, o que nos reduz a um grão de poeira. A partir daí todo o drama humano, a nossa história e as nossas vaidades ficam reduzidas a nada quando se contempla a insignificância da própria Terra diante das estrelas que povoam os confins do universo.
Está rodando na rede Telecine um desses filmes cujo título é “Horton e o mundo dos Quem”. Horton é um alegre elefantinho que descobre haver vida num grão encontrado num trifólio. No pequeno grão vivem os Quem, moradores da cidade chamada Quemlândia. Horton contata o prefeito da cidade e faz de tudo para proteger os Quem. Mas, acreditar na existência de pequenos seres inteligentes, vivendo num grão, cria problemas para Horton que passa a ser tido como louco pelos outros animais. Por outro lado, as coisas não ficam bem em Quenlândia: a população e um conselho de veneráveis não acreditam que vivam num simples grão, afinal Quemlândia é o seu mundo e está por se comemorar o centenário de sua fundação.
Impressiona muito no filme a vulnerabilidade de Quemlândia, cuja destruição pode acontecer a qualquer momento e por ação de fatores mínimos. Qualquer desarranjo na ordem natural das coisas, um vento mais forte ou o bloqueio da luz externa pode colocar fim à pequena civilização.
As similaridades com o mundo em que vivemos são óbvias demais. Entretanto, vale perguntar sobre a verdadeira intenção dos autores de tramas desse tipo. Em se tratando teoricamente de um filme para crianças seria educativa a sua finalidade? Talvez. Não se pode negar que certa compreensão sobre a pequenez do homem talvez contribua para a formação de pessoas mais afeitas aos bons costumes e crença em valores universais. Em sentido diametralmente oposto situa-se, inevitavelmente, certo achatamento da condição humana, fraca, vulnerável e absurda quando se levam em conta as verdadeiras circunstâncias da nossa existência. Trata-se de algo como lembrar-se de que a vida existe na Terra há cerca de 4,5 bilhões de anos, mas a espécie humana é bastante recente no planeta: o primeiro Homo sapines sapiens surgiu a menos de 200 mil anos.
Filmes desse gênero cativam pela beleza das imagens, finais felizes e lições de solidariedade e perdão entre os seres. Mesmo os vilões são capazes de se arrepender e derramar lágrimas quando diante de velhos clichês como inimigos abraçando-se e prometendo viver em paz para todo o sempre.
Tenho exata noção de que posso estar interpretando narrativas do gênero em questão sob um viés incomum e talvez incorreto. Mas, não posso deixar de pensar assim. O fato é que desde os meus primeiros estudos, quando compreendi a posição da Terra – o “meu” planeta – dentro do universo, fui tomado pela impressão de que éramos frágeis demais e talvez a nossa história pudesse ter um fim inesperado de um momento para outro. Quando aprendi que a era dos grandes répteis terminou pela ação do choque de um grande corpo celeste contra a Terra, levantando imensa nuvem de poeira, os meus temores se agravaram.
Agora leio na capa da Revista Veja sobre o tal fim do calendário maia e a possibilidade do fim do mundo em 2012. Fico incomodado com isso, como fiquei há muitos anos quando li que o governo norte-americano enterrara cápsulas com informações sobre a nossa civilização para o caso de desaparecermos e um dia seres inteligentes ressurgirem na Terra.
A minha intenção não é transformar um filme infantil numa peça de terror. Mas não é demais lembrar que o pior terror não é o explícito, o pior é aquele que acontece às claras, sem monstros nem nada, terror como aquele de uma manhã calma em Hiroshima de repente interrompida por uma bomba vinda do céu.
Cuba: traição entre irmãos
Estão aí as notícias sobre Juanita Castro, irmã de Fidel e Raul, que acaba de confessar ter sido agente da CIA. Ela escreveu um livro sobre o assunto que está sendo lançado com muito aparato: o título é “Fidel e Raul, Meus Irmãos - A História Secreta”. Por enquanto o livro está em espanhol e dando o que falar.
Também por esses dias vi nos jornais uma foto de estudantes cubanos jogando flores ao mar em homenagem ao herói nacional Camilo Cienfuegos, um dos líderes da revolução que depôs o ditador Fulgêncio Batista. Cienfuegos morreu precocemente num acidente de avião que desapareceu no oceano.
Confesso que de vez em quando tenho vontade de falar alguma coisa sobre Cuba, mas evito e escolho outro assunto. Acontece que sempre estive entre os que olharam a Revolução Cubana com ceticismo, não a Revolução propriamente dita, mas seus desdobramentos. Essa posição causava-me problemas em conversas com amigos porque se desenvolveu uma idolatria por Cuba, Fidel Castro e os outros, idolatria essa que no meu modo de entender cegava um pouco aqueles que amavam tanto a Cuba.
Creio que isso fica bem claro quando se trata de Che Guevara, mitificado que é, símbolo de resistência e liberdade em que foi transformado. Che virou o homem das camisetas, dos filmes que lotam sessões, do americano do hemisfério Sul que se opôs ao imperialismo ianque. Daí que sobre Che não existem dúvidas, ele é um herói e pronto. Se foi mesmo o herói que se supõe creio que nunca saberemos, mas estão aí as fotos dele morto após ser executado, magro e sofrido, cabelos longos, espécie de Jesus Cristo que foi imolado para que pudéssemos ter o continente que temos.
Entretanto, não é bem sobre Cuba e a Revolução que quero falar, nem sobre aquelas pessoas que visitaram a ilha e voltaram de lá contando maravilhas sobre um país que mantém uma frota de carros dos anos 50, tal o reflexo do bloqueio econômico imposto pelos ianques ao governo de Fidel.
Quero me referir ao modo como a Revolução Cubana entrou na minha vida. O fato é que nessas minhas andanças por esse mundo certa vez conheci um capuchinho que se dedicava a escrever peças de teatro. A grande criação dele foi uma peça sobre a Revolução Cubana, encenada por um grupo de jovens que se vestiam com as fardas dos revolucionários chefiados por Fidel.
Se bem me lembro, na peça Cuba era apresentada como um país governado pelo ditador Fulgêncio, sempre em acordo com os interesses norte-americanos. Os jovens que se reuniram em Sierra Maestra e fizeram a Revolução eram idealistas e libertaram o país de um regime de opressão. O enredo não tinha, com se observa, grandes novidades que ficavam por conta da trajetória de cada um dos principais revolucionários, todos eles candidatos a heróis que se tornariam ao vencer a Revolução.
A peça foi exibida em algumas cidades do interior, sempre com sucesso. Tempos depois foi inscrita num concurso de teatro amador em São Paulo, sendo honrada com o primeiro prêmio. Na ocasião um membro do júri - conhecido dramaturgo cujo nome infelizmente me escapa – referiu-se elogiosamente ao trabalho do capuchinho e ao desempenho dos rapazes por ele dirigidos.
Infelizmente a carreira de dramaturgo do frei e a própria peça foram encerradas no dia 31 de março de 1964, data da revolução que depôs o presidente João Goulart e deu início aos governos militares. Com a direita no governo falar em Revolução Cubana tornou-se perigoso, daí o encerramento das atividades do pequeno grupo teatral.
Vem desse fato a minha simpatia por Cuba e sua Revolução. Ainda hoje, sempre que leio algo sobre Fidel, Raul, Guevara, Cienfuegos e outros, eu os vejo como jovens idealistas fazendo uma revolução em cima de um palco, revolução sem consequências, sem dor, sem miséria, sem opressão, revolução redentora que termina com as palmas do público.
Talvez por isso eu tenha tanta dificuldade em falar sobre Cuba e prefira imaginar uma revolução que de fato não houve, uma peça de teatro escrita e dirigida por um frei que a mão de ferro do Estado Brasileiro teimou em silenciar.
Os Blogs e o futuro da Literatura Brasileira
Está sendo realizada a quinta edição do Fórum das Letras de Ouro Preto. Numa das mesas reuniram-se críticos para discutir o papel a ser desempenhado pelo jornalismo cultural dado o avanço de uma atitude anti-intelectual que se esboça nos blogs. Tal atitude busca desautorizar o discurso da crítica de jornais e revistas.
Criticou-se a profusão de blogs, registrando-se verdadeira fobia deles à teoria literária. A facilidade de publicação, via internet, estaria provocando uma onda quase paranóica de autores criticamente despreparados, criando-se teorias conspiratórias contra a verdadeira crítica. Daí que em alguns anos a crítica desaparecerá e o resultado será uma avalanche de lançamentos medíocres. A boa e a má literatura se confundirão por falta de um juízo critico competente.
Essas considerações, publicadas na edição de 02/11/09 do jornal “O Estado de São Paulo” dão o que pensar. Em primeiro lugar elas pressupõem a existência no Brasil, nos dias atuais, de uma crítica atuante e militante, capaz de separar o trigo do joio, atenta aos movimentos culturais e apta a promover novos talentos. Nada mais falso. Sem demérito para poucos críticos que vez ou outra comparecem na mídia com análises mais profundas e embasadas de alguns lançamentos, não é possível reconhecer, atualmente no Brasil, um movimento crítico que possa ser caracterizado como tal. Além do que parte da crítica militante trancafiou-se nos redutos universitários e ocupa-se, principalmente, das obras de autores consagrados. Do que se depreende não ser possível a existência de um movimento consciente de blogueiros que busque desautorizar o discurso de uma crítica que na verdade é quase inexistente. Independe de tal crítica, portanto, pelo menos no estado atual de coisas, o bom ou mau encaminhamento da literatura no Brasil.
O segundo ponto a merecer atenção é o que diz respeito à proliferação de blogs, pelo visto perigosa e danosa à boa literatura. Não há como concordar com isso. Na verdade é salutar que muita gente se dedique aos blogs num país onde novos autores são obrigados a mendigar publicação de seus trabalhos em editoras que, como se sabe, dão preferência a obras traduzidas. Será preciso também lembrar que, quando enfim publicados, os novos autores raramente merecem pelo menos duas linhas de crítica nos meios de comunicação? E o que acontece com os livros da maioria dos escritores brasileiros em termos de divulgação e distribuição de seus trabalhos?
Ao contrário do que pensam os intelectuais reunidos em Ouro Preto, os blogs são uma alternativa interessante para o desenvolvimento da literatura. Eles oferecem a muita gente a oportunidade de fazer-se ouvir. Eles cobram dos verdadeiros escritores coerência e estudo para que mantenham os seus leitores.
Dirão que os blogs , na maioria das vezes, disseminam muita porcaria e favorecem o emburrecimento do público. Os jornais e as revistas também, não? Não se aplica aí o princípio de que o que é bom permanece e o ruim acaba sendo descartado? Que se pode dizer contra um movimento – o dos blogs - que alicia diariamente novos leitores ainda que nem sempre leiam “coisa boa”?
Falar-se em fobia à teoria literária pressupõe conhecimento dela. Os blogs de papo-furado não afrontam a literatura porque crescem à margem dela e seu público cativo pouco se dá a aspectos teóricos. Mas, diga-se, o que é novo não é necessariamente ruim, não derruba os castelos edificados pela intelectualidade. Daí que não existe o que temer.
Ao ler sobre as opiniões de críticos no Fórum de Ouro Preto lembrei-me daquele monge de “O Nome da Rosa” que escondia a sete chaves a segunda parte da “Poética” de Aristóteles. Não precisamos de guardiões da literatura por aqui: carecemos – e muito – de crítica atuante que se ocupe das obras de bons valores nacionais relegados ao esquecimento.