Arquivo para novembro, 2009
Finados
Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.
Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.
Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.
Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.
Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa. Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.
Religiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos. Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.
Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.
Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.
A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.
Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.
Pelos velhos tempos.
Arthur Rimbaud e “Le Bateaux Ivre”
Já se disse que é quase impossível ler a obra de do francês Arthur Rimbaud (1854-1891) sem levar em consideração a história de sua vida. Mas que fazer quando o que está em jogo é a trajetória de um poeta genial que escreveu apenas até os 20 anos de idade?
A biografia de Rimbaud apresenta-se como um desafio à racionalidade. Menino prodígio, aluno brilhante e estimulado por seu professor de retórica, ele venceu, em 1869, o Concurso Acadêmico de Douai de versos latinos. Em 1870 entrou para a escola Georges Izambard. A partir daí sua vida consiste numa sequência de fugas de sua casa localizada em Charleville, sua cidade natal. Na primeira delas foi de comboio a Paris, sendo preso e depois libertdo por intervenção de Izambard que o trouxe de volta a Charleville. Pouco tempo depois, fugiu novamente, desta vez a pé, passando por Bruxelas e chegando a Douai. A próxima fuga ocorreu no ano seguinte quando foi de comboio a Paris e voltou a pé. Nesse ano escreveu ao poeta Paul Verlaine e compôs o poema “Le Bateau Ivre”.
Paul Verlaine e Rimbaud mantiveram relacionamento muito difícil. Verlaine recebeu o jovem poeta em Paris, viajaram juntos e foram presos por conduta suspeita. Depois, foram a Londres de onde Rimbaud voltou a Charleville, a pedido de sua mãe. Os dois poetas reencontraram-se em 1873, em Londres, e viajaram a Bruxelas. Durante uma discussão Verlaine deu dois tiros em Rimbaud, lesando o seu punho esquerdo. Pouco depois desse episódio Rimbaud começou a escrever o poema “Une Saison em enfer”.
O espírito inquieto de Rimbaud nunca teria paz. Suas idas e vindas eram constantes. Andarilho, jovem mal visto pelos cabelos longos e roupas desleixadas, expulso de Viena, alistamento no Exército Colonial Holandês a caminho de Java onde deserta, intérprete de um circo em Hamburgo, comerciante na África, viajante no Egito e na Etiópia, atravessando o deserto a cavalo, traficante de armas, diretor de feitoria: a trajetória de aventureiro só termina com a morte do poeta em consequência de um câncer no joelho.
Arthur Rimbaud foi um dos maiores representantes do simbolismo no século XIX. Interessa-nos por ora o poema “Le Bateaux Ivre” que ele compôs em 1871. O leitor pode encontrar na internet uma tradução feita por Augusto de Campos. “Le Bateau Ivre” – em português “O Navio Doido” ou “O Barco Ébrio”– é um poema composto por 100 versos alexandrinos (verso em doze sílabas). Trata-se de uma prosopopéia (figura de linguagem em que escritor empresta sentimentos humanos e palavras a seres inanimados, a animais e a seres mortos ou a ausentes). No caso, o escritor empresta seus sentimentos a um navio que desce pelos rios, em direção ao mar, levado pela correnteza de vez que todos os seus tripulantes foram vitimados por índios. É o barco quem fala:
Como descia já dos Rios impassíveis,
Eu não me senti mais guiar plos sirgadores
Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Depois de os atar nus aos postes de mil cores.
(Tradução de Alexandre Herculano de Carvalho, in Musa de Quatro Idiomas,Edições Ática, 1947, Lisboa)
Impossível não relacionar a trajetória do navio desimpedido de controle, desgarrado e levado ao mar ao sabor das ondas, com a própria vida de poeta.
Em “Le Bateaux Ivre” Rimbaud serve-se de neologismos e é vigoroso o cromatismo dado por vezes sua intenção ser puramente visual, conforme aponta Augusto Meyer no ensaio “Le Bateau Ivre - Análise e Interpretação”. Meyer divide o poema em quatro movimentos. O primeiro deles - Descendo os rios – descreve o barco levado pela correnteza rumo ao mar; o segundo – O Batismo do Barco – fala sobre a chegada do barco desgarrado à foz do rio entrando em contato com as águas do mar. Observa-se uma mudança do ritmo lento das águas do rio para o forte balanço do mar; o terceiro - A experiência do mar - corresponde ao corpo do poema em que se verifica a originalidade de Rimbaud e sua força poética; o último movimento - Desencantamento – manifesta-se o desencanto do viajante desiludido que se confunde com a experiência de andarilho e aventureiro do próprio poeta.
O ensaio assinado por Augusto Meyer é um anexo do Curso de Teoria da Literatura dado por ele na Faculdade de Filosofia e Letras, da Universidade do Brasil. O texto foi publicado pela Livraria São José, Rio de Janeiro, em 1955. Obviamente, o livro só poderá ser encontrado em sebos. Embora Meyer fale em breve estudo, trata-se de uma poderosa incursão na obra do grande poeta Arthur Rimbaud que certamente será muito valiosa a estudiosos e interessados.
Os poemas de Arthur Rimbaud podem ser encontrados nas livrarias. Existe uma edição em francês de suas obras completas – Oeuvres completes – publicação da Editora Gallimard, 2009. “O Barco Ébrio” já mereceu mais de 20 traduções; a de Jayro Schmidt é publicação da Ed. UFSC, 2006. Também em português: “Uma Temporada no Inferno e Iluminações”, com tradução de Ledo Ivo, Ed. Francisco Alves, 2004.