Arquivo para janeiro, 2010
O outro que incomoda tanto
Não aconteceu nada na manhã de domingo. Só um amigo que me ligou para contar que está pensando em deixar o emprego. Desaconselhei. Ele já está nos 50 e “este país” não gosta muito de gente nessa faixa de idade.
Acontece que o meu amigo tem um chefe. Subiram juntos na empresa, o tal chefe sempre um passo à frente dele. Na competição entre os dois sempre houve um fator qualquer de desequilíbrio pendendo para o outro. Detalhes, pequenos detalhes, que foram dando ao outro lugar de destaque.
Creio que há poucos anos – sinceramente não me lembro – correu na empresa em que o meu amigo trabalha a notícia de que aconteceriam cortes, inclusive entre os mais graduados. Na ocasião o meu amigo teve certeza de que seria demitido. Ele não dizia, mas o que mais doía a ele era o fato de que outro continuaria no emprego e ele seria cortado. Coisa bastante injusta, no seu entender. No fim os dois ficaram o que era, aliás, previsível.
É preciso dizer que também conheço o outro. O outro - chefe do meu amigo - é um sujeito sossegado, mas competitivo. Parece meio desligado, mas por baixo do seu jeito de desatento esconde-se um espírito prático e muito observador. É desses que não dão mostras do que realmente são, nem do que são capazes de realizar. Imagino-o proprietário de grande frieza nos momentos de decisão, caráter esse oposto ao do meu amigo, tipo emocional e efusivo.
Ah, ia me esquecendo: os dois foram colegas na faculdade, entraram juntos na empresa onde trabalham e são compadres. As mulheres dos dois frequentam-se e vão juntas às compras. Não passa muito tempo sem que um vá à casa do outro para uns goles, preenchendo a parte de cortesia social.
Então, a única coisa errada nessa história toda é o fato do meu amigo estar sempre um passo atrás do outro. O que me faz pensar sobre a maldade do mundo em que vivemos. O meu amigo poderia ter-se aproximado de milhares de outras pessoas ao longo de sua vida. Quis a sorte, o destino ou o que quer que seja que passasse a vida junto de alguém que fizesse sombra a ele. É a vida.
Depois que desliguei fiquei pensando se não deveria ter encorajado o meu amigo a deixar o emprego. A verdade é que ele já não suporta mais a existência do outro. Não posso dizer que o outro faça mal ao meu amigo de modo consciente, mas que faz mal a ele faz.
E o meu amigo? Caso saia do emprego será que se livrará definitivamente da sina de ser sempre o segundo? Não sei. Há pessoas que nascem para viver tramas do tipo Frajola e Piupiu, no qual um persegue e outro é perseguido , mas não podem existir separados.
Para arrematar é bom lembrar o bom e velho Sartre que sentenciou: o inferno são os outros.
Presságios e Literatura Fantástica
Você acredita em presságios? Sabe, trata-se daquela percepção especial que algumas pessoas dizem ter em relação a fatos por ocorrer. Acontece que, em alguns casos, os presságios se confirmam. Coincidência? Você aí é quem sabe, quem sou eu primo para dar opinião.
Veja que estamos a falar sobre presságios e não vidência. Vidência é assunto de videntes, pessoas especializadas em prever o futuro. Não que os videntes não sejam suscetíveis a presságios. Consta que eles podem captar mais agudamente as probabilidades de acontecimentos futuros. Mas, no geral, os videntes são mesmo aqueles que utilizam a quiromancia, jogam cartas, búzios ou fazem uso de outras parafernálias para prever o futuro das pessoas que os procuram.
A esse ponto – e apenas como simples citação – torna-se impossível olvidar os videntes que aliam aos seus dotes sensitivos a prática de sincretismos religiosos, em geral ritos africanos plasmados ao catolicismo. O candomblé a macumba fazem parte do arsenal disponível a essa categoria de videntes que, quase sempre, emendam a constatação dos problemas pessoais dos seus clientes à necessidade de um “trabalho” dirigido a um orixá específico. E assim por diante.
Pois eu cresci num mundo de sinais. Até hoje não sei dizer se os sinais aos quais as pessoas próximas a mim atribuíam acontecimentos futuros, tinham ou não ligação com eles. Lâmpadas que se acendiam de repente durante as madrugadas, pios estranhos de aves, raios caindo no quintal de casa e uma infinidade de pequenas ocorrências não rotineiras adquiriam significados lógicos. Muitos desses sinais tinham longa história através das gerações familiares, mantendo os seus significados. A pesquisa desse assunto junto a pessoas idosas certamente nos traria um mundo anterior e muito próximo a nós, no qual o fantástico incorporara-se à rotina. Infelizmente o progresso e os avanços da tecnologia têm feito sepultar as raízes do fantástico em nossa sociedade, daí talvez a progressiva redução de escritores, teatrólogos e cineastas que se ocupem do gênero.
O que pretendo dizer é que um livro como o “Pedro Páramo” do escritor mexicano Juan Rulfo só pode ser oriundo de uma tradição cultural na qual o fantástico seja, ou tenha sido, parte integrante do cotidiano das gentes. Aliás, nesse sentido, os países de língua espanhola são muito pródigos em incursões no terreno do insólito. Creio que os filmes de Pedro Almodóvar sejam mais que suficientes para exemplificar o que acabo de dizer. E que dizer dos livros de Gabriel Garcia Marques?
Por fim escrevi isso para confessar que, graças aos céus, sou um péssimo pressagista, se é que existe o termo. O fato é que sou dado a sonhos etc, que felizmente não se concretizam na realidade. Nisso saí errado em reação ás minhas herdades: vários membros da minha família, em geral mulheres, eram dados a presságios muitas vezes confirmados. Sempre tive isso como simples coincidência, mas quem sabe, não?
Fábula de vaga-lume
Era uma vez um vaga-lume que não tinha luz. O problema foi percebido pelos seus pais que depressa levaram o pequeno vaga-lume aos doutores da luz. O caso foi analisado por juntas de cientistas que indicaram e realizaram vários tratamentos. Nada, porém se conseguiu.
Ao tempo do filho ir à escola os pais do vaga-lume que não tinha luz temeram pela sua sorte: como o veriam os seus colegas, todos emissores de luz? Infelizmente os vaga-lumes veteranos da escola receberam muito mal o novo colega. Foi ele submetido a trotes nos quais sempre se destacava a falta de luz. Nos corredores falava-se sobre um defeito genético, falha do DNA, que impedia a produção de luciferina, substância sem a qual não há emissão de luz.
Mas, não ficou só nisso. A situação piorou muito quando os próprios professores, em reunião, ponderaram sobre o perigo de um vaga-lume com tão grande problema de saúde, vir a se reproduzir. Daí a se concluir que a toda a espécie estava ameaçada e se propor a esterilização imediata do vaga-lume sem luz foi um passo.
Desesperados com a situação e perguntando-se porque a sorte os punira de tal modo, os pais do vaga-lume sem luz outra saída não tiveram que organizar a fuga do filho. Certo dia, bem antes do alvorecer, a mãe deu ao filho tudo o que ele precisaria para viver à margem de seu grupo e ele partiu.
Assim, a população de vaga-lumes deu o problema por resolvido; a ameaça à espécie foi extirpada e todos viveram em paz, exceto os pais do pobre vaga-lume sem luz que, vez por outra, iam visitá-lo no seu lugar de exílio.
Entretanto, com o passar do tempo, a paz do mundo dos vaga-lumes foi seriamente ameaçada: mudaram-se para bem perto deles duas enormes rãs que tinham naqueles insetos o seu prato predileto. O desaparecimento de importantes membros da população, tragados pelas ferinas línguas das rãs, levaram os vaga-lumes ao desespero. Era preciso fazer alguma coisa. Reuniões realizaram-se entre os mais ilustrados vaga-lumes em busca de solução para a terrível ameaça. Escritores, políticos e cientistas debatiam sem achar solução enquanto as rãs dizimavam a população.
Após vários dias de discussão, finalmente os vaga-lumes encontraram uma saída: durante uma reunião, os cientistas deslumbraram os seus pares ao anunciar a mais recente conquista da tecnologia. Tratava-se de uma bomba que, lançada ao reduto onde viviam as rãs, provocaria a morte delas.
A alegria foi geral. Grandes comemorações ocorreram quando a notícia foi anunciada. O povo vibrou. Era o fim das rãs. Entretanto, restava um problema a resolver: quem lançaria a bomba sobre as rãs?
A dúvida era pertinente: a emissão de luz tornava os vaga-lumes alvo fácil para as rãs. Foi quando sugeriu-se que a ação fosse executada por um vaga-lume-bomba, que se sacrificaria por todos. Ocorre que a sociedade dos vaga-lumes há muito se tornara democrática. Os fanatismos de certas vertentes políticas radicais haviam se tornado coisas do passado, útil aos estudiosos de história. Por essas razões, não seria possível encontrar, em todo o mundo dos vaga-lumes, um só deles disposto a tão grande sacrifício em nome da espécie. Aliás, bem que se tentou: altas recompensas foram oferecidas a famílias mais pobres em troca do sacrifício de um dos seus membros. A propaganda daqueles dias estimulava pais desempregados a se sacrificarem pelos seus filhos.
Enfim, as tentativas se esgotavam enquanto as rãs, dia-a-dia, faziam mais vítimas. Foi quando os professores da escola se lembraram do vaga-lume sem luz e comunicaram a existência dele aos governantes.
A partir daí as coisas correram depressa. Policiais cercaram a casa dos pais do vaga-lume sem luz, intimando-os à localização imediata do filho. O assunto rapidamente chegou aos jornais e não se falava noutra coisa em todo o noticiário. Da noite para o dia o vaga-lume sem luz era convertido no único herói que salvaria todos os demais.
Ao receber a notícia de que fora escolhido o vaga-lume sem luz recuou. Lembravam-se dele agora que precisavam. A mesma sociedade que o excluíra rogava a ele que a salvasse. Era grande a sua mágoa pelo tempo em que vivia solitário como um ermitão, afastado do convívio dos demais e dos prazeres da vida.
Como sempre acontece nesses casos, foi o carinho da mãe que abrandou o coração do vaga-lume sem luz. Ele acabou cedendo e voltou ao grupo sendo recebido com festas só dedicadas aos grandes heróis. Nos primeiros momentos foi alvo de grande atenção, concedeu inúmeras entrevistas e, depois, recolheu-se ao quartel-general, para inteirar-se do plano de ataque.
Era uma manhã fria quando o vaga-lume sem luz partiu levando a bomba. A localização das rãs fora previamente determinada pelo hábil serviço de espiões infiltrados na região do pântano. Seguindo as rotas anteriormente determinadas, o vaga-lume enfim aproximou-se de seu alvo.
Foi um vôo certeiro. As rãs descansavam sem perceber a tragédia estava por acontecer. No momento certo o vaga-lume lançou a bomba e, obedecendo as instruções, voou para o alto de modo a fugir aos efeitos da explosão.
As rãs foram estraçalhadas e os espiões correram a dar a notícia ao governo que depressa espalhou a boa nova entre os vaga-lumes. Durante as festas que se seguiram pouca atenção foi dada ao salvador da espécie: é que ele era diferente, não tinha luz.
Verdade que não o hostilizaram. Ficou ele uns dias, ainda, com os, seus velhos país. Depois disso decidiu voltar para casa, ao ermitério onde vivia e onde se conta que viveu até morrer.
O mar invadirá a praia
Três mulheres conversam junto à barraca que vende água de coco, na feira. A mais velha fala sobre o fim da cidade de Santos que será coberta pelas águas:
- A água do mar vai cobrir quase tudo. Dizem que só dois bairros, mais para o fundo, escaparão da inundação.
- Mas e os prédios da avenida da praia? – pergunta uma das mulheres, baixinha.
- Não sei. Talvez não cheguem a ser encobertos. Mas vão ter água pelo menos até o meio deles.
A terceira mulher, até então calada, pergunta:
- Por que isso vai acontecer?
É a vez da mais velha:
- Dizem que há muito gelo se derretendo no mar. Também, com esse calor… O mundo está esquentando.
É a vez do vendedor de coco entrar na conversa:
- Dizem que isso tudo aqui era mangue. Fizeram a cidade em cima do mangue. Quer dizer, isso tudo pertence ao mar que vai cobrar o que é dele.
Seguem-se instantes de silêncio durante o qual as mulheres tomam a água de coco servida pelo homem da barraca. Depois, a baixinha pergunta:
- Mas, se o mar vai subir e inundar tudo, onde vamos morar?
A mais velha responde:
- Não sei. Espero que eu não tenha que brigar com a turma das cotas, essa gente que vive no meio da serra, por um lugar.
As mulheres pagam ao homem e partem para as suas casas, mais que nunca ameaçadas de desaparecer junto com a cidade. O vendedor de coco me olha desconsolado e diz:
- O fim está próximo.
Não sabendo o que dizer sou obrigado a concordar com ele:
- É… o fim está próximo.
O novo Sherlock Holmes
Se você estiver em Londres, tomar o metrô e descer na estação de Baker Street, provavelmente encontrará, em plena rua, algum homem alto, fantasiado de Sherlock Holmes: casaco de inverness, boné estilo caçador, cachimbo em curva, compondo a tradicional imagem do detetive criado pelo escritor Conan Doyle. Na verdade esse personagem estará ali para convidá-lo para uma foto juntos, naturalmente cobrando por isso.
O Sherlock Holmes vivido por Robert Downey Jr. rompe com a tradição cinematográfica dos Sherlocks a que estamos habituados. Não há nada de convencional no novo Sherlock que não tem nenhum pudor em emprestar o ritmo frenético do modo de ser do século XXI à personagem ambientada na Londres de fins do século XIX e inícios do século XX. Na verdade, a nova personagem parece confundir-se muito com o ator, Robert Downey, por natureza inquieto e para quem o tempo parece sempre a esgotar-se.
A dose de futuro aplicada a Sherlock Holmes confere a ele aspectos da modernidade que não pode ser encontrada nas narrativas de Doyle. O novo Sherlock amplia características do original, levando-as a um paroxismo aventureiro que pareceria deslocado na época em que a personagem foi criada. A prática do boxe, o manejo da esgrima e a agilidade tornam-se superlativas no novo Sherlock, detetive que alia seus fenomenais dotes dedutivos, arrogância e conhecimentos incomuns em várias áreas do conhecimento a crises existenciais, mormente entre um caso e outro, quando não está trabalhando.
Renovado, também, está o Dr. Watson, médico companheiro de Sherlock, anteriormente apresentado como biógrafo do detetive e homem algo inexpressivo. O Watson vivido por Jude Law deixa para trás arquétipos anteriores da personagem. Se mantém a aura de ex-combatente no Afeganistão, transformou-se num ágil protagonista que luta ao lado de Sherlock, ainda que contra a sua própria vontade. O novo Dr. Watson é um homem em permanente crise de identidade: quer se casar, afastar-se de Sherlock, mas é traído pela sua preocupação com o amigo e pelo chamado de aventuras ao qual não consegue resistir. É a sina dos homens de ação que cobra a Watson a sua participação nos crimes que Sherlock procura desvendar.
A trama de “Sherlock Holmes” é linear. As idas e vindas da trama ficam por conta do mistério que cabe a Sherlock desvendar. O vilão é Lord Blackwood (Mark Strong) um mestre de ocultismo que tem planos de dominar a Inglaterra e o mundo. São as suas diabruras que desafiam a lógica de Holmes. Blackwood serve-se de uma auxiliar, Irene Adler (Rachel McAdams), ladra e amor antigo de Holmes. O filme ganha muito com efeitos especiais que conferem maior dramaticidade à ação.
Sherlock Holmes é um bom filme, atendendo ao que dele se espera: diversão e distração com uma boa história. Se não chega a empolgar, tem o mérito de renovar as narrativas cinematográficas de histórias de detetives. Da forma em que foi engendrado, o filme se presta à continuidade: um novo detetive está na praça, com características marcantes e capazes de atrair o grande público. Se assim acontecer será revivida a trajetória de Connan Doyle, sempre a publicar novas histórias do detetive que criou até se cansar e matá-lo em 04/11/1911, após uma luta feroz com um de seus inimigos. Na época os protestos de leitores contra Doyle por matar Holmes foram tantos, tão violentos, que ele se viu obrigado a ressuscitar a personagem. Sherlock Holmes reapareceu em 1913 em nova aventura, sempre morando em sua casa, no número 211B da Baker Street, de onde, pelo jeito, nunca se mudará, saindo ocasionalmente para viver novas aventuras.
Aniversário de São Paulo
Aquele orgulho de conquistar um espaço na cidade grande continua em pé. Ele sempre fez parte de um orgulho ainda maior, representado pela existência de uma cidade como São Paulo, justamente em nosso Estado.
Cidade grande é imã, atrai gente, concentra negócios, gera oportunidades, exclui e integra dependendo da garra de quem a encara. Quem nasceu em São Paulo, o paulistano, tem histórias a contar. Quem veio de fora e deu um jeito de se sentir paulistano também tem muitas histórias. São Paulo é um mar de histórias interminavelmente continuadas no dia-a-dia do movimento das gentes, na velocidade dos carros que detonam o asfalto, nas favelas, nos ambientes chiques, na vida humana que se distribui por todas as regiões da cidade.
Ei, você se lembra de como via a cidade com os seus olhos de menino? Era mais acanhada, mais provinciana, talvez ciosa do valor que iria mostrar nas décadas seguintes, mas ainda contida como se revelasse alguma inveja das grandes metrópoles do mundo. Os bondes corriam nos trilhos, o comércio chique espalhava-se nas das ruas do Triângulo e arredores, descendo pelo Viaduto do Chá, espraiando-se na Barão, na Sete de Abril, um pouco em torno da Praça da República, do lado em que fica a Av. Ipiranga. Que ano? Sei lá, vá lá o final dadécada de 50 e início da de 60 quando as pessoas usavam ternos, ainda que mirrados, quando não um simples paletó, marcas registradas de outra ordem de coisas, atestados de civilidade e respeito, pujança de cidadania Nesse tempo a Rua São Bento era… ah, a Rua São Bento. Não havia o metrô, nem sonho dele na cidade que crescia e a Rua São Bento terminava em solo firme, sem as escadarias do metrô, defronte o Mosteiro de São Bento, fazendo par com a Rua Líbero Badaró, como ainda é hoje.
Eu andei por lá, você andou por lá, quem sabe parando um pouco no Largo do Café ou esticando até a esquina da Praça do Patriarca. Ali, bem na esquina da praça havia uma loja da Casa Fretin onde se viam, através dos vidros, toda a sorte de equipamentos médicos à disposição dos consumidores. Você se lembra?
Depois São Paulo mudou, os ternos foram para os cabides, as mulheres ousaram mais com suas roupas de tempos de rebeldia, o comércio elegante saiu do centro para sediar-se nos modernos shoppings centers e a vida tornou-se outra.
Então, agora que a cidade completa mais um ano de sua gloriosa existência, agora que não existem mais os restaurantes e cinemas de ontem na região do Largo do Paissandu, eu me pergunto por que falei justamente sobre os lugares que acabo de citar e não de outros. Por que a minha memória não correu atrás da Av. Paulista, do Bom Retiro, da Lapa, de Pinheiros, de Higienópolis e tantos outros lugares com tantas ruas interessantes por onde passamos?
Ora, é que para mim São Paulo sempre será o Velho Centro como o glamour de suas lojas e casas de comércio. Quanta dor quando o vimos em decadência até se transformar no que é hoje, só um centro de cidade com milhares de pessoas correndo como se não fossem a nenhum lugar, um centro que seria como outro qualquer, não fossem as memórias, as ruas de sempre, os itinerários que amamos e tudo aquilo que se tornou parte de nós e das nossas vidas.
É para o Velho Centro que dirijo os meus mais efusivos abraços no mês em que São Paulo comemora mais um aniversário. Alegra-me pensar que não estou sozinho ao agir desse modo: existem por aí centenas, milhares de pessoas, que percorreram caminhos semelhantes aos meus, amaram e amam como eu aquelas ruas.
Parabéns São Paulo. Vida nova ao Velho Centro.
Salvem a onça-pintada
A onça-pintada (Phantera onca) está desaparecendo em biomas brasileiros como a Caatinga e a Mata Atlântica. Quem dá o alerta é o Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros). Segundo esse órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente o problema é crítico na Caatinga onde se estima existirem 365 animais, divididos em cinco áreas, sendo que apenas metade deles encontra-se em idade reprodutiva. Segundo pesquisadores, na Mata Atlântica existem no momento somente 170 indivíduos maduros. A situação é melhor no Pantanal do Mato Grosso e na Amazônia.
Segundo notícia foi publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo” no dia de ontem, as causas apontadas para a diminuição da população de onças são o desmatamento e a falta das presas. Outro grande fator a afetar o desaparecimento das onças é a perseguição que elas sofrem por parte de fazendeiros dado atacarem os rebanhos para se alimentarem.
Ao leigo pode ocorrer perguntar: e daí, o que muda num mundo sem onças? Deixando de lado a importantíssima perda de patrimônio genético ligada à extinção da espécie destaque-se o importante papel da onça-pintada em seu papel de predação dentro dos ecossistemas em que vive. Predação é a destruição violenta de um indivíduo – a presa -por outro – o predador. A predação é muito importante porque serve como fator de regulação do tamanho das populações de presas. Isso quer dizer que sem predadores as populações de presas crescem muito, acarretando sérios problemas aos ecossistemas cujo equilíbrio é alterado.
Assim, a redução ou o desaparecimento das onças-pintadas têm reflexos sobre os ecossistemas onde elas vivem. No Pantanal, por exemplo, a onça-pintada alimenta-se de animais herbívoros como a anta, o cervo-do-pantanal e a capivara. Uma diminuição do número de onças resulta no crescimento das populações das suas presas, os herbívoros, que passam a consumir as pastagens com prejuízo dos rebanhos criados nas fazendas. Por esse motivo a perseguição dos fazendeiros à onça pelo fato de ela matar o gado têm como consequência a redução das pastagens que servem de alimento ao mesmo gado.
É preciso considerar que cada bioma tem as suas próprias características, sendo habitado por comunidades de seres diferentes. Segundo informam os pesquisadores que estudam as populações de onças, na Caatinga o fato de tatus e porcos-do-mato serem consumidos por parte da população humana acaba gerando falta de presas para as onças, contribuindo para a sua extinção.
Existem propostas para evitar o desaparecimento das onças-pintadas. Uma delas é a interligação de regiões onde atualmente vivem populações desses animais isoladas umas das outras. Há quem recomende investimentos na Amazônia onde ainda existem regiões de mata virgem nas quais as onças sobreviveriam e se multiplicariam. Propõe-se, também, pagar aos fazendeiros pelo gado perdido por ataques de onças para que eles deixem de matá-las.
A onça-pintada é o maior felino das Américas. De hábitos noturnos, predadora, chega a pesar 135 kg e é encontrada em biomas brasileiros nos quais está ameaçada de extinção. Urge proteger a espécie e evitar o seu desaparecimento.
Haiti: tragédia após trajédia
Talvez seja exagero falar em dupla tragédia no Haiti. Uma delas ainda nos abala com a divulgação de acontecimentos diários após o terremoto, marcados por desordem, violência e busca de sobrevivência a qualquer preço. Vez por outra, uma rara notícia boa a respeito de uma pessoa milagrosamente retirada com vida dos escombros, passados onze dias desde a ocorrência do abalo sísmico.
A segunda tragédia pode ser encarada como uma peça digna de ser representada no teatro do absurdo: trata-se da competição pela primazia de ajuda aos haitianos na qual, infelizmente, o governo brasileiro vem cumprindo triste papel.
De que as razões do governo brasileiro são muito mais de natureza política que humanitária não restam dúvidas. O jornalista Janio de Freitas escreve sobre o assunto na “Folha de São Paulo”, apontando a obviedade do erro de enfrentamento com os Estados Unidos, atrás de uma hegemonia impossível. Entre outros erros, Janio aponta a iniciativa do presidente Lula de cobrar do presidente da ONU que a distribuição de alimentos fosse feita só por civis para, no dia seguinte, os soldados brasileiros montarem um posto de distribuição de água e alimentos. Isso sem contar com o esforço dos membros do governo para impedir que os Estados Unidos distribuam gêneros e a resposta ao envio de 7000 militares norte-americanos ao Haiti: o Brasil decidiu dobrar o seu efetivo naquele país.
Se é verdade que no plano diplomático os dois países tentam estabelecer um acordo para ajudar o Haiti, nas ruas daquele país verifica-se uma disputa sem sentido pela primazia em ajudar. É bom lembrar que o terremoto do Haiti também é muito últil ao governo norte-americano no sentido de humanizar a imagem de seu pais ultimamente ligada a guerras e outros acontecimentos desagradáveis aos olhos do mundo.
Não é preciso ser muito esperto para adivinhar o resultado de um enfrentamento com os Estados Unidos dados os enormes recursos de que dispõe a grande nação do norte. A saída, óbvia, é uma parceria com a qual o Brasil só tem a lucrar em termos políticos já que os aspecto humanitário parece estar mesmo em segundo plano.
Entretanto, é bom refrear o entusiasmo quanto a uma participação lúcida do governo brasileiro no episódio Haiti: hoje mesmo os jornais noticiam que o chanceler Celso Amorim está sugerindo que governo brasileiro lidere a reconstrução haitiana, daí anunciar que a ajuda de emergência será dobrada para 30 milhões. Mais: o reerguimento do Haiti será executado em acordo com o “Plano Lula”.
Aí você se cansa, vira a página, vai para o caderno de esportes e fica sabendo que o São Paulo ganhou. Depois dá uma corrida de olhos em outros cadernos e vê uma fotografia do ator norte-americano Jack Nicholson, tendo ao seu lado o ator George Clooney que está em alta pelo seu último filme. Os dois foram fotografados no momento em que participavam do “Hope for Haiti Now”, um programa que reuniu vários artistas, foi exibido em vários canais e arrecadou US$ 30 milhões para serem enviados ao Haiti
Aí você joga o jornal num canto e fica pensando num título para o projeto do governo brasileiro para o Haiti.
Que tal “Delírio de Grandeza”? Não parece bom?
A língua dos políticos
Numa semana de troca de farpas entre governistas e oposicionistas não há como não se render à evidência de que não se deve esperar muito da próxima campanha eleitoral em termos de propostas para o país.
As infeliz afirmação do presidente do PSDB, dizendo que os tucanos acabarão com o PAC por se tratar de uma ficção, forneceram oportunidade para que o presidente da República e sua candidata se manifestassem, de maneira bastante imprópria: o presidente dizendo que “quer fazer a campanha do quem sou eu e quem és tu”, a candidata afirmando que a vitória dos oposicionistas representará o fim dos programas sociais em andamento no atual governo, com prejuízo para as classes menos favorecidas.
Sem ao menos entrar no mérito da eficácia de programas como o PAC evidencia-se, mais uma vez, a grande dicotomia de um país capitalista no qual a disparidade social e econômica é por demais acentuada e, talvez, decisiva em termos eleitorais. O discurso da ministra obviamente dirige-se ao chamado “povão”, massa imensa de brasileiros desvalidos e eleitores os quais, sob ameaça de retirada das benesses assistencialistas a eles hoje disponibilizadas, não terão dúvidas sobre em quem votar nas próximas eleições. Não importa que as camadas mais letradas detectem um lamentável sofisma nas palavras da candidata – os jornais de hoje caem de pau sobre o pronunciamento dela. O que verdadeiramente importa é que o recado certeiro da candidata chegará ao seu público alvo, em sua maioria não dado a interrogações mais profundas que aquelas ligadas à sobrevivência imediata.
Mas que não se enganem aqueles que esperam dos políticos da oposição atitudes mais coerentes. Revides do mesmo nível e acusações contra o caráter de seus oponentes ocorrerão, infelizmente para o país. A pouco sutil afirmação do presidente do PSDB terá sido apenas uma “overture” da campanha que já se inicia.
Em um de seus textos o antropólogo Darcy Ribeiro dizia que a dor que mais doía a ele era a de envelhecer temendo que os jovens de seu tempo tivessem que repetir, no futuro, que o Brasil é um país que não deu certo.
Que o espírito de Darcy Ribeiro descanse em paz: o Brasil vai dar certo, estamos já a meio caminho disso. Acontece que talvez a realização do grande sonho demore mais do que seria esperado dado o perfil da classe política atualmente em atividade.
Mas não devemos nos preocupar: essas pessoas passarão e o país seguirá forte, imenso e fértil, livre das mentiras de ocasião e das personagens menores, cumprindo o destino que dele se espera.
Não tenham dúvidas quanto a isso.
Noivado em São domingos
Na última vez que vi a grande biblioteca os livros estavam amontoados uns sobre os outros, formando uma pilha, como se alguém os tivesse disposto assim para queimá-los. Mas não era o fogo que os ameaçava: o teto do cômodo onde estavam ruíra em parte e gotas de chuva chegavam até eles, molhando alguns para o meu desespero.
Em vão discuti com o proprietário dos livros sobre a inconveniência daquela situação. Dera ele à biblioteca o mesmo fim que impusera à sua vida, agora confusa e sem o brilho de outrora. Perdido entre problemas menores, que sua lúcida inteligência era totalmente incapaz de organizar, transformara a cultura que adquirira através da leitura numa pilha, simulacro de sua própria alma.
Quase nada pude fazer contra o inevitável: consegui, numa distração do proprietário, salvar alguns livros que ainda hoje tenho comigo. A maioria sucumbiu à chuva e ao relento, desaparecendo sem deixar vestígios. Foi assim que uma grande biblioteca, formada entre os anos 30 e 60 do século XX, deixou de existir.
Lembrei-me da biblioteca desaparecida nesses dias em que o Haiti é mencionado diariamente no noticiário em decorrência do grande terremoto que se abateu sobre aquele país. As terríveis cenas de destruição e a violência a que são arremetidos os haitianos, em sua busca de sobrevivência a qualquer preço, remeteu-me a um dos livros que salvei da grande biblioteca. Trata-se de “Noivado em São Domingos”, obra do escritor prussiano Heinrich Kleist (1777-1811).
A leitura do primeiro parágrafo do “Noivado” nos introduz no universo trabalhado por Kleist:
“Em Port au Prince, do lado francês da Ilha de São Domingos, no início deste século, quando os negros matavam os brancos, vivia um terrível preto, cujo nome era o Congo Hoango.”.
O texto nos remete à luta pela libertação dos escravos do lado francês do Haiti, ocorrida entre 1793 e 1803. Lembremo-nos de que o Haiti foi a primeira nação no muno latino-americano e caribenho a se tornar independente, em 1803. Note-se que o nome “São Domingos” era dado à ilha antes de sua divisão em dois países, o Haiti e a República Dominicana. A libertação do Haiti partiu de movimentos organizados por quilombos onde se falava a língua creole e a religião era o vodu (síntese da religião católica introduzida pelos colonizadores e rituais africanos).
Do movimento de libertação participaram, em épocas diferentes, líderes como o africano Francois Makandal cuja tática era queimar plantações e casa de colonos. A outro líder, Boukman Dutty, escravo fugido, atribuí-se a realização de uma reunião entre vários líderes na qual se celebraram vários ritos tribais e de vodu, decidindo-se, ao final, pela morte de todos brancos da ilha. A partir daí, iniciou-se uma grande queima de plantações e morte de colonos.
É a esse episódio que se refere Kleist no seu “Noivado”. Não só “Noivado”, mas os outros livros de Kleist são ambientados em fatos históricos que, por assim dizer, sustentam as tramas ficcionais engendradas pelo escritor. Em relação a “Noivado” coloca-se em suspeição a posição do narrador da história - o próprio Kleist: compartilharia ele o ponto de vista colonialista e racista que existe em seu texto, ou teria escrito justamente para expor os extremos a que conduz a dominação do homem pelo homem?
De parte dessa discussão fica a obra, marcadamente identificada com o romantismo alemão, ainda hoje muito interessante. “Noivado em são Domingos” nos remete ao mundo de formação do Haiti. Embora não seja pretensão de Kleist narrar a história do país – a obra é ficcional – através dela pode-se conhecer um pouco do passado daquele país e inferir o curso histórico que seguiu até os lamentáveis dias de sofrimento pelo qual sua população passa nos dias atuais.