Arquivo para janeiro, 2010
O “Dia sem calças”
As pessoas entram na estação do metrô vestidas. Ao chegarem à plataforma tiram a roupa e ficam de só de cuecas ou de sutiã e calcinha, conforme o sexo. É desse modo que elas entram nos trens e fazem as suas viagens.
Trata-se do “Dia sem calças”. Os participantes devem obedecer algumas regras como não rir ou interagir com outros sem calças. Cada um na sua, portanto.
O interessante é que ninguém sabe dizer o porquê, nem mesmo para que serve esse tipo de procedimento. Participa quem quer. Talvez para alguns o “Dia” figure como um inusitado exercício de liberdade, liberação de certos instintos ou outra coisa qualquer. Com isso não concordam os organizadores di dia para quem a brincadeira visa apenas colocar o sorriso nas faces.
O “Dia sem calças” ou “No Pants Day” é uma brincadeira coletiva que começou em Nova York, em 2002, e já está na sua nona edição. O evento já se espalhou por 43 cidades em 16 países. Apesar do inverno rigoroso no Hemisfério Norte o evento aconteceu domingo passado em Nova York. Estima-se em 3000 o número de participantes.
Coisa de americanos? Não se apresse em julgar, afinal o mundo está globalizado e quem sabe a moda pega aqui.
Alguém que andava por aí
Morreu o Marcos para quem a vida nada mais era que um acidente biológico, sem antes nem depois, invalidando todos os credos. Nunca foi, de per si, um filósofo e nem adotou qualquer escola filosófica como padrão de pensamento. Se leu filosofia foi em horas vagas e por distração: empolgava-o o esforço humano em compreender sua própria natureza, embora não visse nesse ato qualquer finalidade.
Marcos tinha perfeita consciência do imediatismo de tudo o que se faz e suas consequências. Talvez por essa razão não visse lógica em qualquer tipo de planejamento para um futuro incerto e que, por capricho da morte, simplesmente poderia não existir. Avesso a tudo que dura, detestava contratos aos quais taxava de meio utilizado pelos homens para emprestar eternidade ao que é finito.
Por pensar assim, era-lhe estranha a idéia de família. Considerava o casamento como uma instituição perversa, criada para sacramentar ligações a qualquer custo. Sendo o sexo uma necessidade de natureza puramente biológica e a atração nada mais que exacerbação dos sentidos, comprazia-se na prática sexual como meio de livrar-se de necessidades imperiosas. Ainda assim, evitava o convívio prolongado com mulheres. Na única vez em que as suas teorias foram ameaçadas por uma ligação com mulher que beirou a paixão, desapareceu subitamente para retornar tempos depois, dizendo-se curado.
Um homem assim viveu entre nós. Tinha ele o olhar agudo que localiza de imediato o absurdo das situações e em sua boca jazia sempre o sorriso dos boçais, emprestando ao seu rosto a aura do palhaço que ri de tudo e de si mesmo. Mais de uma vez eu disse a ele que o tal sorriso fora uma adaptação morfológica de seus lábios, caracterização possível a um mestre da mímica que quer zombar do mundo. Dizia-me ele que não, jamais interferira naquilo que fora geneticamente mal feito e que resultara na aparência tida por ele como esdrúxula, mas que, no fundo, pouco lhe importava.
Marcos jamais teve atividade fixa e o pouco dinheiro que ganhou resultou de publicações esparsas de seus textos, arranjadas por amigos. Tempos atrás sofreu um derrame. Fui visitá-lo no hospital e ele me recebeu com a alegria de quem encontra um amigo em pleno campo de batalha. O desvio de rima consequente ao derrame roubara-lhe parte do sorriso, mas a alegria era genuína. Durante a conversa ele me confidenciou que aquele lugar tinha todas as características do corredor da morte, porque de um dia para outro os doentes graves desapareciam e eram substituídos por mais gente destinada a morrer. Era o seu modo de encarar o fim, com o imediatismo de sempre e a eterna vocação para identificar o absurdo.
Hoje de manhã recebi a notícia da morte do Marcos. Não sei se irei ao enterro. De todo modo, decidi tirar o dia de folga porque, assim me pareceu, o mundo ficara vazio de repente. Depois fui até a janela, observei os carros passando na rua e percebi um imenso buraco na realidade deixado por um amigo que andou por aí, quase sempre incógnito, rindo de tudo, certamente sofrendo muito por si e pelos outros.
Franquias de terrorismo
Em entrevista cedida ao jornal “Folha de São Paulo” o cientista político e filósofo francês Oliver Roy afirma que, atualmente, a Al-Qaeda funciona como uma multinacional na qual os franqueados, sediados em vários países, têm autonomia para executar as ordens da cúpula, ainda comandada por Osama Bin Laden e Ayman Al Zawahiri. Trata-se, portanto, de uma organização do tipo McDonald’s, obviamente com outros fins.
Olivier Roy não está sozinho em sua opinião. Os meios de comunicação têm destacado a descentralização do poder da Al-Qaeda e o surgimento de franquias de terrorismo. São exemplos o recente e fracassado atentado em um avião que aterrisaria em Detroit, o major que matou 13 militares em uma base do Texas e o médico jordaniano, informante dos EUA, que se explodiu numa base do Afeganistão, matando sete agentes da CIA.
Como isso se reflete em nossas vidas? Afastados geograficamente do epicentro das ações terroristas, os brasileiros sentem na pele o problema nos aeroportos, durante as suas viagens. O rigor das checagens com malas e bagagens de mão aumentou muito, mesmo nos aeroportos do país. O pior é quando acontece o tal apito, indicando a presença de metais em vestes ou no próprio corpo do passageiro. Recentemente, fui obrigado a ficar, em público, de braços abertos e sob o escrutínio de sensores manuais que buscavam em mim a razão do apito ecoado quando atravessava a barreira de ingresso à área de embarque. No fim, tudo ficou por conta de uma moeda de 5 centavos perdida em um bolso, da qual não me dei conta.
É assim que rápida e insistentemente vamos perdendo a privacidade. Dentro em pouco entrarão em funcionamento escâneres que devassarão a intimidade dos passageiros, exibindo detalhes de seus corpos (parece que já estão em funcionamento na Inglaterra).
Vou me preparar para ser escaneado, coisa que jamais imaginei antes por futurista demais. Culpa dos terroristas que, além do imediatismo de suas ações, com elas alcançam efeitos retardados privando-nos de nossa liberdade.
Tempos ultramodernos os em que vivemos.
O Programa Nacional de Direitos Humanos
O recém-divulgado Plano de Direitos Humanos caiu como uma bomba em vários setores, gerando veementes protestos. A grita dos militares foi grande diante da criação de uma “Comissão da Verdade” para rever a Lei da Anistia; a Igreja levantou-se contra o veto a símbolos religiosos em lugares públicos; o ministro da Agricultura previu aumento de insegurança no campo se aplicados os novos mecanismos para reintegração de posse; a imprensa chiou barbaridade contra a adoção de critérios de acompanhamento editorial dos meios de comunicação, considerados inconstitucionais; a OAB posicionou-se para cobrar do governo atitude igual à cobrada por ele da sociedade; congressistas pronunciaram-se, dizendo que o conteúdo do documento não é matéria para decretos.
Para nós, mortais comuns, ficou no ar o velho cheiro de autoritarismo, aquele jeitão de resolver com canetadas e de uma só vez pendências que o país não parece maduro para discutir em profundidade.
Nenhuma direita, por mais extremada que seja, compara-se, em termos de sonhos de dominação, à esquerda quando assume o poder. Trata-se de uma espécie de revide ideológico, por vezes inconsciente, afluente do autoritarismo.
A medida exata do Plano de Direitos Humanos é dada por D. Dimas de Lara Rezende, da CNBB, ao perguntar se teremos que demolir a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.
Seria o caso, seria o caso, afinal estamos no Brasil onde tudo é possível.
O cortador de cana relata
É um rapaz moreno, gente boa, conversador do tipo que puxa assunto. Quer porque quer ser agradável. A certa altura pergunta:
- Quantos anos o senhor acha que tenho?
Olho o rapaz de alto a baixo e respondo:
- Você tem mais ou menos 30, acho que é por aí.
Ele sorri. Depois diz que está acabado, tem só 21 anos. Acrescenta que o que acabou com ele foi o serviço de cortador de cana:
- É duro, muito duro. O dia inteiro debaixo desse sol do nordeste. E para ganhar o que se ganha…
Interessado, pergunto:
- Diga aí, quanto se ganha?
- Depende. Se a pessoa trabalhar na usina recebe o salário mínimo. Agora, se o trabalho for para fornecedor o salário depende da produção. É assim: o serviço é contado pelo número de feixes de cana cortados, cada feixe pesando 10 Kg. Para cada 100 feixes a gente recebe 8 reais.
- Mas - digo a ele – 100 feixes de 10 Kg correspondem a uma tonelada.
- Então, senhor, veja aí: um bom cortador, dos melhores, consegue duas toneladas e meia por dia, o que dá 20 reais. Mas, isso se o cara for muito bom.
- Quanto produz um cortador, em média? – pergunto.
- A maioria se acaba com uma tonelada e meia.
- Ou seja, em média um cortador de cana ganha 10 reais por dia – concluo.
Ele me olha demonstrando alguma tristeza e diz:
- É. Porém, acontece que a balança do cara que pesa não é das boas, sabe? Ela nunca dá os 10 Kg para o feixe que pesa. Daí que nem sempre se chega aos 10 reais por dia.
A conversa termina aí. Penso em 10 reais por dia de trabalho, nos 300 reais de salário mensal e em homens cortando cana debaixo de sol inclemente. Penso, ainda, nas estradas de terra esburacadas e nos homens que trafegam por elas, em geral em velhas bicicletas, no escuro, voltando dos canaviais. Por fim, penso no Brasil, na imensidão territorial do país, nos povos que habitam as suas terras, nos discursos dos homens que detêm o poder e em mim mesmo, impotente e despreparado para compreender tão grande desigualdade.
Dalva e Herivelto
Não é possível saber o quanto há de veracidade na trama de “Dalva e Herivelto”, atualmente em exibição pela Rede Globo. Até o capítulo de ontem pode-se dizer que se trata de uma produção muito boa, impressionando muito o desempenho dos atores. De fato, as personagens Dalva e Herivelto interpretadas, respectivamente, por Adriana Esteves e Fábio Assunção representam um grande desafio para os dois atores. Assunção está muito bem como o compositor Herivelto Martins, um tipo bem brasileiro que unia à grande arte de seu ofício um modo de ser bastante comum em décadas anteriores, afinal os homens eram “os homens” e como tal comportavam-se.
Mas o grande mérito da minissérie é devolver-nos um Brasil que já não existe, a era de ouro da Rádio Nacional, fazedora de ídolos que arrastavam multidões. As pessoas mais velhas hão de se lembrar do período anterior à era da televisão no qual o rádio consistia no único meio de comunicação em massa dentro do território nacional. Na frente da Rádio Nacional, localizada na Praça Mauá, Rio de Janeiro, formavam-se filas para assistir aos programas de locutores como César Ladeira. Isso tudo se repercutia em todo o país, formando-se legiões de fãs de cantores altamente populares como a própria Dalva de Oliveira.
Dalva de Oliveira terá passado ao público mais a imagem de vítima de Herivelto, pelo menos na opinião das mulheres. Herivelto personificava o marido padrão de uma época, bom pai e bom chefe de família que, por isso mesmo, dava-se o direito a seus “pulos” fora do casamento. Isso ouvi, anos depois da era do rádio, das mulheres mais velhas de minha família. Independentemente de quem fosse realmente Dalva de Oliveira, o fato é que ela representava o modo de ser de grande parcela das donas de casa brasileiras, sempre às voltas com o s seus maridos.
Fica também, através a minissérie, a constatação do grande compositor que foi Herivelto Martins. Suas composições pertencem ao universo do que há de melhor na música brasileira, impressionando o número de sucessos de sua lavra cujas letras muita gente conhece de memória e canta junto ao ouvi-las.
Salve os grandes compositores, cantores e as cantoras nacionais.
São Luís do Paraitinga
Acompanhei consternado o triste episódio que destruiu edifícios históricos de São Luis do Paraitinga. A grande enchente do rio Paraitinga desfez parte do conjunto arquitetônico que possui o maior número de casas térreas e sobrados tombados pelo CONDEPHAAT no Estado de São Paulo. Os prejuízos histórico e paisagistico são, portanto, de grande monta.
Não sei se o leitor teve oportunidade de visitar São Luís nos útimos tempos. Encontraria uma cidade pacata, exceto no período de carnaval, considerado um dos mais agitados de todo o Estado de São Paulo.
Estive em São Luís há poucos anos, na época em que desenvolvi uma pesquisa sobre o médico sanitarista Oswaldo Cruz, nascido naquela cidade. Essa pesquisa resultou numa biografia do grande médico, ainda não publicada dadas as tendências editoriais brasileiras que, na maioria das vezes, dificultam publicações de obras do gênero citado.
Na ocasião pude sentir o pulso da cidade e a boa vizinhança de seus habitantes. Em relação à minha pesquisa, visitei a casa onde nasceu Oswaldo Cruz e a igreja matriz na qual o futuro médico foi batizado.
Para mim, a notícia mais triste sobre a tragédia de São Luís do Paraitinga foi o fato da enchente ter-nos privado da existência da centenária igreja matriz que ruiu, abalada pelas águas. Ficava a igreja na praça central da cidade, formando com as casas tombadas um quadrilátero de rara beleza.
Certamente outra igreja será construída no mesmo lugar. Entretanto, fica essa sensação de perda irreversível, de história descontinuada, de batismos, crismas, casamentos e mesmo cerimônias fúnebres definitivamente encerradas. É como se por ordem do rio fossem apagados os vestígios das pessoas que em tempos passados visitaram a igreja e ali celebraram cerimônias religiosas pessoais e familiares.
Como em tudo na vida vai-se embora o passado, ficam as lembranças. É bom, talvez, que seja assim. De minha parte prefiro me lembrar do dia em que, pela Rodovia Oswaldo Cruz, cheguei a São Luís. Antes de entrar, parei o carro e, do alto de um morro, observei a cidade. Lá estavam o rio de águas calmas e um tanto barrentas, seguindo o seu curso para desembocar no Paraíba do Sul. Lá também estava a praça com os prédios tombados e a igreja, soberana na paisagem montanhosa.
É desse modo que prefiro me lembrar de São Luís do Paraitinga, com a sua praça e o seu rio, sem enchente, sem destruição, como se nada tivesse acontecido.
Ano eleitoral
Mal começa o ano e já se desenha o rumo que tomarão a imprensa e, consequentemente, as nossas atenções. Ontem os jornais destacavam a febre de inaugurações previstas tão a propósito em ano de candidaturas a cargos eletivos. Destaca-se a maratona de inaugurações já iniciadas pelos pré-candidatos à presidência da República, o governador José Serra e a ministra Dilma Roussef. Para que se tenha idéia numérica do fato, informa-se que, usando o Programa de Aceleração do Crescimento, o presidente Lula compareceu a 52 inaugurações, de 2007 até o momento. Entretanto, para 2010, estão previstas, dentro do mesmo programa, 203 inaugurações de obras com a presença do presidente e sua pré-candidata à presidência. Como se vê, trata-se de uma fantástica busca de visibilidade. Recorde-se que as próximas eleições serão realizadas no dia 3 de outubro, ou seja, dentro de nove meses ou, grosso modo, 270 dias. Isso representa que a inauguração de 203 obras em todo o país roubará ao presidente grande parte do tempo de que dispõe para governar.
O fato não é novo. Manuel Ferraz de Campos Salles foi presidente da República do Brasil no período entre 1898 a 1902. Governou contra tudo e todos referendando a política monetária liberal de seu ministro Joaquim Murtinho. Encontrou o país aos frangalhos em termos econômicos e estabeleceu acordo com os credores ingleses conhecido como “funding loan”. O governo Campos Salles foi um período de recessão absoluta visando sanear as finanças. Além disso, a Campos Salles deve-se a chamada “Política dos Governadores”, meio utilizado para dar maior poder às oligarquias estaduais obtendo, assim, sustentação ao governo federal.
Campos Salles deixou o governo com total desaprovação da população. Dera ao país dias de sofrimento e retração dos negócios com implicações profundas sobre as classes menos favorecidas. Mas, ao final, saneara as finanças e abrira caminho para que seu sucessor, Rodrigues Alves, modernizasse o Rio de Janeiro.
Em 1908, Campos Salles publicou um livro de memórias políticas intitulado “Da Propaganda à Presidência”. Embora distanciado 100 anos de nossa época e tratando de outra realidade, ainda hoje há muito a se aprender no livro de Campos Salles sobre atividade política, honestidade e história do Brasil. Um dos detalhes discutido por Campos Salles em “Da Propaganda à Presidência” é o fato da administração, nos dois anos finais de governo, ser comprometida por articulações políticas e pela necessidade do presidente fazer o seu sucessor.
Não é nova entre nós, portanto, a disposição do atual presidente da República de empenhar-se pela candidatura da ministra-chefe da Casa Civil. O que se espera é que o país não pague contas indevidas pela falta de tempo para governar e não se endivide por benesses fornecidas aos estados e prefeituras em troca de apoios eleitorais.
A edição original de “Da Propaganda à Presidência” pode ser encontrada em sebos. Existe uma edição do livro feita UNB em 1983, ainda nas livrarias. Para os interessados em Campos Salles e seu governo recomenda-se:
DEBES, Célio, Campos Salles - Perfil de um Estadista, 2 volumes, Editora Francisco Alves, 1978.
MARCONDES, Ayrton, Campos Salles - Uma investigação na República Velha, Editora Universidade Sagrado Coração, Bauru, 2001.
Fim do recesso
Está aí a tal segunda-feira, 04 de janeiro, na qual a vida recomeça para muita gente. Termina o período de recesso de muitas empresas, volta-se ao trabalho, as festas estão definitivamente encerradas e, principalmente, desfaz-se a amnésia voluntária a que nos entregamos nos últimos dias. Isso quer dizer que as pendências temporariamente esquecidas reaparecem, com toda força, a partir do momento em que acordamos ou chegamos ao trabalho.
Acontece assim todos os anos, com maior ou menor intensidade para cada um, na maioria das vezes em acordo com as responsabilidades assumidas. O problema é cíclico, portanto, o que nos leva a pensar se não é possível, senão evitá-lo, pelo menos minorar os seus efeitos.
Fui levado a pensar sobre esse assunto porque justamente nesta manhã me perguntei se o modo de viver (sobreviver) atual não é muitas vezes mais complexo do que em décadas anteriores. De que o mundo mudou demais e o cotidiano passou a se impor com mais força não restam dúvidas. Isso não quer dizer que a vida fosse fácil no passado ou que as pessoas não enfrentassem problemas proporcionais às suas escolhas. Mas, não há como negar que existia anteriormente uma lógica cotidiana mais fácil de ser compreendida. Para ficar num só exemplo não havia, então, essa banalização do mal que hoje é praticado quase como uma forma de ativismo irreversível. Ao expectador de hoje o modo de viver há 30 ou 40 anos talvez pareça mais ingênuo que o atualmente verificado. Mais cordialidade, mais respeito, maior fraternidade e certa compaixão em relação ao outro a quem não se conhece faziam parte do modo de ser das pessoas.
É nesse ponto que voltamos a esta segunda-feira. A essa altura você já deve ter saído de casa e, se vive numa grande cidade, pode estar preso a um congestionamento, pensando que não pode se atrasar justamente no dia de volta ao trabalho. Não será preciso citar o que passa pela sua cabeça, as necessidades urgentes, o muito a fazer, o estresse a que está submetido e que faz o seu estômago voltar a doer após dias em que nem mesmo foi preciso tomar remédios.
Melhor seria, talvez, ter deixado o parágrafo anterior em branco, com uma indicação ao leitor para preenchê-lo em acordo com as ocorrências da sua rotina. De todo modo, sejam quais forem as circunstâncias, fica a pergunta: é preciso ser assim, não existe outro modo de viver?
Talvez seja impossível a uma pessoa desvencilhar-se por completo das amarras que a prendem. Em todo caso, vale lembrar de que não precisa ser assim, não tem que ser assim, existem opções menos sofridas para viver. Sabemos o quanto é difícil, mas tudo tem um começo que pode estar na simples vontade de mudar as coisas.
Utopia? Foi o que perguntei a um senhor com quem tomei o café da manhã hoje. Olhávamos para o mar revolto aguardando a baixa da maré que deverá acontecer em uma ou duas horas. O homem de mais de setenta anos é o verdadeiro autor desse texto, são suas as idéias expostas. Ele me disse muitas coisas, tentando me mostrar que a vida é bela e não precisa ser desperdiçada com querelas inúteis.
No fim eu o ouvi em silêncio. Quando terminei o café ele já tinha saído e fiquei pensando se realmente estivera ali comigo ou eu o inventara para me dizer coisas que talvez precisasse ouvir e, principalmente acreditar.
De qualquer modo eu não tinha ido trabalhar, ficara com o mar. Isso me pereceu um bom começo para o ano e dei-me por satisfeito.
Textos exorcizam, acreditem.
Fúria da natureza
2010 começa arrebentando. Cenas terríveis de deslizamentos após tempestades, com vítimas, turvam a alegria da virada. Infelizmente, trata-se de um caso de mortes anunciadas: os deslizamentos estão ligados à questão da ocupação urbana do solo, falta de planejamento e ausência de fiscalização. São problemas crônicos, sempre lembrados após graves acidentes, mas rapidamente esquecidos depois da época das chuvas. O mesmo pode-se dizer em relação às enchentes, tantas vezes decorrentes de cheias dos rios: acontecimentos previsíveis, mas quase sempre ignorados
Ficam as imagens de dor a que assistimos consternados. Parentes de vítimas ou pessoas que escaparam milagrosamente aos acidentes concedem entrevistas nas quais as lágrimas dispensam maiores comentários.
Mas, vai passar. Cidades sob as águas voltarão à normalidade. A tragédia de Angra do Reis e Ilha Grande que já soma 41 mortes fará parte do passado, exceto para os que perderam pessoas amadas.
Tudo ficará bem até o próxima e previsível tragédia envolvendo forças da natureza que os homens teimam em desafiar e ignorar.