2010 fevereiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para fevereiro, 2010

Rebelião no presídio da Ilha

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Eu costumava chamar isso aqui de San Quentin porque não gostava do nome Anchieta. Conheci um cara que esteve preso em San Quentin e foi solto porque descobriram que era inocente. Depois disso, matou a mulher (não suportamos que elas nos traiam enquanto estamos presos) e se mandou para o Brasil. Esse cara esteve metido num assalto grande e ficou marcado pela polícia. Um dia o pegaram: é sempre assim com os caras marcados.

Estou aqui, de volta à Ilha Anchieta (já aceito o nome) e parece que, na verdade, nunca saí desse lugar. Visito a ilha e o presídio, agora vazio. Olho para o mato que cresce sem regra nos pátios, formando verdadeiras capoeiras. Circulo pelos corredores que levam às antigas celas e quase posso ouvir o grito dos homens atrás das grades. Paro no entroncamento de dois corredores e relembro quantas vezes passei por aqui, algemado. Eu era desses que iam muitas vezes para a solitária ou pegava trabalhos forçados. Havia muita perseguição dos guardas contra gente como eu, porque não éramos como os demais presos. Pode-se dobrar um homem em dois, mas se ele for macho não se consegue vergar a sua alma, não é assim? A liberdade é a maior utopia instituída pela humanidade. Você pode ser livre em qualquer lugar, mesmo quando está preso. Eu sempre pensei assim e dizia isso aos meus companheiros, mas eles nem sempre entendiam direito. Eles me tinham como um sujeito preparado. De fato, cheguei a entrar numa universidade, mas não a frequentei. Sempre gostei de ler, lia muito quando estava aqui, minha mulher mandava livros de vez em quando. Os guardas me chamavam de intelectual e riam perguntando por que eu não limpava a bunda com os livros. Eu não respondia a essas provocações, mas elas me exasperavam. Um dia um guarda, o Granatão, folgou comigo sobre livros e eu cortei a garganta dele. Desgraçadamente errei no bote e não peguei a carótida. Ele sobreviveu e, depois disso, nunca mais se meteu comigo. Mas, paguei muito caro por isso: fui a julgamento e minha pena foi acumulada com mais alguns anos.

Tenho 85 anos e fui condenado à perpétua por vários crimes. Bom comportamento nos últimos anos, doença e idade avançada me garantiram uma condicional. Estou livre a algum tempo e hoje vim visitar a Ilha, de certo modo o meu espírito sempre viveu aqui. Pode parecer incrível, mas tenho saudades desse lugar maldito. Andando aqui dentro eu me sinto em casa. Agora páro diante da cela onde passei longos anos da minha vida e é como se revisse um antigo lar. Eu sofri barbaridades aí dentro, a maior delas, talvez, a falta de mulher. Mas, resisti. Lembro-me de que passava grande parte do tempo filosofando sobre o crime e me perguntando por que afinal eu era um criminoso. Li muita coisa a esse respeito e acho que existem teorias demais para explicar aquilo que, na maioria das vezes, não passa de uma simples paixão. A contravenção é, para o verdadeiro criminoso, um ópio. Nem sempre a ela se associa a necessidade de praticar o mal. O mal não passa de uma consequencia da contravenção. Eu, por exemplo, nunca parti para um crime necessariamente pensando em praticar algo mais que a ação prevista para a sua consumação. O que aconteceu a mais se deveu ao fato de que todas as ações contêm variantes inesperadas e essas, no momento em que ocorrem, não nos dão a opção de ignorá-las. Foi isso que sempre aconteceu comigo nas ocasiões em que matei pessoas. Posso dizer que a morte de alguém nunca me deu qualquer prazer. Sempre matei por necessidade, por ser colocado em situações limítrofes nas quais não tinha escolha. Foi assim, por exemplo, com um segurança de banco. O assalto já estava consumado, estávamos saindo, o pessoal todo rendido e lá veio ele achar de sacar o revólver bem na minha frente. Não tive alternativa, enfiei uma bala na testa dele. Ele caiu duro, lembro-me bem de seu rosto ensanguentado. Mas, morreu porque quis; talvez estejam certos os que dizem que um homem só morre quando chega a sua hora.

Eu estava aqui na Ilha Anchieta no dia da rebelião chefiada pelo Pereira Lima. Eu mesmo não me dava lá grande coisa com o Pereira Lima, mas ele era um sujeito  de respeito. Lá isso ele era. E tinha liderança sobre os outros presos. Na verdade ele também exercia influências sobre alguns guardas, justamente os que eram para ser poupados durante a fuga. Digo eram porque quando as celas foram abertas e a turba se espalhou pelos corredores quase ninguém foi poupado. Verdade que o Pereira Lima tentou organizar ao máximo as coisas, mas houve preso pequeno que se meteu a grande e andou fazendo barbaridades. Muitos desses tais foram mortos pelos seus próprios companheiros, quer dizer, resolveram-se muitas rixas pendentes antes da fuga. Caras que sempre quiseram se pegar não deixaram as suas diferenças para depois.

Eu fugi no barco em que com Pereira Lima e muita gente. Chegamos juntos ao continente.Eu fui recapturado junto com outros presos Mais tarde soubemos que muitos tentaram atravessar a nado e morreram no mar.

Se eu pudesse, passaria os meus últimos dias de vida aqui no presídio da Ilha Anchieta. Afinal, a velhice consiste em colecionar lembranças e quase todas as minhas estão enterradas aqui, entre essas paredes. Olhar para esses corredores e celas vazias deixa-me um pouco triste porque é como se eu tivesse desaparecido e a minha voz para sempre se calado.

PS: o texto “A rebelião no Presídio da Ilha” é uma ficção. A rebelião dos presos da Ilha Anchieta aconteceu no dia 20 de junho de 1952. Domingos Pereira Lima matou pelas costas um soldado e, em seguida, foram mortos outros policiais Os bandidos, muito armados, atacaram primeiro o quartel e depois desceram até o presídio. Mataram o Diretor e o Comandante do Destacamento. A ação resultou no maior massacre acontecido em presídios até então. Foi, também, a maior rebelião na história dos presídios em todo o mundo até a data do seu acontecimento.

Patrulhamento ideológico

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Só de ouvir falar em patrulhamento ideológico a gente sente arrepios. Quem não se lembra dos tempos da ditadura militar no Brasil, os tais anos de chumbo? Naquela São Paulo do final dos anos sessenta e início dos setenta ninguém falava nada. Você entrava num ônibus e as conversas, se haviam, deixavam de lado a política. Política não era assunto para ser conversado abertamente, vai que ali do lado estivesse alguém diposto a alguma deduração.  

 

A geração que esteve nas faculdades naqueles anos sabe bem o significado de “patrulha ideológica”. O pior da patrulha é quando você se descobre patrulhando a si mesmo, autocensurando-se. Exemplo? Nos anos setenta fui escolhido para fazer um discurso de formatura.Passei dias patrulhando-me, sob as lentes do pior censor que já tive: eu mesmo. Escrevi páginas e páginas que foram para o lixo porque as palavras sempre tinham resíduos de revolta e seriam submetidas a aprovação prévia. No fim, não me foi possível a isenção total, daí que, após fazer o discurso, um militar presente me procurou para dizer que não concordava com as minhas opiniões mas que, ainda assim, optaria por ignorar o que eu disse. Falando sério, o discurso era bobo, bobo. O militar não era alta patente, nem nada, mas naqueles tempos uma farda tornava qualquer um tremenda autoridade. Ou temeridade.

 

Pois. Hoje Luiz Carlos Barreto, 81, escreve na “Folha de São Paulo” artigo cujo título é “A volta das patrulhas ideológicas”. Barreto é o produtor do filme “Lula, o filho do Brasil” e acusa “escribas, comentaristas, políticos, colunistas sociais improvisados, ex-militantes políticos de aluguel e cientistas políticos de plantão” de especularem sobre o potencial político-eleitoral do filme que teria reflexos sobre o resultado das próximas eleições presidenciais. Acrescenta o produtor que toda essa gente questiona o direito de fazer filmes sobre o que quer que seja; fazem-se filmes sobre Berlusconi, Miterrand, Juscelino, Tancredo etc, só sobre Lula não se pode fazer um filme. Diz ainda Barreto que poucos criticaram o filme como obra cinematográfica; os que escreveram sobre o filme preferiram o caminho elitista, censor, autoritário. No mais, o produtor de “Lula, o filho do Brasil” invoca a democracia, regime que não deve silenciar aqueles com quem não se concorda, eliminá-los ou evitar que se manifestem.

 

Há que se respeitar a posição de Luiz Carlos Barreto, homem dedicado ao cinema nacional para o qual muito tem contribuído. Entretanto, o que ele pede representa a descontextualização de uma obra cinematográfica. O filme “Lula, o filho do Brasil” não é uma obra ficcional que deva ser tratada criticamente apenas pelo viés artístico. O filme vem à luz num momento de definição de conjunturas e envolve personagem que hoje ocupa a presidência da República, engajando-se publicamente numa campanha que dê continuidade ao seu modo de governar, talvez predestinando-o a tornar-se a eminência parda de um novo governo. Mais: a personagem principal tem se mostrado ator de si mesmo , não sendo incomum que se autoglorifique; ele nega feitos do passado, mostra-se intolerante e posiciona-se como único e universal caminho para  a salvação do Brasil. Não fora por isso tudo, namora com medidas autoritárias que frequentemente são rechaçadas por uma sociedade que  quer continuar democrática justamente para que filmes como “Lula, o filho do Brasil” continuem a ser produzidos.

 

Filmes como“Lula, o filho do Brasil” podem e devem ser feitos, atestando com a sua realização a existência de um regime democrático no país. Do mesmo modo as críticas aos filmes, independentemente de suas naturezas, devem continuar a ser feitas em nome da mesma liberdade e do mesmo regime democrático. Tudo sem patrulhamentos, de lado a lado.

Está vivo e com boa saúde o fantasma dos alemães

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Olha só: a revista alemã Der Spiegel noticiou em 31/01: “Sobrevivente de Auschwitz monta banda de rap para manter viva a memória do holocausto”. Trata-se de Esther Bejarano, uma das últimas sobreviventes da orquestra de mulheres de Auschwitz. Segundo a revista, o ritmo é o de sempre, mas no meio dos sons está aquela voz, velha demais para vir de um artista de rap. Bejerano, de 85 anos de idade, aderiu a esse tal de hip hop porque sabe que ele é popular entre os jovens, daí entender que esse ritmo seja um bom meio para contar e informar sobre o que aconteceu nos campos de concentração.

No dia 02/02 a Der Spiegel noticiou que “o bispo Williamson insiste na negação do Holocausto”. A negação vem embaraçando a sociedade São Pio 10º , à qual ele pertence, e ao Vaticano. Para o bispo a suposta morte de seis milhões de pessoas em câmaras de gás é uma grande mentira. Richard Williamson vive em Londres e está sendo processado por estimular o ódio racial. Para  o Vaticano ele é enorme empecilho porque nega-se a abandonar as suas opiniões justamente num momento em que a Igreja tenta aproximar-se dos fundamentalistas.

No dia 05/02 a Der Spiegel noticiou que “estudo sobre a saúde de Hitler tenta esclarecer se o ditador era usuário de drogas”.  Segundo o mesmo estudo, drogas e doenças tiveram pouco efeito sobre as ações do grande asssassino em massa que foi ditador da Alemanha. Entretanto, as hipóteses levantadas para explicar o comportamento de Hitler são muitas: homossexual, esquizofrênico, vítima de uma hipnose que não deu certo, tinha o pênis tão atrofiado quanto a sua autoestima, era possuidor de um só testículo por ter sido mordido por um bode na juventude, sifilítico, usuário de drogas illicitas… Todas essas hipóteses são abordadas no livro “War Hitler Krank?” (Hitler era doente?), escrito pelo historiador Henrik Eberle e por Hans-Joachim Neumann, professor emérito de medicina no Hospital Universitário de Berlim Charité. No livro informa-se que talvez Hitler tivesse obturações dentárias feitas com ouro de vítimas judias.

Todas essas notícias estão ao alcance dos leitores da Der Spiegel. Note-se que as matérias citadas anteriormente foram publicadas num prazo de seis dias pela revista. Vai daí que o nazismo e o holocausto são temas que talvez nunca cheguem a ser abandonados. O grande fantasma que assombra o povo alemão continua vivo, portanto, e gozando de boa saúde. Não é essa a primeira vez que se fala sobre isso aqui e, pelo visto, não será a última.

Um mundo de estranhos

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Vive-se numa época de estranhamentos. Nem se trata do velho “cada um por si”. A complexidade da vida cotidiana gera estranhos em plano superior ao simples “pessoa que não conhece a pessoa”.

Dirão que sempre foi assim. Pode-se retrucar dizendo que, entretanto, a urbanidade está em linha descendente, talvez irreversível. O fato é que valores como a própria urbanidade e a solidariedade vão deixando de existir. Existe, sim, a solidariedade gerada por fatos de grandeza maior que provocam comoção pública. O terremoto do Haiti gerou uma onda de solidariedade bastante real, traduzida no envio de gêneros e assim por diante. Nas enchentes sempre se sobressai alguém disposto a resgatar pessoas isoladas e em perigo. Nesses casos, fala mais alto o sentimento de humanidade, a necessidade de participar de algo que reconduza a vida geral aos seus padrões de normalidade.

Entretanto, que dizer em relação às coisas miúdas, aquelas em que se torna tão mais simples passar ao largo para que não exista envolvimento? Por que testemunhar em relação a algo que se presenciou por acaso e que não se relaciona conosco? Por que exercer essa forma de cidadania que em geral nos traz mais problemas que os que já temos?

Não digam que é fácil. Eu, por exemplo, escrevo esse texto porque certa imagem não me sai da cabeça. Dias atrás, cerca de onze horas da noite, passava eu, de carro, por uma grande avenida de São Paulo. Eis que, de repente, vi na ilha que separa os dois lados da avenida, uma moça gritando, desesperadamente. Pelo jeito ela sofrera algum tipo de agressão, talvez um ladrão tivesse levado a sua bolsa, como saber? Quero dizer que a cena durou poucos segundos: havia muito movimento, era impossível parar ali, talvez até perigoso em não se sabendo a natureza da ocorrência que levara a moça ao desespero.

Cheguei em casa incomodado. Eu não fizera nada a respeito. Na verdade não me ocorrera nenhuma déia sobre o que fazer, talvez uma ligação para o 190, sei lá. Poderia ter parado uns dois quarteirões à frente e voltado? Mas, numa cidade tão violenta e àquelas horas da noite? Depois, eu não estava sozinho, poderia comprometer a segurança da pessoa que estava comigo. Mas e ela lá, sozinha, gritando? E se fosse a minha filha, eu não consideraria uma grande desumanidade ninguém tê-la ajudado?

Prós e contras. Justificativas. A cidade grande despersonaliza, gera contextos nos quais nos abrigamos para sobreviver. Evitamos entrar no mundo dos outros, esses estranhos, tão estranhos como nós mesmos.

No fim ficou a imagem da mulher gritando. A rapidez da cena que presenciei não me permite falar a respeito de seu rosto, nem mesmo a cor da roupa que vestia. Só sei que era uma mulher, aparentemente moça e que usava um vestido. Estendia os braços pedindo socorro, gritando. Foi assim que ela ficou lá. É assim que vai viver para sempre na minha memória ao lado de um grande ponto de interrogação sobre ela, sobre mim, sobre a cidadania.

Vulcões

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Rapaz, você já viu aquelas fotos de Pompéia? Coisa de arqueólogo essa de desenterrar a gente da cidade, aparências conservadas pelas lavas do Vesúvio. A impressão diante de figuras surpreendidas em seu último momento e conservadas no estado de horror em que a morte as colheu é terrível. Elas nos falam sobre a finitude de tudo, a precariedade da vida, o fim das civilizações, os enganos das sociedades que se crêem eternas, enfim, sobre a delicadeza da situação humana em seu sentido mais paradoxal.

O Vesúvio tem a ver com a História do Brasil, ainda que meio de tabela, você sabia? Pois um dos maiores agitadores republicanos, ao tempo do final do Império, foi o político e jornalista Antonio da Silva Jardim. Combativo, Silva Jardim lutou muito pelo fim do Império e a instalação da República no Brasil. Quando da Proclamação da República e a ascensão dos militares ao poder, Silva Jardim foi deixado de lado por ser civil.

Dois anos após a instalação da República no Brasil, Silva Jardim viajou à Europa e foi visitar Pompéia. No dia 1º de julho de 1891 estava ele no Vesúvio, tendo sido avisado do perigo do vulcão entrar em erupção. A partir daí não se pode dizer com precisão o que aconteceu. A versão corrente é a de que Silva Jardim foi tragado por uma cratera que se abriu; outra é a de que ele teria se suicidado. Tinha, então, o ardente republicano a idade de 31 anos, desaparecendo precocemente no mesmo vulcão que, dois mil anos antes destruíra as cidades romanas de Herculano e Pompéia.

A explosão do Vesúvio ocorreu no dia 24 de agosto do ano de 79. Atualmente o Vesúvio está quieto, mas em atividade. Cerca de 750 mil pessoas vivem nas suas proximidades. O que se espera é que o vulcão morra e nunca mais entre em erupção. Entretanto, o poder dos vulcões está fora do controle da humanidade. Erupções demasiadamente grandes poderiam gerar fumaça em nível suficiente para impedir que a luz do Sol chegasse até a Terra. Caso isso acontecesse o processo de fotossíntese seria abalado, haveria escassez de alimentos e uma nova Era do Gelo seria iniciada.

Mas o melhor é não pensar nisso e fazer turismo, visitando áreas vulcânicas ou estações térmicas. No caso dos vulcões, tomando cuidado para não ser tragado por alguma cratera, pelo amor de Deus.l

Paixão não se discute

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Tenho um amigo que é santista roxo. Dia de jogo do Santos é sagrado. Se o jogo acontecer na Vila Belmiro, então… Não vou dizer que seja o primeiro a chegar ao estádio, mas ele estará lá quando o jogo começar.

Quando o Robinho deu aquelas pedaladas no Santos, forçando a barra para ir jogar no Real Madri, o meu amigo variou do desconsolo à fúria. Traidor- repetia ele – dizendo que Robinho tinha, sim, o direito de ir embora, mas não cuspindo no prato que comeu.

Após o jogo em que a seleção brasileira foi desclassificada, na Copa de 2006, o meu amigo não perdoou Robinho pelo jeito como ele se comportou: terminada a partida, Robinho teria saído do campo sorridente como se tivesse participado de uma pelada. Não sei se foi assim, mas o meu amigo, cheio de raiva, leu desprezo no rosto do jogador. A raiva foi manifestada, também, há pouco tempo, quando Robinho andou metido numas encrencas na Inglaterra. Na ocasião o meu amigo sentenciou:

- Eu não disse? Esse cara…

Pois, há dois dias o meu amigo me ligou. Estava radiante: Robinho estava de volta ao Santos, por período curto, mas isso não importava. Como eu sabia da bronca dele em relação ao jogador, dei uma cutucadinha dizendo que a volta não seria pelo amor ao Santos, mas pela oportunidade de jogar a Copa do Mundo.

O meu amigo nem se deu ao trabalho de responder à minha provocação. No dia seguinte, o da chegada de Robinho, lá estava o meu amigo, santista roxo, na Vila Belmiro, fazendo parte dos 12 mil torcedores que foram receber o grande jogador.

Conversamos hoje de manhã. O meu amigo continua muito entusiasmado, feliz da vida pela volta do Robinho:

- Ele veio de helicóptero. Entrou junto com o Pelé. Dois reis, meu amigo, dois reis…

Paixão é paixão e o Santos maior que qualquer divergência. Por essas e outras é que se diz que torcedor é um cara que só tem um órgão no comando de tudo: o coração.

Por onde andam os materialistas?

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Há muito tempo não ouço alguém dizer: fulano de tal não passa de um materialista. Pois houve período em que dizer uma coisa assim funcionava como um tipo de acusação. O rótulo “materialista” nem sempre condizia com uma postura filosófica, mas com um modo de ser visto como negativo. Evidentemente existe nesse modo de ver muita simplicidade, mas o materialismo serve muito bem à demonstração de como certos termos e doutrinas são incorporados ao cotidiano, sendo usados em geral de modo diferente de seu significado original. A lembrança das conotações da palavra “burguês” é mais que suficiente para ilustrar até onde esse tipo de coisa pode chegar.

Nicola Abbagnano no seu excelente “Dicionário de Filosofia” ensina que o termo “materialismo” foi usado, pela primeira vez, por Robert Boyle, em 1674. O termo designa, em geral, toda doutrina que atribua causalidade apenas à matéria. Ou seja: o materialismo consiste em afirmar que a única causa de tudo é a matéria. Nega-se, portanto, a existência da alma e do mundo espiritual ou divino.

Deixando de lado as várias formas de materialismo (metafísico, metodológico, dialético, histórico etc.) vamos ao ponto em que Abbagnano nos diz que o materialismo da metade do século XIX tem caráter romântico porque pretende ser uma doutrina de vida, destinada a vencer a religião e suplantá-la. Deriva daí o fato da Ciência ter sido transformada na nova tábua de verdade absoluta.  A isso dá-se o nome de cientificismo que, conforme explica Abbagnano, constituiu a vanguarda romântica da ciência no século XIX.

Creio ter sido ligado ao significado de doutrina de vida destinada a vencer a religião, que o materialismo esteve em pauta, em nosso meio, por boa parte do século XX. Lembrei-me disso por acaso ao assistir, pela televisão, o filme em que o ator Carlos Vereza interpreta um dos grandes expoentes do espiritismo no Brasil, o médico e médium Bezerra de Menezes. No filme há uma cena que ilustra bem o embate entre um credo, no caso o espiritismo, e o materialismo: Bezerra de Menezes está presidindo uma reunião espírita quando é desafiado por um materialista a provar que existe algo além da morte, que os espíritos reencarnam e assim por diante. O que os materialistas querem é um debate que não é aceito por Menezes. O médium justifica-se dizendo que só aceitará o debate no dia em que os materialistas provarem a utilidade de sua doutrina para ajudar aos seus semelhantes que sofrem e assim por diante.

Quem assistiu a pregações em igrejas até meados do século XX terá ouvido da boca de padres e bispos grandes críticas ao materialismo identificado como um modo de ser ligado aos interesses, quando não carnal. Aliás, esse significado talvez seja ainda o mais corrente, sendo usado quando se quer caracterizar pessoa sem preocupações com o espírito e voltada para as coisas do mundo, para a posse etc. Note-se que esse modo de ver funda-se em raízes do passado, às tendências materialistas de classes ou grupos mais identificadas com o conforto e o prazer, a um comportamento que Abbagnano nos adverte ser mais conveniente chamar de hedonismo.

Conheci no passado várias pessoas rotuladas como materialistas, pelo menos era assim que os que com elas conviviam as classificavam. Creio que hoje os tais materialistas que conheci passariam por simples consumistas que não seguem religiões. Tomando o termo materialismo no sentido em que é mais utilizado popularmente poderíamos dizer que o mundo atual está cheio de materialistas, consumistas inveterados, pessoas voltadas para o lucro etc. Mas quanto ao sentido filosófico e mais exato do termo, não sei se ainda andam por aí muitos materialistas.

O “Dicionário de Filosofia” de Nicola Abbagnano tem edição em português, ano 2000, pela Martins Fontes. O filme Bezerra de Menezes pode ser encontrado em locadoras.

Morte em Veneza

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Nesses tempos de produções rápidas e licenciamento do que é profundo e capaz de convulsionar o espírito, “Morte em Veneza”, do escritor alemão Thomas Mann, é livro para se ler e meditar.

“Morte em Veneza”, publicado em 1912, é um diálogo com a beleza e suas terríveis implicações. Trata-se da história de um escritor austríaco, Gustav Von Aschenbach, que vai a Veneza para descansar e vê-se atraído pela beleza incomum do jovem polonês, Tadzio, que ali passa férias com a sua família. Que não se pense em pedofilia ou numa simples narrativa sobre atração sexual: o que está em jogo é a ligação de Von Aschenbach com a beleza em seu estado mais puro, a busca do escritor pela forma exata que talvez não consiga atingir em sua arte.

A relação entre Von Aschenbach e Tadzio não chega a existir, na verdade entre os dois não há troca de uma única palavra. Gera-se um conflito à distância que se reflete sobre a alma de Von Aschenbach, cada vez mais torturada pela presença do belo. É nesse ponto que a perfeição absoluta do texto e a beleza em estado puro se confundem: ambos se revelam inatingíveis para o escritor, daí ele mergulhar numa crise profunda e sem remédio.

A trama se passa em Veneza, no período em que a cidade sofre com uma epidemia de cólera asiática.  A simbologia envolvendo a beleza e a degradação está em todos os planos da narrativa: aqui uma cidade maravilhosa sob o influxo da peste; ali um velho que se maquia para parecer novo e estar entre os jovens e o próprio Von Aschenbach que pinta os cabelos, mudando o seu visual numa tentativa esdrúxula de tornar-se algo mais próximo de Tadzio.

“Morte em Veneza” é um livro profundo e que admite inúmeras leituras, bem além deste esboço levíssimo e rápido. A obra serviu ao diretor italiano Luchino Visconti para a realização de um filme com o mesmo nome. No papel de Von Aschenbach está o ator Dick Bogarde; Tadzio é representado por Björn Andrésen; e a sempre maravilhosa Silvana Mangano faz a mãe de Tadzio.

Visconti abusa de primeiros planos nos quais a tela é preenchida pelo rosto de Dick Bogard, no filme um músico e não um escritor. São as expressões faciais do ator que nos introduzem no drama da atração irresistível de Von Aschenbach por Tadzio. Muitos são os momentos em que a imagem torna as palavras desnecessárias. É dentro de um clima circundado pela beleza de Veneza que se desenvolve a desestruturação de Von Aschenbach.  A previsível tragédia desenrola-se lentamente, nutrindo-se de pequenas coisas que se somam e atuam sobre o espírito frágil do compositor.

Vale a pena ler Thomas Mann e ver o filme de Visconti que recebeu prêmios nos anos de 1971 e 72. “Morte em Veneza”, do Prêmio Nobel Thomas Mann, pode ser encontrado nas livrarias em traduções para o português do Brasil e de Portugal. O filme do diretor Luchino Visconti existe em DVD e, vez por outra, é reapresentado na televisão.