Arquivo para março, 2010
A proibição da Devassa
Anos atrás, no aeroporto JFK de Nova York, um funcionário da imigração resolveu folgar comigo. Estávamos, eu e a minha mulher, apresentando os documentos exigidos pela imigração quando ele disse umas gracinhas a mim, mas relacionadas à minha mulher. Tratava-se, tipicamente, do preconceito disseminado contra a mulher brasileira, apresentada que é por aí como uma mulata de curvas generosas e sempre pronta a dar muito prazer.
A minha situação em relação ao funcionário da imigração norte-americana era muito delicada. Obviamente ele esperava por um revide que seria suficiente para tirar-me da fila e, provavelmente, criar sérios problemas para entrar nos EUA. Ainda assim, pareceu-me que as coisas não poderiam ficar tão mal-paradas, afinal corre sangue na veia dos homens, não? Mas foi aí que prevaleceu o bom-senso da minha mulher que foi me dizendo, em bom português, que afinal era só um funcionário da imigração, um sofredor, ele que se… Então mordi a língua, fingi não entender nada do que o cara dizia e, horas depois, estávamos nós no Village Vanguard, assistindo a uma excepcional noitada de jazz.
Pois é, acontece nos filmes, acontece na vida.
Há poucos dias vi na internet uma propaganda de uma agência de viagens estrangeira, claramente ofensiva à mulher brasileira: uma cena de café da manhã em família é invadida por uma mulata a caráter, para escândalo da dona da casa. Sempre a mesma coisa, não?
O fato é que à imagem da mulher brasileira impregnou-se um exotismo desrespeitoso, como se o Brasil fosse terra de plenas facilidades sexuais, para isso muito contribuindo o infeliz turismo sexual que atrai ao país toda sorte de pára-quedistas em busca de prazer.
De qualquer modo, mesmo internamente estamos habituados à associação da imagem da mulher a qualquer coisa que sugira prazer. Creio que, nesse terreno, as campanhas publicitárias das marcas de cerveja tenham lugar de destaque. Os anúncios comerciais das cervejas sempre descambam para uma comemoração na qual uma bela mulher surge no meio de muitos homens que tomam a sua cerveja favorita. Quem não se lembra dos comerciais de cerveja com a Juliana Paes?
Por essas e outras ainda não consegui entender bem a proibição do comercial da cerveja Devassa no qual um voyer observa a socialite Paris Hilton. Verdade que não se trata de nenhuma mensagem subliminar, as coisas são explícitas mesmo. Mas, sinceramente, não vejo lá grande diferença com outros comerciais nos quais se exploram dotes femininos, dando ênfase especial à chamada “la derriére” dos franceses. No fundo todos os comerciais de cerveja exploram a mesma matéria que, certa ou errada, trata-se da associação entre o prazer do sexo e os goles da bebida bem gelada.
Ontem os 12 conselheiros do Conar (Conselho de Autorregulamentação Publicitária) mantiveram a proibição ao comercial da cerveja Devassa. Se você ainda não viu, entre no You Tube e veja. Depois me diga se é muito diferente dos outros que são rotineiramente exibidos. Não nego que seja sensual até em exagero. Paris Hilton veste uma roupa sumária, mas não tira a peça, não exibe o corpo com um biquíni, por exemplo. Tudo fica na base de sugestão e talvez aí residam as razões da proibição: o grande pecado é o do pensamento, da sugestão que não se consuma, mas faz pecar. Coisa anacrônica, mas ainda em voga em muitas religiões.
A velocidade das notícias
A globalização, o desenvolvimento da tecnologia e a verdadeira explosão de canais de comunicação geraram uma situação que se repete diariamente: a produção de notícias por atacado. Se um rapaz rouba uma bicicleta em Xangai corre o risco de, quase em tempo real, as imagens de seu crime serem mostradas em escala mundial. O mesmo acontece com toda sorte de acontecimentos, independentemente das suas naturezas.
A velocidade da produção e divulgação de notícias impede que elas sejam selecionadas; desaparece, portanto, o aspecto hierárquico ligado à importância dos acontecimentos. Na verdade tanto faz: o que importa é a novidade, é sair na frente, noticiar antes dos outros. Do outro lado estão os consumidores que recebem passivamente informações, a maioria delas sem qualquer interesse. Ao consumidor a overdose de notícias torna-se importante porque transfere a ele a falsa sensação de ser pessoa bem informada.
Vivemos na época das notícias por atacado e de gente cabeça feita pela informação. Não importa que a quase totalidade do que se vê e ouve não sirva para nada e nem perdure nas memórias. O que importa é a sensação de velocidade, de estar embarcado num grande trem que dá ao cidadão a idéia de pertencer ao seu tempo, antenado com o mundo em que vive.
Bem pensados os noticiários acabam sendo uma fábrica de robôs. Pessoas robotizadas e imbecilizadas pelas notícias correm o risco de transformar-se em pólos de informações de segunda mão. Inexiste, portanto, a formação do espírito crítico que só nasce da reflexão prolongada, da digestão lenta e segura da informação. É como se participar de uma enorme ceia e perder-se na variedade de pratos oferecidos. Come-se de tudo em detrimento do paladar.
O que está em jogo hoje em dia é o velho e bem conhecido consumo de massa. As grandes redes divulgadoras de noticiais manipulam informações prensando-as num formato de consumo rápido, útil a quem tem pressa e na verdade não está muito interessado. Com isso, perde a cultura, perde a formação intelectual das pessoas.
O que mais assusta é o que acontece aos jovens. Sem padrões anteriores de comparação, habituam-se ao esboço e não ao quadro finalizado. A rapidez da informação descartável dá a eles uma visão distorcida da importância dos acontecimentos. Com tanta coisa para ver, não há tempo para fundamentar-se o hábito da reflexão. Acontece o mesmo com a leitura que é relegada a segundo plano: livros não têm figuras, as palavras não são animadas por efeitos especiais e perde-se tempo demais para ler muitas páginas.
Nada contra a informação, apenas uma reflexão sobre os efeitos nocivos de seu uso abusivo.
Armando Nogueira
Para o telespectador ele era o homem que estava detrás do Jornal Nacional. Ele criou um estilo, um modo de ser na televisão com direito à busca de perfeição na imagem e, principalmente, no texto.
Era um apaixonado por futebol, botafoguense roxo. Grande cronista do esporte, destacava-se por tiradas que se tornaram memoráveis. Tinha o faro da grande notícia tantas vezes colhida nos pequenos detalhes. Vez ou outra assinava um texto em pleno Jornal Nacional: coisa desnecessária dado o seu estilo inconfundível.
Durante as Copas do Mundo, a Globo costumava fazer uma mesa redonda após os jogos. Armando chefiava a mesa para a qual convidava pessoas ligadas ao esporte. Numa dessas ocasiões – não sei dizer em que Copa – entre os convidados estava Zagalo e um jornalista cujo nome infelizmente me escapa. Acontece que o tal jornalista teve um verdadeiro acesso de saudosismo durante o programa. A cada vez que se pedia a opinião dele, saía-se com frases como “futebol para mim é o do Garrincha” e assim por diante.
Em vão Armando Nogueira tentou trazer a discussão para o presente, dizendo que já não tínhamos Garrincha, Pelé, os tempos eram outros. Mas, o jornalista não desistia da sua linha que, logo se percebeu, visava criticar Zagalo. Houve um momento em que o tal jornalista de fato excedeu-se com palavrório ofensivo a Zagalo. Foi aí que Armando Nogueira assumiu diretamente o pulso da situação dizendo ao jornalista, com todas as letras, que aquilo era uma agressão e por aí afora.
Nunca me esqueci do modo como Armando Nogueira agiu naquela ocasião. Com precisão cirúrgica cortou os arremessos imbecilizados do jornalista que, daí por diante manteve-se calado. Ficou a lembrança do constrangimento e a ação precisa do mediador.
Ainda que não se tenha conhecido pessoalmente Armando Nogueira é impossível ignorar o seu falecimento. Desaparece uma figura interessante, inteligente, que deu muito de si aos telespectadores e leitores de jornais.
Contra a malária
Meu tio, a quem conheci já velho, foi homem de vida agitada. Tinha ele um rosário de aventuras, todas marcadas pelo seu temperamento reconhecidamente intempestivo. De uma delas eu soube, certa noite, enquanto nos sentamos ao redor da mesa da cozinha e ele comia, uma após outra, meia-dúzia de bananas nanica.
Falou-me meu tio, naquela ocasião, sobre o terror provocado pela malária nas populações do interior. Note-se que meu tio sempre esteve ligado à área médica. Ele estudou medicina, no Rio de Janeiro, mas não chegou a concluir o curso: a quebra da Bolsa em 1929 teve reflexos sobre os negócios do café e meu tio teve que sair do Rio onde vivia com os proventos enviados pelo pai, fazendeiro de café no interior paulista que sucumbiu à crise. Sem dinheiro, meu tio mudou-se para Pindamonhangaba onde se formou na antiga Escola de Farmácia daquela cidade.
Meu tio me contou que durante pelo menos um ano viajou ele pelo interior, passando por cidades pequenas e ameaçadas pela malária, vendendo doses de quinino, o remédio de eleição no tratamento daquela doença. Refería-se ele, provavelmente, à década de 1940, época em que os chamados viajantes carregavam consigo os produtos que vendiam dado ainda inexistirem de forma mais ampla os serviços de entrega. É de se imaginar o horror das populações diante da possibilidade de adquirir doença gravíssima em lugares de raros ou mesmo inexistentes recursos médicos.
Nunca estive em áreas malarígenas, mas vi de perto várias pessoas com sintomas da doença, destacando-se os acessos febris dentro de intervalos de tempo determinados. Como se sabe, a malária ou impaludismo é doença causada por protozoários do gênero Plasmodium e transmitida pela picada de fêmeas infectadas de insetos do gênero Anopheles. No organismo humano os protozoários passam por um ciclo em que se dividem dentro das hemácias provocando o arrebentamento destas. Isso acontece a cada 48 ou 72 horas, de acordo com a espécie de Plamodium que tiver infectado o doente. As crises febris acontecem justamente nos momentos do ciclo em que as hemácias se arrebentam: o paciente treme muito, tem sensação de frio intenso, sudorese e a temperatura corporal atinge 40º C.
É importante destacar que a malária não é uma doença do passado. Sua estimativa é de 300 milhões de novos casos e 1 milhão de mortes por ano em todo o mundo. No Brasil a área endêmica situa-se na região amazônica. A maioria dos casos acontece na área rural embora existam casos (cerca de 15%) nas áreas urbanas.
Um mal tão grande e disseminado no mundo exige cuidados e pesquisas, sendo preocupação constante dos órgãos de saúde pública. Notícia recentemente publicada nos dá conta da descoberta de um modo de bloquear o faro do Anopheles. Isso é muito importante dado que o inseto fareja as suas vítimas fazendo uso de suas antenas. O bloqueio do faro do inseto é um grande passo para a produção de um repelente específico. Com isso o inseto não mais reconheceria o cheiro das pessoas e deixaria de picá-las.
De todo modo eis aí uma nova esperança que aliada às conhecidas medidas utilizadas para a erradicação do inseto e aos clássicos tratamentos para a malária, talvez façam reduzir o espantoso número de casos da doença em todo o mundo.
Catarse coletiva
Foi o que se viu ontem à noite quando da divulgação do resultado do júri que condenou o casal Nardoni pelo assassinato da menina Isabella. De repente, os sentimentos de terror e piedade despertados pela contemplação de um episódio trágico vieram à tona numa espécie de redenção coletiva: puniam-se os culpados, justiça era feita e os espíritos podiam, enfim, sentir-se purificados.
As cenas que se seguiram à notícia da condenação foram dignas da comemoração coletiva por ocasião de grandes vitórias. Lembraram conquistas esportivas nas quais pessoas eufóricas manifestam-se intensamente com alegria incomum. Pessoas entrevistadas por repórteres não conseguiram e nem quiseram esconder a sua euforia. Manifestando-se por meio de frases feitas e lugares-comuns todas elas deixaram claro que outro resultado não seria esperado que não o da condenação do casal.
Durante toda a noite pairou nos espíritos a sensação de vitória. O bem venceu o mal, o júri referendou a vitória do bem e recolocou as coisas nos seus devidos lugares. Raríssimas vozes se ergueram para dizer não estarem completamente convencidas da culpa dos Nardoni. Quanto a eles, o fato é que as circunstâncias que cercaram a ocorrência do crime não deixaram margem para que não fossem responsabilizados. O promotor prendeu-os a um labirinto no qual uma prodigiosa linha do tempo reconstituía todos os seus passos na noite fatídica. Consta que esse argumento convenceu definitivamente os jurados.
No fim o promotor cedeu entrevista durante a qual mais parecia um técnico de futebol a esclarecer os lances da sua equipe. Era um homem cansado, mas vitorioso, mostrando que se dedicou exaustivamente ao processo.
Desliguei a televisão antes do fim da entrevista do promotor. Quando fechei os olhos pensei na noite em que o casal Nardoni chegou ao apartamento e a menina Isabella foi esganada e depois jogada pela janela. Pensei no fato de Nardoni ser justamente o pai da menina de 5 anos e ainda assim tê-la jogado. Pouco antes de adormecer ponderava sobre o fato de que o horror apresenta possibilidades infinitas, muito além das que podemos imaginar.
Talvez nunca se saiba com exatidão como foram os últimos instantes da menina Isabella. Mas, de que foram cercados de infinito horror não existem dúvidas.
Preparando-se para a aposentadoria
Leio no jornal que as pessoas cujas aposentadorias se aproximam precisam se preparar. Fala-se sobre a perda de referência ao sair o emprego e o grau de desajuste relacionado à falta ambientação fora do ambiente de trabalho.
Sugere-se um roteiro que inclui assistir a alguns filmes (O curioso caso de Benjamin Button é um deles), ler alguns livros e até procurar auxílio psicológico. A ênfase é a de que a aposentadoria não passa de um novo período que começa e pode ser muito bem aproveitado. Enfim, existe vida útil pós- aposentadoria, o negócio é não parar de repente e ficar sentado em casa, na frente da televisão. De um jeito ou de outro as coisas acabam se ajeitando, portanto nada de desespero. Mas, o que não se pode deixar acontecer, de jeito nenhum, é a pessoa aposentar-se sem ter feito um plano de ação, caindo, da noite para o dia, numa rotina que a faça parecer inútil.
Tudo bem, mas pelo que se vê por aí, o grande problema é justamente a elaboração de um plano de ação. Depois de 35 anos trabalhando, às vezes numa única empresa, o recém-aposentado corre o risco de sentir-se como alguém a quem foi retirado o chão sob os próprios pés. É difícil preencher as longas horas do dia fazendo coisas que dêem a sensação de “continuar sendo útil”. É claro que a nova situação depende muito de cada pessoa, de suas condições, mormente as de natureza econômica. Já dizia um grande filósofo popular que com dinheiro tudo fica mais fácil. Aposentar-se e ter dinheiro suficiente para fazer o que der na telha, inclusive continuar trabalhando, é o que há de melhor, mas infelizmente é para poucos.
De fato, não é o que acontece com a grande massa de trabalhadores para os quais os valores mensalmente recebidos em função da aposentadoria não são suficientes para fazer frente às despesas da família. Na verdade a aposentadoria vem somar-se a outros ganhos, funcionando como uma espécie de refresco muito bem vindo após 35 anos de muito esforço.
Do jeito como ela é, para a maioria, a aposentadoria se apresenta mais como problema que solução. Ela carimba no trabalhador o rótulo de aposentado, abre um período de parcas escolhas na vida profissional e, em geral, fornece proventos mensais cujos valores não fazem frente às necessidades. Se a tudo isso somar-se o envelhecimento e certa predisposição à depressão, veremos que são muito bem-vindas as campanhas de ajuda e esclarecimentos aos que se aproximam da aposentadoria. Afinal, previsão e organização não fazem mal a ninguém.
Ao plano de ação, portanto.
Friedrich Dürrenmatt: O juiz e seu carrasco
“O que é Justiça? Temos um sistema de leis que é um sistema lógico, e as raízes desse sistema são sempre subjetivas. A Justiça se encontra diante de um fato, um fato passado, e tem de estabelecer a verdade sobre o se passou. Isso já é uma ficção. Sempre é possível que a verdade seja outra. É impossível reconstruir a verdade. A verdade é uma ficção”.
O texto acima é do dramaturgo e romancista suíço Friedrich Dürrenmatt e faz parte do livro “O Juiz e seu Carrasco”. Falecido em 1990, Dürrenmatt é conhecido pelos seus textos de vanguarda entre os quais de incluem dramas, narrativas policiais e sátiras. “O Juiz e seu carrasco” está entre as obras mais conhecidas do escritor com mais de 5 milhões de livros vendidos em todo o mundo.
A trama de “O Juiz e seu carrasco” serve-se de toda a ferramentaria utilizada em histórias policiais. Entretanto, desde logo se distingue das histórias comuns pela profundidade psicológica das personagens envolvidas. Para Dürrenmatt inexistem os dois lados estanques caracterizados como bem e mal: ninguém é do bem ou do mal simplesmente porque circunstâncias e interesses embaralham situações onde a natureza dos homens se revela. Mais que isso, os homens se apóiam em códigos estabelecidos que nem sempre são suficientes para englobar as ações ou aquilo que é tomado como verdade. As leis existem para que o mundo viva sob uma regra geral que, no entanto, desconcerta-se a cada passo.
Um policial é morto e é preciso prender o seu assassino. Em torno do assassinato gira a ação do velho e doente inspetor Bärlach que, progressivamente, apresenta-se complexa e imprevisível. É ao ritmo da investigação que progride que desdobra-se outra trama envolvendo anseios, ideologias e observações caracterizadas por grande sarcasmo.
Numa época em que se assiste à mobilização pública em torno do julgamento do casal Nardoni as considerações sobre Justiça de Dürrenmatt mostram-se muito pertinentes. Além disso, vale a pena ler uma história policial verdadeiramente estonteante e de final surpreendente. Lê-se com prazer e voúpia o texto de Dürrenmatt.
“O juiz e seu carrasco” de Friedrich Dürrenmatt está à venda nas livrarias. As edições em português são publicações da Brasiliense e da L&PM Editores.
Ciranda de notícias
O casal Nardoni está sendo julgado, em São Paulo, pelo terrível assassinato da menina Isabella. Culpado(s) ou inocente(s)? A resposta será dada em alguns dias por um júri formado por quatro mulheres e três homens. Nenhum deles tem formação jurídica e alguns estão entre os 20 e os 30 anos de idade. Por esse meio os magistrados transferem à sociedade o direito de julgar um caso que estarreceu a opinião pela sua brutalidade e barbárie. Mas, é o que reza a lei.
Em torno do julgamento está montada uma gigantesca rede de informações. À mídia, como um todo, interessa mostrar o assunto sob todos os ângulos porque fora do âmbito do julgamento, lá fora, existe uma imensa massa de consumidores para quem todos os detalhes parecem ser muito importantes.
É exatamente a delimitação do que deveria realmente interessar que chama a atenção por ocasião de ocorrências como o julgamento do casal Nardoni. A febre de “estar no ar” e “sair à frente” estimula a concorrência entre as grandes redes de tevê: elas constroem um mundo paralelo ao julgamento em si, algo estranho como se antes de uma partida de xadrez entre grandes jogadores os espectadores pudessem observá-los nas suas intimidades. Interessa, sim, o jogo e seu resultado, mas também interessa aquilo que não conta, a aparte que poderia muito bem ser desprezada porque não tem e não terá importância.
Foi assim hoje de manhã. De repente alguns canais passaram a transmitir imagens do momento em que Alexandre Nardoni saía do presídio onde passara a noite para se dirigir ao local do julgamento. O que se viu de Nardoni foram nada mais que closes de partes de seu corpo ao entrar no furgão da polícia; depois, diretamente de um helicóptero, transmitiram-se imagens do furgão durante o percurso.
Não basta, portanto, saber que Alexandre Nardoni está sendo julgado. É preciso ter certeza de que ele passou a noite bem trancado pela polícia e que comparecerá ao local do julgamento. Não se pode largá-lo por aí, sem saber por onde anda, ainda que preso dentro de um furgão da polícia. É preciso vigiá-lo, mesmo que não se preste atenção ao que dizem os repórteres ao longo do caminho: eles, por não terem nada a dizer, repetem coisas como “aí está o furgão que leva Alexandre Nardoni, acusado do assassinato de sua filha Isabela, agora chegando à rua tal etc.”
Assim, o caso Isabella, como outros de igual porte, é transformado pela mídia num imenso Big Brother, montado em conformidade com o roteiro da tragédia acontecida. Trata-se de um momento de expiação de um horrível pecado no qual o mínimo que se espera é que se faça justiça. Entretanto, é importante que nada se passe em segredo, longe dos olhos do público. É função da sociedade punir os culpados, torna-se verdadeiro dever cívico vigiar todos os passos da ação para que isso aconteça, ainda que sob o perigo de tanta vigilância não passar de puro exercício de curiosidade.
Muitas pessoas lutam pela conquista de um lugar na sala do júri; há gente que passa o dia inteiro do lado de fora do local de julgamento apenas para ficar perto dos acontecimentos; um rapaz entrevistado declarou ter vindo de cidade distante para acompanhar, ali da rua, o julgamento; uma moça conseguiu dispensa no emprego e só voltará a trabalhar quando tudo terminar.
Como se trata de um caso em que a menina foi morta covardemente e não existem outros suspeitos identificáveis é notório que o público em geral espera a condenação dos Nardoni. Mas, em caso de condenação ou não, qual será a reação do público? É provável que os órgãos midiáticos já tenham diferentes tipos de cobertura preparados para uma ou outra solução, afinal o que importa mesmo é a notícia em todos os seus detalhes.
O dengue em Santos
Foi decretado o estado de epidemia de dengue em Santos. Isso aconteceu porque a cidade apresentou 163 casos da doença para cada 100 mil habitantes. O limite para que um município com mais de 250 mil habitantes seja excluído do estado de epidemia é de no máximo 100 casos para cada 100 mil habitantes.
Mas, como sempre, os números não refletem exatamente a situação e nem mostram como as coisas se passam. O que há é um grande movimento de pessoas que se dirigem aos hospitais, em geral com sintomas sugestivos de dengue – febre, cefaléia retro ocular, dores musculares etc. – em busca de diagnóstico e tratamento. São longas horas de espera para que o paciente seja medicado com soro e antitérmicos e se faça a coleta de sangue para a realização de um hemograma. Quatro horas depois, o hemograma fica pronto e o paciente pode voltar para casa, em geral com a doença diagnosticada através da observação de redução do número de glóbulos brancos e de plaquetas sanguíneas.
Como seria de esperar diante de um quadro de epidemia, o atendimento em pronto-socorro deixa a desejar. Embora o esforço dos profissionais de saúde, o fato é que a oferta é maior que demanda. É assim que casos mais graves passam despercebidos e instala-se um vai-e-vem na vida de alguns pacientes: de casa para o hospital e vive-versa. Acresça-se a isso o fato de que os hospitais da região estão sem leitos vazios e as dificuldades para internação.
Dessa situação geral surgem os óbitos por dengue, mortes desnecessárias e que poderiam ser evitadas com maiores cuidados. Por trás de quase todos os casos de óbitos por dengue, existe uma história de agravamento progressivo da doença e idas e vindas ao pronto-socorro.
Por outro lado, basta estar no alto de um prédio da cidade e observar inúmeros quintais que não são, absolutamente, imunes à presença do Aedes aegipty. É verdade que as equipes envolvidas com o saneamento diariamente percorrem prédios e casas, mas muita coisa deve escapar aos olhos deles.
O estranho sentimento de “isso nunca vai acontecer comigo” ou o de que “dengue só dá nos pobres”, além de outras ignorâncias, favorecem a proliferação do inseto, cujas larvas se reproduzem na água. O que há para se fazer é a ação conjunta de autoridades e cidadãos para uma verdadeira varredura na cidade, caça integral ao Aedes aegipty.
Ainda faz muito calor nessa época do ano e a situação parece muito favorável ao mosquito. É preciso fazer alguma coisa, talvez criar um impacto que mobilize as pessoas. Que tal, quinze minutos de um dia em que a cidade seja paralisada e todo mundo vá verificar seus quintais, piscinas, vasos de plantas, interior de velhos pnseus etc? Bobagem? Então que se dêem idéias. Vale tudo quando o que se pretende é interromper uma epidemia.
A casa da minha avó
Dizer que o mundo mudou é pouco, tanta mudança houve. A história se passa dentro de um ritmo de acontecimentos que transferem a ilusão de velocidade excessiva. Mas, em todas as épocas os dias foram e são iguais com as mesmas 24 horas, embora um cientista tenha alertado que, depois do terremoto do Chile, os dias encurtaram em alguns milésimos de segundo.
O tempo passa, o tempo voa e o mundo de hoje parece mais acelerado que o das décadas de 50 e 60, por exemplo. Volto a dizer que isso é uma coisa muito louca porque os dias continuam com a mesma duração. Mas, é melhor deixar esse assunto de tempo, velocidade etc. para os discípulos de Einstein que entendem pacas de teoria da relatividade.
Uma das mudanças mais óbvias acontecidas nos últimos decênios foi o exagerado crescimento populacional. Foi para dar abrigo essa gente toda que as cidades cresceram, novos bairros foram inaugurados e assim por diante. Mais gente também significou mais pessoas apressadas, maior competição, maior desenvolvimento industrial etc. Entretanto, a par de tantas coisas consideradas boas aconteceu uma brutal mudança na arquitetura das moradias que foram se tornando menores, cada vez menores…
Foi assim que passamos a viver em apartamentos, sendo obrigados a nos desfazer rapidamente de coisas muito grandes para abrir espaços. Vai daí que o cidadão tem a sua televisão de LCD de 52 polegadas, mas encontra dificuldades em achar lugar para guardar coisas como, por exemplo, as malas grandes que vez ou outra a família usa para viagens. Claro que morar em ambientes menores também tem se apresentado como opção para pessoas que querem desobrigar-se de excessivas atividades caseiras.
Cada época tem o seu modo de ser, não tem jeito. Mas que as velhas casas eram boas, ah, como eram. A casa da minha avó era uma dessas, movida a simplicidade, mas com todo o requinte indispensável a uma vida boa e farta. Começava por aquela porta enorme – na verdade um portal – que dava para uma escada; essa levava a uma segunda porta e, aí sim, chegava-se à sala.
Quando se fala em sala que se apague qualquer noção ligada às salas atuais. A sala da casa da minha avó era enorme, um retângulo que parecia se abrir em espaços cada vez mais insondáveis de vez que ali se realizavam desde a recepção a visitas a cerimônias como casamentos e o velório dos parentes que iam morrendo.
É importante lembrar que a casa a que me refiro nunca foi nem pretendeu ser bem dividida. Ela pertencia a uma concepção arquitetônica que vinha do passado. Tinha apenas três quartos, absolutamente imensos, que se tornavam tantos quartos quanto necessários por ocasião da vinda da parentada. Cada um desses quartos dava para a rua defronte, a ela se abrindo com janelas enormes, magníficas, cujos batentes seriam hoje alvo de muitos colecionadores.
Não será necessário descrever a copa, o corredor, a cozinha, o quartinho do meio no qual diziam existir fantasmas, os dois banheiros, o jardim e o quintal. Mas não há como ignorar o formidável porão, um vasto território escuro, do tamanho da casa, sobre o qual andávamos. Verdade que às vezes o porão servia a nós, crianças, como esconderijo, fato tantas vezes fator de brigas entre os tios que juravam que seus filhos jamais tinham posto os pés ali. Entretanto, casa que não tinha um porão grande e escuro não era casa.
Ainda existirão em algumas cidades casas assim. A casa de minha avó não existe mais. Ela foi demolida há alguns anos e, em seu lugar, foi construído um prédio.
Passei pelo lugar outro dia e pensei que os moradores dos apartamentos não passam de intrusos que ocuparam um lugar sagrado para nós, pessoas da família. Imaginei os antigos habitantes da casa, todos já mortos, indignados com a ocupação que jamais teriam previsto.
Cheguei a parar o carro, ia dizer algo ao porteiro em nome dos mortos. Mas eu tinha pressa. O mundo anda rápido demais, ficou para uma próxima vez.