Arquivo para maio, 2010
No palacete Matarazzo
“O Sr. Conde e Sra. Condessa Matarazzo abriram hontem os salões de seu confortável palacete da Avenida Paulista, oferecendo uma recepção sollennizando o baptismo de seu neto, filho do Sr. Conde Francisco Matarazzo Junior.
A recepção teve início às 22 horas, a ella comparecendo elevado número de senhoras e senhorinhas da nossa alta sociedade, que imprimiram um cunho de alta distinção à brilhante festa, correspondendo à alta gentileza da disctinta Família Matarazzo”.
A notícia é de 1926 e termina relacionando algumas autoridades e pessoas de destaque que compareceram à recepção. Entre elas estavam o Dr. Carlos de Campos, então presidente do Estado, e o Dr. Pires do Rio, prefeito da capital.
Maio de 2010: paro o meu carro num grande estacionamento situado na esquina da Rua Pamplona com a Avenida Paulista. Por toda parte só vejo carros estacionados, exceto num canto onde está preservado o portal daquela que foi a mansão Matarazzo.
Em vão procuro sinais do fausto e elegância que existiram nesse lugar. Nenhum eco de passos, nenhum semblante, nada daquela que foi mansão onde viveu o grande industrial e sua família.
Penso em culturas desaparecidas e civilizações soterradas. Fecho os olhos e tento imaginar a recepção dos Matarazzo naquela noite de 1926. Entretanto, as imagens não chegam a se formar: o chão estremece sob o peso de inúmeros veículos que circulam no entorno, a realidade me devolve a São Paulo de hoje, o tempo em que vivo e que não muito longe nada mais será que passado distante.
A criatividade
Imprevisibilidade, liberdade e novidade são características apensas à criatividade que resulta de atividades humanas na literatura, na ciência e na arte.
Tem-se falado muito sobre criatividade. Atualmente cientistas utilizam recursos avançados para localizar, no cérebro, as áreas ligadas à criatividade, provavelmente situadas o lobo frontal.
Existem vários testes para medir a inteligência e provas para avaliar a criatividade. O que se busca é a interpretação de um fato intrigante: por que certas pessoas são mais criativas que outras?
As minhas relações com a inteligência sempre foram complexas. Embora tenha plena consciência das minhas limitações e não me situe entre pessoas muito inteligentes – não se trata de falsa modéstia – o fato é que em várias ocasiões duvidei da minha inteligência. Isso aconteceu, por exemplo, na época em que prestei exames vestibulares: julgava-me incapaz de reter na memória aquela quantidade absurda de dados exigidos para o sucesso nas provas. Mais que isso: não acreditava muito nas minhas possibilidades de fazer o uso correto de muitas das informações recebidas. Esse tipo de dúvida manifestava-se, principalmente, durante a resolução de problemas de matemática e física. Digamos que eu conhecia toda a teoria necessária à resolução dos exercícios, mas faltava-me a condição para chegar a ela.
Os anos me ensinaram que as coisas não são bem assim. Em primeiro lugar, há que se considerarem as aptidões pessoais. Nem todo mundo nasce como Leonardo da Vinci, capaz de fazer qualquer coisa inclusive de pintar a “Madona”, talvez só para se distrair das engenhocas que inventava. É por isso que acredito na existência de uma inteligência setorial, seja lá o que isso for. De todo modo, penso que a setorização seja algo como a posse de determinadas habilidades, talvez em detrimento de outras.
A partir daí o problema se prende à indeterminação de nossas principais habilidades. Nesse sentido a pergunta “o que eu faço melhor?” se impõe. É preciso estar atento a ela para que a atenção pessoal não se disperse em muitas coisas de modo a não se chegue a fazer bem nenhuma. Todo mundo sabe que habilidades se desenvolvem com treino. Quem dúvida que verifique as tais escolas norte-americanas para escritores. Essas escolas ou cursos são descobridores de talentos e se orgulham de muitos de seus alunos terem-se tornado escritores importantes, alguns deles chegando a receber o almejado Prêmio Politzer.
De minha parte ainda hoje não sei se consegui responder bem à pergunta “o que eu faço melhor?”. No princípio eu achava, por exemplo, que jamais conseguiria bolar um plano muito longo, algo como o que fazem os jogadores de xadrez que movem uma peça no tabuleiro tendo em mente os vinte movimentos seguintes. Depois comecei a escrever livros, alguns com muitas páginas…
Confesso que tenho medo das pesquisas sobre a inteligência e a criatividade. Não que seja contra elas, mas me preocupa que os avanços nessa área venham a servir para rotular pessoas e suas capacidades. Nesse caso entraríamos em algo semelhante ao que já vem acontecendo com a engenharia genética: quer-se utilizar a tecnologia do DNA para previsão da futura saúde das pessoas, assunto de grande interesse para as seguradoras, por exemplo.
Creio que para muita gente o problema com a própria inteligência ainda esteja por se ser resolvido. Pessoas já bem definidas na vida talvez ainda aguardem alguma surpresa, abrindo-se para algo que jamais suporiam. Esse posicionamento liga-se às inevitáveis inquietações do espírito que nunca nos abandonam
Reafirmo que não tenho nada contra as pesquisas que visam não só descobrir os mecanismos, mas, talvez, encontrar meios de aprimorar os seres humanos, dando a eles melhores condições e mais prazer em viver. O meu pé atrás é só uma questão de receio, afinal já vimos o que aconteceu no passado quando os interesses do poder sobrepujaram os da humanidade e a ciência serviu a toda sorte de discriminações.
Coração Louco
Nenhuma surpresa aguarda o espectador no filme “Coração Louco”. A trama segue o seu curso com a certeza das águas de um rio cujo percurso está definido desde a nascente. De fato, poucas variantes existem para a história de um músico decadente que se consome no álcool e interpreta os seus antigos sucessos em bares de terceira categoria. Nesse mundo onde a autodestruição parece ser um estigma só a esperada interferência de uma mulher pode alterar o rumo da história. E é bem assim que as coisas se passam na vida do músico Bad Blake (Jeff Bridges) que, em meio a um processo autodestrutivo regado a muito álcool, encontra a ajuda da jornalista Jean (Maggie Gyllenhaal).
Em nenhum momento o diretor Scoot Cooper demonstra ter intencionado fazer outra coisa que não narrar linearmente a trajetória de Bad. Pode-se até mesmo afirmar que o filme utiliza – e por atacado – clichês de produções anteriores, variando sobre um mesmo tema.
Depois dessas digressões vale perguntar sobre os fatores que conferem força ao filme e a razão pela qual Jeff Bridges foi agraciado com o Oscar de melhor ator por esse trabalho.
Em primeiro lugar vale lembrar que “Coração Louco” em nenhum momento pretende ser maior do que é. O filme não inova, não conta algo inusitado e tem pouca ação. A todo tempo tem-se em primeiro plano Bad Blake, preenchendo a tela com a sua decadência e as inúmeras garrafas de bebida que consome. O que faz “Coração Louco” diferente é o fato de ser um filme de diretor, calcado na excelência das atuações dos atores. Jeff Bridges está de fato perfeito no papel de Bad Blake, uma das mais imponentes interpretações da sua carreira. Por outro lado, Maggie Gyllenhaal ganha a simpatia do público com seu imenso charme e a forma como Jean se dispõe a compreender o drama vivido por Bad Blake. É Jean quem funciona como alavanca a Bad apontando a ele, com enorme simplicidade e quase sem palavras, o caminho que deve seguir.
Além da atuação dos protagonistas “Coração Louco” se destaca pelo seu excelente roteiro musical. O country casa-se à perfeição com Bad Blake que encontra nas letras das músicas a válvula para expressar, tão bem quanto visualmente, a dimensão da sua tragédia. A musicalidade de Bad demonstra que afinal ele não é um homem qualquer, é acima de tudo um sujeito sensível que se desgarrou, assumindo uma trajetória de erros irreversíveis. Como em outras histórias, também Bad tem um filho que abandonou em criança e com ele quer se reconciliar. Mas é tarde, muito tarde, daí que só o amor de Jean e a música podem salvá-lo.
O filme se completa com as atuações de Colin Farrel no papel de Tommy, um famoso cantor que interpreta as músicas de Bad e de Robert Duvall como Wayne, o amigo de Bad que o resgata em situações limítrofes de alcoolismo.
“Corações Loucos” não chega a ser um grande filme, mas funciona como painel para estupendas atuações. Drama humano de grande intensidade empresta à temática à qual se filia um jeito novo de ser que o destaca de filmes do mesmo gênero. Vale a pena ver Jeff Brigdes no papal do cantor Bad Blake que rendeu a ele o almejado Oscar em sua carreira.
O filme “Coração Louco” já existe em DVD, com lançamento previsto para o mês de junho.
Paroles, Paroles
Aquela voz masculina que se ouve ao fundo da canção “Paroles, Paroles”, interpretada pela cantora Dalida, você sabe de quem é? Não? Olhe, a voz pertence ao ator francês Alain Delon.
Numa propaganda veiculada, tempos atrás, se dizia: o tempo passa, o tempo voa. Pois é, o tempo passa, o tempo voa. Acontece a todo mundo envelhecer, aconteceu também a Alain Delon que agora anda pelos 75 anos de idade.
O Alain Delon? Pois é, ele mesmo. O cara era proprietário de uma beleza incomum, lembra-se? Foi protaganista de filmes importantes, símbolo sexual nas décadas de 60 e 70, trabalhou com diretores de peso, foi casado com Romy Schneider e Natalie Delon. Fez o diabo por mundo afora até entrar aqui em casa hoje por meio de uma foto tirada ontem, durante a sua participação num programa de TV em Cannes.
E daí? Daí que não são justas as rugas no rosto e os cabelos brancos. Não no Alain Delon. Para ele deveriam ter aberto alguma exceção porque o Delon a que nos habituamos é o de “O Sol por Testemunha”, “ O Leopardo” e outros filmes.
Não que o atual Delon não esteja bem, pelo amor de Deus, não se trata disso. É que ele estava melhor no papel de ícone, no qual, aliás, continua vivo nas memórias. Então - parece estranho dizer - a verdade é que talvez seja melhor não entrar em contato com fotos recentes para que nas nossas lembranças permaneçam, intocadas, apenas as imagens do passado. Não é assim com Brigitte Bardot? Quem vai a Búzios e passa pela estátua da atriz francesa na calçada, sentada, vigiando o mar, de qual Brigitte exatamente se lembra? A de ontem? A de hoje?
Num de seus livros o escritor argentino Julio Cortázar inclui um conto cujo título é “A noite de Mantequilla”. A narrativa se dá em torno da luta entre o argentino Carlito Monzón, então campeão mundial dos médios, e José Mantequilla Nápoles. A luta foi realizada em Paris – fevereiro de 1974 – com a vitória de Monzón no sétimo round. Alain Delon foi o promotor do evento e Cortázar refere-se à arena montada pelo ator para a realização da luta.
A observação anterior prende-se a um leque de informações sobre um ícone do cinema do século 20. Mas, o tempo passa, o tempo voa, não perdoa ninguém, corrói ícones, destrói aparências até que, finalmente, reduz tudo a pó. É pena. Ainda bem que o cinema guarda, intactas, cenas do passado que subitamente se convertem em presente.Trata-se de um dos milagres da chamada grande arte, dos poucos meios de que dispomos para enganar a passagem do tempo.
Viva o cinema! Vivas aos ícones que preencheram e preenchem as lacunas da nossa imaginação! Eles são eternos, não envelhecem, nunca morrem, podemos revê-los a qualquer momento, na maioria das vezes na intimidade das salas de nossas casas. Basta um clique no controle remoto. Pronto: a fantasia suplanta a realidade e nos enche de esperança sobre a eternidade.
A fala de Dunga
Em meados dos anos 70, vigorando a ditadura, fui a Belo Horizonte para assistir ao jogo final do Campeonato Brasileiro entre o Atlético-MG e o São Paulo. No avião cruzei com radialistas, repórteres esportivos e homens de televisão: todos eles previam uma vitória fácil do Atlético, mais time, melhor campanha e assim por diante. De fato o Atlético tinha uma equipe invejável na qual despontavam jogadores como Toninho Cerezo e Reinaldo.
Foi a primeira vez que tive oportunidade de presenciar a trepidação de quase toda uma cidade em torno de um jogo de futebol. Belo Horizonte era quase toda ela alvinegra. Bandeiras e camisas do Atlético estavam por toda parte e não se falava noutra coisa que não o jogo do dia seguinte. Vitória certa, festa preparada, os atleticanos deliciavam-se com antecedência, saboreando um título que, supunham, jamais lhes escaparia.
Na noite que antecedeu o jogo fui jantar com amigos mineiros, gente boa e torcedores fanáticos do Atlético. No restaurante realizava-se verdadeira festa com vozerio muito alto, às vezes entrecortado pela vibração coletiva aos gritos de “Atléticooooo”. Foi durante esse jantar que ouvi de um dos amigos, engenheiro na época trabalhando numa estatal, um comentário ao qual preferi silenciar. Falando de si mesmo e suas realizações o amigo emitiu a seguinte opinião sobre o governo e o país de então:
- Veja bem, sou favorável a esse governo que aí está. Antes dos militares o Brasil era uma bagunça. Eu estudei e me formei durante esse governo e consegui emprego numa estatal. Eu me sinto devedor ao governo que me proporcionou essas oportunidades. É o melhor governo que poderíamos ter.
Sem negar realizações dos governos militares, na época estávamos sob a vigência da ditadura. Os tais “anos de chumbo” eram peso muito grande dado o cerceamento de liberdades individuais, torturas etc. Aliás, o melhor mesmo era não tocar em assuntos de natureza política. Assim, nada disse ao amigo em relação à sua afirmação. Mas nunca me esqueci do que ele disse e vida afora julguei ter ele perdido excelente oportunidade de ficar quieto.
Lembrei-me do meu amigo e de sua fala ao ler as declarações de Dunga, o atual técnico da Seleção Brasileira. Em entrevista concedida logo após a divulgação dos nomes dos jogadores convocados para a Copa de 2010, Dunga deu-se ao desfrute de dizer coisas sobre assuntos fora de sua área de atuação. Dizendo que não poderia opinar sobre a ditadura e a escravidão justificou-se o técnico:
- Quem esteve lá, quem sofreu, esse sim pode dar opinião. Eu não posso dizer que a ditadura era boa, ou ruim (se) eu quero que volte. Só quem viveu é que pode nos dar a resposta. É a mesma coisa que eu falar sobre a época da escravidão, eu não vivi, como é que eu vou dizer, ah era ruim, era bom, não sei.
Eis aí outro caso em que uma pessoa perdeu excelente oportunidade de ficar calada. Não que se espere muito do técnico, mas…
Ah, ia me esquecendo: o jogo. A partida final foi realizada num domingo, 05/03/1978. Decidia-se o título brasileiro de 1977. No tempo normal houve o empate por 0X0. O jogo foi decidido através de cobranças de pênaltis, cabendo a vitória ao São Paulo que, na ocasião, sagrou-se campeão brasileiro.
Os multi-ideológicos
No seu excelente “Dicionário de Filosofia”, Nicola Abbagnano faz longa digressão sobre a definição de ideologia. Ele ensina que, em geral, o termo refere-se “a toda crença usada para controle de comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença, em seu significado mais amplo, como noção de compromisso ou conduta, que pode ou não ter validade objetiva”.
Abbagnano acrescenta que o significado de ideologia consiste em sua capacidade de controlar e dirigir o comportamento dos homens em determinada situação. Isso representa que princípios ideológicos arraigados interferem no modo de agir das pessoas dentro das circunstâncias em que agem. Derivam daí comportamentos que observamos, ditados por essa ou aquela crença.
Recentemente o presidente da República declarou-se multi-ideológico. Justificando a sua posição o presidente afirmou:
“Um chefe de Estado não é uma pessoa, é uma instituição, não tem vontade própria todo santo dia, mas tem que levar a cabo os acordos que sejam possíveis”.
Essa posição, talvez útil no trato com diferentes situações e governos, pretende caracterizar uma situação multi-ideológica apensa não ao homem que assim professa, mas ao cargo que ocupa. Seriam as necessidades maiores do Estado a sobrepujar as do homem que é servidor dele; cabe ao servidor deixar de lado a vontade própria, aderindo momentaneamente a vertentes ideológicas que se chocam desde que contribuam para levar a cabo acordos que sejam possíveis.
O assunto é palpitante e está a merecer análises mais profundas. De que o mundo globalizado exige de autoridades maior cintura nas negociações, sem o que emperrariam as relações entre países, não resta dúvida. Mas, como entender, do ponto de vista pessoal, a adoção de um perfil multi-ideológico?
As campanhas para as eleições presidenciais que se aproximam constituem-se em terreno fértil para a análise de comportamentos. Já surgem as primeiras inversões de posições ideológicas sobre assuntos polêmicos. Teses ardorosamente defendidas no passado sucumbem à necessidade de mudança, adotando-se posicionamentos mais caros à opinião popular. De repente o que está em jogo é o interesse maior da conquista de eleitores.
Talvez a atenção à reafirmação ou negação de princípios ideológicos expressos anteriormente sirva ao eleitor para decidir com mais confiança o seu voto nesse ou naquele candidato.
O barulho que incomoda
Você pode não se dar conta, mas a companhia do barulho é permanente no seu dia-a-dia. Brasileiro é um cara que gosta de fazer barulho, isso dá para notar, não é preciso nenhuma pesquisa. Faz-se barulho sem cerimônia, ao bel prazer, em horas próprias e impróprias, tem gente que parece carregar um tambor nas costas só pelo prazer de martelar.
Tá bom, não se trata só de fazer barulho: o que há, na verdade, é um problema de educação, de falta de respeito pelos outros. E, também, de ausência de obediência a regras, à legislação. Exemplo: ao lado do prédio onde moro existem três casinhas cujos moradores são muito espaçosos e ruidosos. Hoje em dia as lojas vendem equipamentos de som, com boa potência, em 10, 20, 30 vezes. Basta comprar um daqueles, pagar uma merreca por mês e para passar à condição de proprietário de um “som” para festas. Depois é só chamar os amigos, deixar rolar uma cervejinha, assar uma carninha e espalhar-se até na calçada. Pronto, está feita a alegria de todo um domingo que se arrasta até altas horas da noite. Os vizinhos afrontados? Ora trata-se de gente muito chata, que não aceita a alegria dos outros, não gosta de berros, da gritaria infernal, de pagode; gente horrível esses vizinhos elitistas que só não ligam para a polícia por saberem que, se não pintar sangue na festa ao lado, nada será feito.
Há também aquele baixinho que tem um cachorro grande. Todo dia o baixinho sai às 7h30min para trabalhar e deixa o cachorro no cercado da frente da casa. Dirão que o cara é boa gente, cuida bem do cachorro, seria maldade deixar o bicho preso dentro de casa o dia inteiro. É verdade. Só que das 7h30min em diante o cachorro não para de latir. É um latido grave e profundo, forte porque, já disse, o cachorro é grande. De vez em quando ele pára, mas a gente sabe que não deve se animar porque, minutos depois, ele recomeça a ladainha dele. Às vezes penso que esse cachorro é um sujeito triste e desiludido da vida, talvez até não goste do baixinho que é seu dono. Por isso ele late, fria e metodicamente, como um marca-passo que não controla nada ou o ponteiro de relógio que não regula hora nenhuma. É assim que manifesta o desespero dele.
Não vou ficar aborrecendo com coisas do meu quarteirão. Poderia me estender sobre o caso do cidadão que é proprietário do bar da esquina e tem um rádio potente. Ele gosta de dividir o seu gosto musical com os vizinhos, tão boa praça é esse cidadão. Em dia de jogo, então… Aí ele põe mesinhas na calçada, pendura bandeira do seu time do coração no poste defronte e liga o rádio a um sistema de som para que todos possam ouvir o jogo. O resto deixo para você imaginar.
Se você acha que estou irritado e por isso escrevendo essas coisas, errou. Até que já me acostumei com o vendedor de pamonhas, curau, sorvete, suco de milho etc. Ele passa toda manhã num carro pequeno em cujo teto instalou um alto-falante para avisar aos interessados de que está perto, é só correr para deliciar-se com as gostosuras que ele produz para deliciar-nos.
Você pode estar achando que estou exagerando. Não estou não, de jeito nenhum. Olhe que nem estou reclamando dos escapamentos abertos das motos, dos carinhas que colocam som grande no carro e andam com ele ligado e o porta-malas aberto, dos torcedores que extravasam alegria com as cornetas – é uma delícia ouvir cornetas perto da meia-noite quando os jogos noturnos terminam -, das britadeiras da prefeitura que começam a vibrar muito cedo, dos vizinhos de prédio que arrastam móveis ou cismam de furar a parede nas horas mais impróprias, dos bares noturnos da vizinhança, do cara que grita avisando sobre o gás, daquela música maravilhosa com a qual nos brindam enquanto fazemos compras nos supermercados… Esses três pontinhos aí servem para você completar a lista.
Tá bom, aceito o conselho, vou me mudar para uma floresta. Mas, será que os animais não gritam de madrugada?
A convocação da seleção
Aproxima-se a convocação dos jogadores brasileiros que participarão da Copa do Mundo de 2010. Como em épocas anteriores há um frenesi em torno dos nomes que sairão da cabeça do técnico Dunga. A coisa chega ao ponto de se refazerem os passos de Dunga ao longo de sua vida com o intuito de entender porque ele é do jeito que é. Ontem, um jornal de São Paulo publicou extensa matéria sobre o técnico, abarcando desde o seu nascimento em Ijuí até os dias de hoje.
Não se discute o fato de que o futebol é paixão nacional. Mais que isso, a seleção ainda retém certa fantasia de nacionalismo caboclo que chega até ser bem-vinda nesses despersonalizados tempos de globalização e dissolução de fronteiras. Nada pode unir tanto os brasileiros quanto os tais noventa minutos em que a “seleção canarinho do Brasil” entra em campo para combater antigos ranços de inferioridade que hoje, graças a Deus, estão sendo abandonados.
O fato é que a torcida brasileira ainda está doída pelo resultado da última Copa. Se os sentimentos nacionais mantiveram-se intactos o mesmo não aconteceu com a nova geração de jogadores hoje intercionalizados e quiçá desenraizados. Trata-se de pessoas que ganham muito dinheiro jogando em clubes estrangeiros, profissionais demais para o gosto popular. Por vezes eles são tão profissionais que se esquecem do verdadeiro profissionalismo, aquele ligado à representação social do esporte que praticam.
Mas, está chegando a hora da convocação. Quem serão os craques que desta vez defenderão o Brasil? Quem serão os soldados escolhidos para mais essa campanha imarcescível em que as nossas cores estarão em confronto com antigos rivais?
É aí que entra o técnico Dunga, aquele que é como é segundo se diz. Mas, o que não se pode olvidar numa hora dessas é que Dunga, mais que tudo, é técnico e sabemos que essa estirpe tem por norma não agir em acordo com aquela que pode ser considerada a opinião nacional. Quem não se lembra de Claúdio Coutinho, do Lazaroni, do Parreira e tantos outros que permaneceram surdos à opinião geral da torcida brasileira?
Pois Dunga está a um passo de escolher o seu partido: ficar entre os técnicos que ouvem ou os que não ouvem. O país clama pela presença de Ganso e Neymar na seleção, mas Dunga, talvez fazendo-se de mais importante do que já é no momento, não dá nenhum sinal de que cederá nesse sentido. Aliá, a opinião dele é que não seria justo deixar de lado os que concorreram para que o Brasil atingisse o atual estágio em que está; não seria justo ignorar o esforço dos jogadores que classificaram o Brasil.
Futebol é momento, instante de quem está jogando bem. O máximo que podemos desejar é bons sonos a Dunga, clareza nas suas interpretações, menos dureza. Quem sabe ele ouve a multidão e dessa vez o Brasil sai daqui com o time que o povo quer.
Avatar
Não fui aos cinemas para assistir ao filme do diretor James Cameron de quem guardo ótima impressão desde “Titanic”. Confesso que fui um pouco influenciado por críticas negativas a “Avatar”, grande parte delas contrárias ao que se considerou excesso de utilização de recursos tecnológicos. Não seria, essa a opinião, cinema integral e esse também parece ter sido o julgamento dos responsáveis pelo Oscar: ”Avatar” não foi agraciado com os prêmios mais significativos na grande festa do cinema norte-americano.
Por outro lado, tive algum receio de ver “Avatar”, justamente por ser um filme em 3D e requerer o uso de óculos especiais. Li que muita gente queixou-se de dor de cabeça após assistir ao filme e temi pela minha sempre inseparável enxaqueca.
Depois de tantos óbices acabei me rendendo à versão de “Avatar”, em blu-ray, que acaba de chegar ao mercado. O que posso dizer é que foram mais de duas horas de verdadeiro encantamento. Acredito piamente quando Cameron relata que escreveu o roteiro pensando em histórias que leu quando criança. Entre outras inúmeras qualidades, “Avatar” tem um enredo que busca não transgredir as regras das fábulas infantis. Não importa que se tenha acusado o enredo por ser “tradicional”; diria que é mesmo tradicional e de propósito porque ao inventar o mundo de Pandora o diretor não pode prescindir da única experiência que afinal possuímos: a humana. É por isso que em vários momentos o filme parece reportar-se a pequenas partes de histórias tantas vezes contadas, beirando por vezes clichês como aquele da luta final entre o “mocinho e o bandido”, duelo improvável em meio a uma guerra do futuro, mas a gosto das nossas memórias nas quais o bem deve ombrear-se com o mal.
Entretanto, falar sobre o enredo – aliás, perfeito e tantas vezes comovente sem ser apelativo – representa demorar-se demais num dos aspectos do filme. O importante é que o enredo se apóia num cenário virtual de grande beleza plástica. Não por acaso uma das personagens do filme é a Dra. Grace Augustine, uma botânica vivida por Sigourney Weaver, veterana em filmes de ficção. É ela a responsável pelo projeto Avatar que visa a interação dos humanos com os nativos de Pandora, os Na’vi. Para isso, é feita a mistura do DNA humano com o dos nativos, surgindo avatares - mentalmente comandados pelos humanos que cederam os seus DNAs. Esses novos seres circularão no mundo de Pandora, todo ele feito de uma natureza exuberante que a todo instante atrairá a atenção da pesquisadora interessada em compreender a ligação entre os nativos e o ambiente em que vivem.
É partindo de tais premissas que se desenvolve a ação na qual um ex-fuzileiro naval (Jake Sully vivido por Sam Worthington) tem seu avatar enviado para fazer contato com os Na’vi de modo a convencê-los a deixar o lugar onde vivem para que recursos minerais de interesse dos humanos sejam explorados. É através de Jake que os espectadores entram em contato com o mundo dos Na’vi e passam a compreender a força das ligações deles com a natureza. Magia, animais e vegetais estranhos, divindades e um mundo de beleza incomparável surgem aos nossos olhos. É a esse mundo maravilhoso que os humanos querem tomar, por bem ou por mal. De nada valerão os valores transcendentais dos Na’vi diante dos avanços tecnológicos trazidos a Pandora para subjugá-los. Entretanto, nem tudo estará perdido: Jake não foi trazido a Pandora por acaso, há entre ele e os deuses uma ligação maior que definirá a trama do filme.
Cabe acrescentar a essas notas rapidíssimas que não pretendem figurar como crítica do filme, a riqueza de detalhes trabalhados por James Cameron: Pandora é um mundo imaginário que se sustenta; os Na’vi têm muito do modo de ser e crenças de civilizações antigas que se aperfeiçoaram com o passar do tempo; as florestas virtuais criadas por computadores obedecem à lógica da vida, ultrapassando em muito a exuberância das florestas tropicais que conhecemos, abrigando um tipo de força desconhecida, mas intensa; a tecnologia utilizada pelos seres humanos em Pandora é possível; o filme divulga - e não subliminarmente - a mensagem do perigo que representa a destruição da natureza pelo homem.
Se você não viu “Avatar” e não quer saber de 3D não deixe de assistir à versão em blu-ray. Ela parecerá bem melhor se a sua televisão for uma dessas modernas full-HD.
Cultura e incultura
Dias atrás li que uma popular vedete brasileira afirmou que, por gostar de humor e piadas, iniciaria a leitura da “Divina Comédia”. Gafes a parte, o fato infelizmente reflete a incultura que grassa nas plagas de nosso vasto país.
Já se disse que o brasileiro é um povo que não lê, para isso sendo apontadas várias causas. De fato, não se tem neste lado do Atlântico um vínculo sólido com a cultura. Embora honrosas exceções, o que mais se detecta é a tal cultura de almanaque com frequentes emissões de opiniões sobre assuntos aprendidos “por alto”. O restante consiste, infelizmente, em puro desconhecimento que se subdivide em quase analfabetismo e no analfabetismo declarado. Isso representa que uma imensa maioria está no mundo, mas não faz parte efetiva dele mostrando-se incapaz de compreender os complexos processos que fazem da vida hodierna um quebra-cabeça de solução nem sempre fácil.
Um dos problemas da cultura do Brasil é a ausência de tradição cultural. Na minha infância e juventude fui aluno de escolas públicas e vivenciei na pele as falhas do sistema de ensino do país. Talvez por isso eu nunca tenha desenvolvido sensibilidade arguta para a música clássica e tenha experimentado dificuldades em apreender as características e belezas da pintura e artes plásticas. Foi desse modo que gente como Picasso, Gauguin e Van Gogh acabaram sendo descobertas algo tardias da minha embotada sensibilidade estética.
As afirmações que faço não nascem de acaso ou suposição. Antes, foram geradas por constatações que, ao longo do tempo, compuseram a visão genérica de que hoje sou possuidor sobre a valorização da cultura no Brasil. Creio que um dos mais reveladores impactos sobre o meu modo de ver a arte se deu na primeira vez que tive oportunidade de visitar Paris. Deixando de lado certa admiração pueril pela cultura francesa e tudo o que ela foi capaz de produzir, o fato é que a visão de obras originais e não cópias – esse contato magnético que se estabelece entre aquele que olha e o mestre aprisionado nos traços que imprimiu na tela – conferiu realidade, ainda que póstuma, a nomes até então conhecidos apenas através de livros. Mais que isso, impressionou-me, durante visitas a museus, o fato de escolares, ainda pequenos, assistirem a aulas diante de telas famosas. Aqui crianças ouvindo explicações sobre uma tela de Monet; ali mais crianças aprendendo sobre a arte de Manet; e assim por diante.
Não tivemos, nem temos coisas assim aqui. Nossa formação cultural é outra. Ainda assim é triste constatar o descaso e a posição secundária a cultura no país. A leitura poderia ser uma alavanca para a melhoria do padrão cultural do povo, mas esbarra nas dificuldades de obtenção de livros. A escassez de boas bibliotecas, livros caros e até a falta de tempo de um povo que trabalha e gasta inúmeras horas se locomovendo em sistemas de transporte que não acompanham o ritmo acelerado de desenvolvimento do país constituem-se em barreiras para o crescimento de um público leitor.
Mas, que não se perca a esperança. Não se pode olvidar que o Brasil ainda é uma nação jovem quando comprada às velhas matrizes européias. Daí que se está plantando, devagar é verdade, mas plantando. Um dia se colherão os bons frutos desse plantio e certamente existirá no país um padrão cultural mais democrático e aceitável.