Arquivo para maio, 2010
Violência pela violência
Você viu as imagens de brigas e desordem nas imediações do estádio do Pacaembu após o final do jogo entre o Corinthians e o Flamengo?
Dentro do estádio correu tudo bem. Mas, a derrota do Corinthians irritou parte dos torcedores que saíram preparados para arranjar encrenca. Confusão armada, torcedores do mesmo time brigaram entre si e atacaram a polícia, atirando pedras. Em resposta vieram as bombas de efeito moral que emprestaram colorido próprio às lamentáveis cenas.
O triste foi constatar as reações de parte do público que, a todo custo, procurava safar-se da arena de luta. Pais carregando crianças chorosas no colo, senhoras assustadas, enfim torcedores pacíficos a quem é roubado o direito de frequentar estádios de futebol sem colocar em risco a si próprios e suas famílias.
Mas o que impressiona mesmo é a prática da violência pela violência. Percebe-se que acontecimentos como os de ontem nada têm de ocasional. Trata-se de pessoas que encontram prazer na prática de atos violentos e buscam o confronto, talvez como forma de realização pessoal. Parece existir nessas pessoas a necessidade imperiosa de extravasar energias negativas, daí entregarem-se a situações de alto risco com as quais, aliás, não se incomodam. A impressão que temos é que para os homens em luta não existe amanhã, nem contam as possíveis consequências. Mesmo a morte será um acidente de percurso, talvez de glorificação. É por essa razão que as áreas externas dos estádios de futebol tantas vezes assumem o papel de arenas onde feras medem forças, apenas por medir. Contribuem para a afirmação anterior as notícias de torcidas contrárias que marcam brigas pela internet. Não se trata dos jovens desajustados, contrários às normas da sociedade, verdadeiros desertores sociais como aqueles dos filmes sobre a juventude do pós-guerra, tão bem representada nos personagens vividos por James Dean. Aqui as coisas se direcionam mais para o espírito dos homens que se reúnem para medir forças e exercitar a violência, como se viu no filme “Clube da Luta”.
Os distúrbios da noite de ontem tiveram o final de sempre: uma centena de corintianos foi parar numa delegacia, após brigas, destruição de vitrines de lojas etc.; um ônibus com torcedores do Flamengo foi parado e nele foram encontradas armas, pedras, porretes e outros materiais bélicos. Por essa razão, também esses foram parar num Distrito Policial.
No fim todos voltaram para as suas casas. Muito em breve nós poderemos vê-los, mais uma vez, em ação. Não importa se o time para o qual torcem venha a ganhar o perder o seu próximo jogo. O que vale é a discórdia, a sede de luta, a paixão pelo quebra-quebra, o desafio à polícia, talvez a busca de uma forma de heroísmo cujo significado nos escapa.
As novas histórias de medo
Meu tio-avô era um sujeito espigado e muito falante. Vinha ele das beiradas do Estado de Minas que percorreu em lombo de cavalo. Mais que cavaleiro, meu tio-avô assemelhava-se a um tropeiro.
Homens assim vivem noutra dimensão, numa região de serras, campos e matas. Eles dormem nas beiras das estradas poeirentas, isso quando não se aboletam num cômodo qualquer da casa de um fazendeiro amigo. Nesse mundo vigoram relações fortes, sejam de amizade ou ódios que jamais cessam. Em meio a encontros e desencontros existe sempre o revólver na cintura ou bem guardado num surrado embornal. Pode acontecer que a arma de fogo permaneça quieta durante muito tempo ou nunca seja usada. Entretanto, o que importa é o fato de ela estar presente, fazer parte de um leque de possibilidades dentre as quais a morte surge como variante bastante lógica.
Homens da estirpe do meu tio-avô viram de tudo e trazem consigo um tipo de sabedoria que só a experiência pode conferir. Tal sabedoria se revela através de intermináveis histórias que contam, muitas delas de arrepiar os cabelos.
Quando menino, ouvi muitos casos de medo contados pelo meu tio-avô. Tinha ele o dom do contador de histórias nato cujas inflexões de voz e ritmos de narrativas guardam a surpresa para o final, prendendo os ouvintes com idas e vindas, como se faz nas novelas de hoje. Foi assim que me inteirei, desde pequeno, a respeito do sobrenatural e fui iniciado nas agruras do gênero fantástico, sem me dar conta de que avançava num caminho sem volta.
O fato é que nunca mais abandonei as histórias de medo. Das narrativas de meu tio-avô parti para os contos fantásticos, lendo Poe, Maupassant e tantos outros. Paralelamente, vieram os filmes de horror como os estrelados por Bela Lugosi, Boris Karloff, Peter Cushing, isso para ficar só nos mais antigos.
Com tal histórico pessoal e alguma vivência no gênero sinto-me bem à vontade para reclamar das atuais tendências adotadas pelos criadores de histórias de horror. Deixando de lado os que produzem boa literatura de horror – Stephen King e Clive Baker são dois deles – o que se encontra é uma nova forma de narrativas, mais idílicas nas quais tradicionais seres do mal se dão os desfrute de parecerem bonzinhos. Creio que os livros “Lua Nova” e “Crepúsculo” com os respectivos filmes que se fizeram sobre eles ilustrem bem a nova forma de terror que, aliás, nada têm a ver com as verdadeiras histórias de medo.
Quanto aos filmes atualmente produzidos destaque-se o abuso de efeitos especiais cuja intenção é colorir as telas com sangue e conferir grandiosidade aos sustos. A rapidez com que seres humanos se transformam em lobisomens, vampiros e outros seres, o modo como lutam entre si utilizando artes marciais, tudo isso dificilmente se enquadra nas premissas que conferem qualidade ao gênero fantástico.
De meu tio-avô não se pode dizer que tivesse ilustração. As histórias que contava vinham de gerações anteriores e continham o genuíno molho dos verdadeiros contos de horror. Parece-me que esse “molho” se perdeu com o tempo, dando origem a uma nova forma de horror que, na verdade não convence. Infelizmente o horror deturpado atualmente corre solto por aí privando os não iniciados no gênero fantástico de emoções insubstituíveis.
O humor e o riso
Recentemente vi pela televisão o show de um comediante em teatro dos EUA. Se não me engano, tratava-se de comediante inglês que se aproveitava das diferenças entre os dois povos de língua inglesa para arrancar gargalhadas das pessoas presentes.
Todo mundo sabe que o riso está ligado às circunstâncias. Riso é momento, oportunidade, enlevo e, principalmente, o bom humor de quem ouve a piada. No caso do comediante inglês espantou-me o baixo nível das piadas. O tema principal era, sem mais, nem menos, o das relações entre vagina e pênis. Carregadas de simbolismo, as piadas eram, mais que contadas, executadas. Valia-se o comediante de posições sugestivas de seu corpo que, sabiamente, acompanhavam o ritmo das palavras. Assim, ele conseguiu ser num momento, o próprio pênis, noutro a própria vagina. No mais, a apresentação não saiu dessa rotina, para encanto de uma enorme platéia que gargalhou durante todo o tempo.
Riso é clima. Piadas não foram feitas para ser contadas em cemitérios, durante enterros. Piadas exigem lugar, representação e jeito de contar. Há pessoas que fazem rir pela sua seriedade obsessiva. Outras se arreganham em micagens e encontram quem as ache engraçadas.
Riso é também inteligência, presença de espírito, aquela coisa de captar o lado tantas vezes esdrúxulo de situações incomuns. Há ocasiões em que rimos de nós mesmos, em geral pontuadas pelo ridículo a que nos expusemos.
Não devemos também nos esquecer do riso dos neuróticos, do riso absurdo e incontido dos loucos, da risada sardônica que se atribui ao Diabo, das gargalhadas inoportunas a custo contidas durante situações nas quais a alegria é em absoluto proibida.
Escrevo essas mal traçadas, aventurando-me a considerações sobre o humor e o riso, porque tenho um amigo que me envia, diariamente, emails com piadas. Tem ele o faro e o bom gosto pelas boas piadas, daí entregar-se ao prazer de escolhê-las e enviar aos amigos.
Ofício de bom samaritano esse do meu caro amigo. Quantas são as manhãs em que os problemas cotidianos se somam, alterando negativamente o meu humor. Pois nessas ocasiões sempre me acontece receber email enviado pelo meu amigo: leio o conteúdo e, invariavelmente, começo a rir.
As ótimas piadas enviadas pelo meu amigo são um bálsamo em meio à mesmice dos dias que passam. Elas me fazem lembrar de que não estamos no mundo para sofrer: a vida é breve e o que nos cabe é aproveitá-la da melhor forma possível, preferencialmente com bom humor.
Portanto, caro leitor, faça um favor a você mesmo: ria. Caso não tenha razões para rir, dê um jeito de divertir-se até com o que lhe acontece. Lembre-se: o primeiro passo para atingir a plenitude do bom riso é não se levar muito a sério. Se conseguir isso verá que o mundo tem o seu lado engraçado e a vida parecerá a você mais leve e divertida.
A “Lei do Photoshop”
Vi um álbum de fotografias no qual pessoas que conheço foram “melhoradas” com recursos do Adobe Photoshop. Virando páginas, em vão procurei nas faces sinais de envelhecimento, rugas, manchas e outras marcas visíveis ao natural nas pessoas ali fotografadas.
Observando as fotos lembrei-me do deputado Wladimir Costa, PMDB-PA, que pretende tornar obrigatória uma advertência sobre o uso do Photoshop em peças publicitárias. A chamada “Lei do Photoshop” está transitando na Câmara dos Deputados, esperando aprovação. Segundo ela imagens alteradas com o uso do poderoso editor devem ser acompanhadas da seguinte mensagem: “Atenção: imagem retocada para alterar a aparência física da pessoa retratada”.
A intenção do deputado é acabar com a idealização do corpo humano pela imagem. Naturalmente - e como esperado - todo mundo caiu de pau no deputado, para isso invocando razões diversas que passam pelo tradicional cerceamento da liberdade.
Não se pode negar que as imagens retocadas contribuem para o estabelecimento de uma atmosfera de perfeição impossível de ser alcançada. A beleza das mulheres que aparecem nas capas de revistas é grandemente ampliada. Faces e corpos perfeitos podem acentuar a impressão de feiúra pessoal daquele os observa e desencadear uma espécie de neurose de busca de perfeição.
Tudo isso é verdade. Mas daí a uma lei que nos informe que o que estamos vendo não passa de uma fraude… Em primeiro lugar as pessoas têm, sim, o direito de sonhar. Nada contra uma peça publicitária despertar necessidades de aprimoramento de aspectos físicos: isso não está obrigatoriamente ligado à ilusão de perfeição. Acresça-se que a beleza, natural ou não, é sempre bem-vinda num mundo que prima em nos cercar de imagens traumáticas e constrangedoras. Então, não me importa que a mulher que está na capa da Playboy não seja exatamente como ali se apresenta: não quero ver os defeitos dela nem ser avisado de que a perfeição não existe até porque estou cansado de saber disso.
Vá lá que a “Lei do Photoshop” possa ter os seus fundamentos, mas nem por isso deixa de pertencer a um universo de coisas fadadas a tornar vida mais dura do que já é. Se aprovada, daqui a pouco poderão ter a idéia de proibir a nossa própria imaginação: é bom não esquecer que temos no cérebro um Photoshop virtual que nos permite corrigir tantas coisas às quais simplesmente fechamos os olhos.
Posto isso, volto ao álbum de fotografias que manuseei dias atrás. Confesso que ao vê-lo senti um leve choque dado que foram subtraídos das pessoas ali mostradas algumas das suas imperfeições estéticas. Entretanto, não pude negar que, embora levemente modificadas, as pessoas se pareciam mais joviais e interessantes. Então pensei que daqui a alguns anos, quando essas pessoas se olharem nas fotos do álbum, não se lembrarão dos retoques em suas fotografias e terão saudades do que não foram, de uma beleza que não chegaram a ter. Mas, a essa altura a ilusão terá se convertido em realidade e as pessoas se harmonizarão com as suas imagens retocadas do passado, como se elas fossem reais. Então, tudo ficará como se diz por aí: melhor que isso, só dois disso.
Santo Photoshop! Não é que ele também poderia ser chamado de “me engana que eu gosto”?
Loucura de amor
Acontece a você, vez ou outra, não querer saber o fim de uma história? Não será você um desses caras que acompanha novelas só pelo prazer de não assistir aos últimos capítulos?
Pois existe no mundo gente que odeia epílogos ou escolhe viver situações que nunca terminam . Conheci um homem assim: alto, magro, barba rala, circunspecto, hermético, celibatário, sempre com um terno marrom, o mesmo terno que dava a impressão de ser lavado e passado diariamente.
Para mim esse homem veio do nada e no nada se perdeu. É desses que parecem ter-se convertido em simples memória, tão etéreo que questiono se ele realmente existiu ou foi criado pela minha imaginação.
Não me perguntem o nome do homem. Dele guardei poucas cenas, estanques, que começam e terminam no ambiente de uma sala ampla cujos detalhes físicos me escapam.
De onde veio o homem? Impossível saber. Sei que entrou no meu mundo de menino como um próximo de meu pai que, de vez em quando, ia visitá-lo e me levava junto. O tal morava numa casa, na entrada da pequena cidadela em que vivíamos. Tinha ares de oriundo de civilização mais avançada, condição que conferia ele algum status de superioridade.
Desse estranho homem guardei a confissão de que amara loucamente a uma mulher e, não correspondido, castrara-se. Isso é tudo que retive do discurso metódico dele. Não me lembro de mais nada, nem sei o que aconteceu a ele depois embora me pareça que o suicídio teria sido um final razoável para a sua vida. Mas, mesmo isso não passa de mera suposição.
Foi a partir daí que fiquei sabendo que o amor pode levar pessoas a atos extremos. Talvez essa afirmação sirva de epílogo a essa história sem fim e, a seu modo, explique tudo.
Resta a figura de meu pai. Ele está sentado numa cadeira de vime, defronte o homem que fala sobre a sua castração. Nessa cena não passo de um menino que se distrai com afazeres de criança. Ainda assim, tenho tempo para anotar um sorriso que se esboça, mas não se completa, no rosto de meu pai, sorriso maroto de quem mantém intacto o órgão, sorriso algo superior de macho inteiro que se eleva sobre a arrogância intelectual do homem castrado.