Arquivo para junho, 2010
Os visitantes
Entram em minha casa os visitantes,
Convidados inesperados.
Chegam sorridentes, alegres,
Não me enganam: não são do meu planeta, são extraterrestres.
Ficarão até altas horas,
Deglutirão salgadinhos,
Sempre sorrindo a felicidade espacial que os trouxe,
Falando assuntos da Bolsa de Valores.
Depois partirão,
Tornarão à nave que os trouxe ao meu pequeno mundo,
Invadido, mas não conquistado.
Quando se forem abrirei a janela e
vigiarei o céu, procurando-os entre as poeiras cósmicas.
Mas, será inútil: jamais conseguirei identificá-los.
Pobre Zimbábue
No que o Brasil faz 2X0 contra o Zimbábue os meninos da escola explodem de alegria. Não importa que seja jogo treino e o adversário o nunca temível Zimbábue. O que vale é bola na rede e o grito profundo: Goooool… Brasillllll!
Ao lado do campo Dunga, com cara de gente sadia, bate palmas e sorri um de seus escassos sorrisos. O locutor da TV desmancha-se, afinal é a seleção.
Ninguém olha para as arquibancadas onde estão os naturais de Zimbábue, país governado pelo ditador Robert Mugabe. A vida por lá não é fácil: campeia a pobreza demonstrada por todos os indicadores econômicos.
Não se nega que a presença da seleção brasileira sirva para trazer alegria ao sofrido povo do Zimabábue. Mas, que me perdoem os torcedores brasileiros, vou torcer para que o Zimabábue esboce pelo menos uma reação no segundo tempo, proporcionando alegria ainda maior à sua torcida.
Isso pode ser chamado de falsa solidariedade com a África ou, se quiserem, sentimento de culpa pela pobreza dos outros. Mas, não importa: o que vale é ver a turma de Zimbábue feliz, ainda que só por um instante.
Dentro das caixas-pretas
O que resta de vida após acidentes aéreos em que todos morrem fica dentro das caixas-pretas. No interior desses artefatos permanecem guardados não só os segredos dos fatores desencadeantes dos acidentes, mas, por vezes, o último alento de vida dos passageiros desaparecidos.
As caixas-pretas são, na verdade, peças de horror, último contato antes do não ser. Isso é o que mostra, por exemplo, a gravação dos instantes finais do acidente que roubou a vida do presidente da Polônia, Lech Kaczynski, ocorrida em 10 de abril deste ano. Ao todo morreram 96 pessoas na tragédia ocorrida na cidade russa de Smolensk.
Pessoas conversando na cabine, alarmes de obstáculos terrestres indicando a necessidade de elevar o vôo para evitar colisão, o ruído de uma asa batendo nas copas de árvores e gritos, muitos gritos antecedendo o silêncio total.
Nenhum filme sobre acidentes aéreos jamais reproduzirá o horror absoluto desses gritos. É como se um punhado de vidas fosse condenado à eternidade de uma gravação na qual vozes subitamente despersonalizadas dialogam com o absurdo até renderem-se a um silêncio definitivo e sem explicação.
As caixas-pretas são lições sobre a fragilidade dos homens e as máquinas que eles inventam. Elas são o que a morte nos devolve numa espécie de vingança contra a confiança que temos na vida. Por vezes as caixas-pretas simplesmente desaparecem, não sendo encontradas, e resta apenas a dor por perdas jamais esclarecidas.
Jamais penso em caixas-pretas quando estou num avião. Prefiro a visão do mundo lá do alto, o céu azul, o sorriso das pessoas que parecem pairar sobre as nuvens. Trata-se da vida que se sobrepõe às fatalidades, ainda que em permanentes desafios.
Os “Ulisses” de James Joyce
De vez em quando acontece a aquisição de um livro cuja leitura, devido ao seu alentado volume, vai ficando para depois. A verdade é que livros grandes parecem ser inadaptados à correria da vida atual. Não sei ao certo, mas creio que foi em relação à obra de Balzac que Hemingway afirmou ser extensa demais, supondo que o escritor francês nada mais tivesse a fazer que escrever livros.
No caso do “Ulisses”, do escritor irlandês James Joyce, ao grande número de páginas – 900 – acrescenta-se a reconhecida dificuldade de leitura. “Ulisses” não é obra fácil e se me refiro ao livro no plural “Os Ulisses” é porque existem, em português do Brasil, duas traduções: a de Antônio Houaiss e outra, mais recente, cuja autora é Bernardina da Silveira Pinheiro. Das duas li a de Huaiss; a de Bernardina continua na estante à espera de momento em que eu possa em entregar a ela.
Sobre o trabalho de Houaiss posso dizer que a erudição do tradutor resultou num texto algo empolado, mas ainda assim excelente. Parece que Bernardina adotou linha mais coloquial que, segundo li, aproxima mais o texto traduzido das intenções originais de seu autor.
De todo modo é sempre um grande encanto entrar em contato com a obra de um dos autores mais importantes do século XX, verdadeiro divisor de águas no terreno da literatura. Naturalmente críticos e leitores discordarão ao apontar pelo menos quatro autores mais representativos do modernismo literário, mas sejam quais forem os escolhidos Joyce sempre estará entre eles. O fato é que ele rompeu com os cânones que o precederam, introduzindo na literatura o chamado “fluxo de consciência”. De fato, na narrativa de Joyce privilegia-se o monólogo interior e dá-se mais espaço a aspectos psíquicos que fatores externos.
Em “Ulisses” Joyce associa sua fervilhante imaginação a grande domínio linguístico. Trabalha com tantas variáveis que correria o risco de criar uma massa informe e descontinua demais ao entendimento de seus leitores. Evita que isso aconteça socorrendo-se com a tradição literária, justamente ela a quem seu modo de escrever subverte. Joyce vai buscar na Odisséia a linha mestra de seu texto, se é que se pode falar em linha mestra. De todo modo, as personagens principais de Ulisses - Leopold Bloom, sua esposa Molly Bloom e Stephen Dedalus são paródias das personagens de Homero - Ulisses, Penélope e Telêmaco. A trama de “Ulisses” desenrola-se num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin, cidade natal de Joyce. Como acontece aos homéricos, as personagens de Joyce, passam pelas vicissutudes de suas vidas desencontradas ao longo de dezoito capítulos, cada um deles relacionado com um fato específico da Odisséia de Homero. Mas que não se engane o leitor: trata-se de uma paródia burlesca da Odisséia.
“Ulisses” foi publicado pela primeira vez em 1922, em Paris, pela pequena editora Shakespire and Company. Considerado obsceno, o livro só pode ser publicado eno EUA em 1933, após histórica decisão judicial.
James Joyce (1882-1941), viveu grande parte de sua vida fora da Irlanda, embora suas obras se ambientem em seu país de origem. São de sua autoria o livro de contos “Dublinenses”, o romance “Retrato de um artista quando jovem”, “Ulisses”, e “Finnegans Wake”, seu últmo trabalho. Sobre “Finnegans Wake” pode-se dizer que tem estrutura por demais complexa dado que as técnicas utilizadas em “Ulisses” são levadas a verdadeiro paroxismo.
A breve notícia sobre o “Ulisses” de Joyce num blog não pretende passar por mais que simples lembrança e sugestão de leitura aos interessados em modernismo e literatura. São inúmeros os ensaios e estudos sobre a obra de Joyce. Um deles, em especial, é o escrito pelo crítico norte-americano Edmund Wilson cuja leitura funciona como excelente introdução à obra do escritor irlandês. O ensaio “James Joyce”, de Edmund Wilson, faz parte do livro “O castelo de Axel”, publicado pela Companhia das Letras.
As duas versões de Ulisses podem ser encontradas nas livraraias. A traduzida por Antônio Hoaiss é publicação da Civilização Brasileira ; a tradução de Bernardina Silveira Pinheiro é publicação da Alfaguara Brasil.
Por último, uma licenciosidade: para os amantes da série “24 horas”, cuja ação se passa num único dia, vale lembrar que quase 100 anos antes, James Joyce produziu “Ulisses”, narrativa que começa às 8h da manhã e termina às 2h da madrugada.