Arquivo para julho, 2010
Dinheiro em casa
Nos últimos dias tem-se noticiado que vários candidatos a cargos eletivos declararam guardar dinheiro em casa. O hábito é antigo e cada pessoa guarda o dinheiro onde acha melhor. Há quem prefira ter o dinheiro em casa por simples bronca das abusivas taxas bancárias cobradas no país. Não é preciso dizer que os bancos estão entre os negócios mais lucrativos de que se tem notícia. Quem duvida que dê uma olhada nos tais balanços bancários que, vez ou outra, são publicados. Para algumas pessoas a proximidade com o dinheiro representa segurança, quem sabe até recurso de auto-afirmação. Um grande professor de cirurgia, homem notável e já falecido, confessava que, por ter sido muito pobre, jamais deixava de ter nos bolsos razoáveis somas de dinheiro. Era o jeito dele de se sentir seguro, dizendo-se preparado para qualquer emergência.
Guardar dinheiro em espécie ou valores em casa tem os seus problemas, o principal deles relacionado à segurança. Meu avô morreu antes dos quarenta anos de idade e deixou para o meu pai um alfinete de gravata antigo, cravejado de brilhantes. Essa jóia me foi passada pelo meu pai e eu a mantive em casa até que uma jovem ajudante de serviços caseiros a subtraiu. Como acontece em casos assim, foi impossível provar o roubo e tudo ficou por isso mesmo. Mais que o valor real da jóia tinha ela um significado maior, familiar, insubstituível. Sempre me lembro do alfinete, não como perda de objeto valioso, mas como ligação com a linhagem à qual pertenço.
Sobre guardar dinheiro em casa existem muitas histórias, algumas delas abafadas pelas famílias para encobrir deslizes de alguns de seus membros. Em menino muito me impressionou o caso de um senhor a quem conheci já velho e não mais que remediado, ele que já fora muito rico. Conta-se que ele, homem de muitas posses, a certa altura da vida decidiu vender tudo, aposentando-se. Assim procedendo, amealhou ele vários contos de réis que guardou em sua casa na fazenda onde morava com a mulher. Entretanto, esse senhor foi vitimado pela mudança monetária ocorrida em 1942 quando o cruzeiro passou a ser o padrão monetário, substituindo os réis. Desatendo às normas de substituição do padrão monetário, o senhor não trocou o dinheiro e assim perdeu a sua fortuna.
Quando o conheci, o homem que perdera todo o dinheiro tinha um jeito de olhar por baixo, envergonhado. Passou ele algumas necessidades por ocasião da doença da mulher que logo veio a falecer; ele próprio morreu pouco depois deixando atrás de si uma história de fortuna desaparecida de modo invulgar.
Mas, voltemos aos candidatos e seus dinheiros sob os colchões. Seria interessante uma pesquisa junto a eles para conhecer as razões de guardarem dinheiro em casa. Através dela talvez conseguíssemos um perfil psicológico bastante seguro de cada um, daí que poderíamos votar com mais acerto.
A turma do deixa-disso
A coisa mais perigosa do mundo é a rotina. Tudo o que vira rotineiro corre o risco de se tornar aceitável. É assim que coisas tremendas são incorporadas ao imaginário coletivo, quase assumindo a condição de irreais. Acontecimentos distantes, por mais violentos que sejam, encontram no cidadão resistência de percepção: é com o se o cérebro construísse uma barreira para que situações inaceitáveis não nos abalassem tanto. E, assim, vai-se vivendo.
O Brasil é o país da turma do deixa-disso. Terra de contrastes, assim disse Roger Bastide. O brasileiro é um bom sujeito, sendo que alguns são dados a deslizes de gradações diferentes. Povo alegre, empreendedor, louco por uma festa, carnavalesco, responsável, trabalhador, enfim um verdadeiro poço de contradições marcadas sempre por alguma boa-vontade. Mais: não creio que exista em todo planeta outro povo com tão grande capacidade, senão de perdoar, pelo menos de esquecer. Para isso contribui o acúmulo de notícias ruins contra as quais se estabelece um tipo de catarse perigosamente engajada em conformismo. É assim e pronto. Disso se aproveitam os brasileiros dotados de caráter voltado para a desfaçatez, os que apostam na credibilidade popular. Muitos deles fazem história e chegam a governar.
Um caso típico que se ajusta à perfeição às considerações acima é esse do vazamento de dados fiscais para a confecção de dossiê. Então o secretário da Receita Federal declara a senadores que servidores do órgão por ele chefiado acessaram as declarações de Imposto de Renda de um político adversário do governo. Entretanto, os nomes dos servidores que cometeram tal crime não serão revelados porque existe um prazo para que isso seja feito, prazo esse que justamente se esgotará após a data prevista para as eleições presidenciais.
Você lê uma coisa assim nos jornais e pula para o caderno de esportes: trata-se da referida busca de catarse. É preciso não confundir o mundo real da sua vida pessoal com o mundo imaginário em que vivem as pessoas que praticam e concordam com coisas assim. No fim não vai dar em nada mesmo porque a turma do deixa-disso já está em ação, provavelmente trocando favores para que mais esse caso seja abafado.
O fim de semana vem aí. O serviço de meteorologia afirma que o tempo ruim vai continuar de modo que você ficará em casa, protegendo-se da chuva e do frio. Nessas condições o meu conselho é para que você não leia jornais. Compre um livro de terror, uma daquelas histórias atemorizantes do Stephen King, por exemplo. Uma delas, chamada o ”O cemitério” é ótima sugestão: é terrível, embora bem menos do que se lerá no noticiário dos jornais do fim de semana.
Homero, Shakespeare, Dante, Joyce…
Meu pai tinha o hábito de ler em voz alta para que escutássemos. Ele simplesmente gostava de ler e partilhar com outras pessoas as emoções das narrativas que lia. Tinha ele certa predileção por autores como Dumas, pai e Dumas, filho, mas era Dante que o encantava mais.
Creio que desde cedo a literatura me interessou graças ao hábito de meu pai. Havia sempre uma história pendente, uma trama a terminar de modo que o mundo imaginário fazia parte das nossas vidas quase como se fosse real.
Hoje em dia as crianças em idade escolar são iniciadas nas grandes obras através de adaptações. Trata-se de livros que recontam o original e, assim se acredita, despertam nas crianças futuros leitores. Espera-se, por exemplo, que a leitura da adaptação do Otelo de Shakespeare transfira à criança as primeiras emoções a respeito da maldade de Iago e as faça procurar, mais tarde, pela obra original. Por essa via busca-se o estabelecimento da atividade cultural; sinceramente não sei se é possível mensurar os resultados posteriores dessa prática.
De todo modo o fato é que hoje em dia pouco se lêem autores fundamentais como Homero e Shakespeare. Fazem eles parte de um contingente de escritores que podem ser reconhecidos como desengajados das circunstâncias de momento. Explico-me: a obra de Shakespeare é de tal modo monumental que independe das circunstâncias do momento em que é lida. Shakespeare deu voz escrita a personagens que refletem o homem em qualquer época independentemente do modo de ser e ideologias vigentes. Pode-se mesmo dizer que o autor inglês estabeleceu paradigmas eternos e insubstituíveis. Por isso Shakespeare foi, é e sempre será atual, atualíssimo, leitura obrigatória.
Não se pode passar toda uma vida sem ler a “Divina Comédia” de Dante. Pouco importa se Dante se vingou de seus desafetos colocando-os, todos, no inferno. Assim como Shakespeare e alguns outros mestres da literatura, Dante nos encantou pela capacidade de chamar a atenção de seus leitores mesmo quando sua obra é relida por mais de uma vez.
Existe sempre algo de novo a descobrir em Homero, Shakespeare, Dante, Joyce e outros autores de obras imortais. Não se pode olvidá-los dado que atingiram os limites da criação em suas obras, emprestando dimensão maior à rotina de nossos dias
Es lo que hay
Há um tremendo quebra-pau na Argentina em torno da lei para o casamento gay. A presidente Cristina Kishner apóia o casamento gay e convocou ma manifestação popular, no Obelisco, em favor da aprovação; a igreja, representada pelos bispos, protesta contra uma lei que considera não natural e contra os preceitos religiosos. Do outro lado, os favoráveis à lei comparam a ação dos bispos à Inquisição. No meio da tarde saiu a notícia de que o parlamento não deixou passar a lei que já tinha a aprovação do governo.
Mas, o grande assunto é Maradona. Grondona, o todo poderoso presidente da AFA (Associação de Futebol Argentino), deixou nas mãos de Maradona a decisão de afastar-se ou não do cargo de técnico da seleção. A voz pública condena Maradona: pesquisas mostram que a maior parte dos argentinos quer o “Pibe” fora da seleção. Não perdoam ao técnico a desorganização do time que contava com excelentes jogadores, mas foi arrasado pela Alemanha. Há quem diga que muitas pessoas, entre elas Grondona, fizeram Maradona acreditar que é “Deus” e o “Pibe” age como tal.
O fato é que, exceto pelos programas esportivos e notícias em jornais, pouco se fala em futebol em Buenos Aires. Os motoristas de táxi, sempre muito conversadores, falam sobre tudo menos futebol. Os mais politizados falam sobre a onda de frio que atingiu Buenos Aires e a falta de abrigo para os pobres que enfrentam temperaturas muito baixas em plena rua. E comparam a situação dos pobres com os militares que “até campo de golfe têm”.
No mais o tango corre solto nos locais visitados por turistas e nota-se, nos argentinos, certo gosto amargo em relação ao país de que tanto se orgulham. A Argentina vai deixando de ser a de antes embora a bela Buenos Aires resista bravamente e continue encantando aos que a visitam.
As amigas
São duas mulheres, uma loira, outra morena, ambas próximas dos 50 anos. Saem juntas, uma faz companhia à outra. Realizadas, trabalham em lugares diferentes, mas se encontram com muita frequência.
Nada há de errado com essas duas mulheres alegres sempre dispostas a puxar conversa e dividir experiências. Falam um pouco sobre tudo, vez por outra deixam transparecer algo sobre si mesmas, mas, discretas, nada perguntam sobre a vida de seus interlocutores.
É assim que saem pelo mundo, viajando juntas, fazendo amizades ocasionais que não passam de conversas passageiras sem qualquer ato posterior.
O que impressiona nas duas mulheres é a felicidade que demonstram, embora acompanhada de uma pitada de artificialidade resultante, talvez, de assuntos mal resolvidos no passado. Mas é preciso conversar bastante para se detectar leves falhas no discurso delas, falhas que, de repente, expõem o outro lado da alegria.
Foi assim quando conversamos com elas. Houve um instante em que a loira falou sobre o seu celular dizendo que o desligara durante a viagem, livrara-se dele. Ah, sim, antes fizera um telefonema aos seus pais avisando que chegara bem do vôo, mas, depois disso, não mais se comunicara com ninguém. E acrescentou:
- Ah, sim, eu sempre fui muito certinha sabe? Agora a minha filha está morando em outro estado e estou me soltando mais.
É só quando ela diz isso que reparamos nas roupas mais transadas que ela usa, vestimentas que já não combinam tanto com ela. Mas tudo fica bem, segue com está, a conversa continua até que nos despedimos e eu digo à loira as cortesias de sempre finalizadas com a frase “um bom passeio para a senhora”. Ao que ela me olha inquieta e pede que, por favor, não a chame de senhora, mas a essa altura já nos afastamos, talvez nunca mais vejamos essas duas mulheres, elas que são tão alegres e viajam juntas.
Mundo, vasto mundo
Acontece no Irã onde vigora o código islâmico. Uma mulher está condenada à morte. É acusada de trair o marido com o homem que o teria assassinado.
No Irã a infidelidade feminina custa caro. A mulher de 43 anos de idade, mãe de dois filhos, será morta por apedrejamento. O processo de execução tem os seus requintes: a pecadora será enterrada deixando-se para fora apenas o pescoço e a cabeça. Depois disso as pedras serão lançadas. Entretanto, há uma recomendação em relação ao tamanho das pedras: não devem ser grandes porque provocariam morte instantânea; nem pequenas a ponto de não causarem ferimentos. Há que se escolherem pedras que antes de matar causem sofrimento, assim reza a sentença.
O advogado da condenada luta para provar a inocência dela. No mínimo pretende alcançar a mudança do processo e execução: de apedrejamento para enforcamento. Com não conseguiu nada até agora colocou o assunto na internet. Por essa razão várias entidades estão colhendo assinaturas para abrandar o castigo da mulher que se acusa de infidelidade.
Todos esses seres que vagam por aí sobre duas pernas e têm a capacidade de pensar pertencem à mesma espécie, sobre isso não restam dúvidas. Mas, Deus, como são diferentes. O problema talvez seja o tamanho do mundo, grande demais, vasto mundo, vastíssimo.
Coisas de casal
Na fila de embarque os dois discutem. São educados, falam baixo, mas não o suficiente para quequem está muito perto deixe de ouvir. Ele lembra o Ronnie Von, ela se parece com ela mesma. Os dois trafegam por volta de 50 anos de idade e são casados há não se sabe quantos.
A viagem terá a óbvia missão de reaproximá-los. Tarefa difícil para quem se inteira do problema que os separa. Vamos ouvir o Ronnie Von:
- É absurdo! Acredite: isso é obra de hacker. Como pode você receber um email meu com um texto assinado por mulher que se diz minha amante?
A mulher que se parece com ela mesma:
- Eu entendi muito bem.
O Ronnie:
- Veja bem, analise o texto. Não é o meu estilo. Não foi escrito por mim e isso é óbvio porque eu não iria me incriminar caso tivesse uma amante, que aliás nunca tive.
Ela:
- Para mim faz muito sentido. Tal é a intimidade entre vocês dois que ela tem acesso ao seu notebook.
O Ronnie:
- Pra começar só eu tenho a senha do meu email. Nada é automático no meu notebook. Ninguém mexe nele. Você que é minha mulher não sabe a senha, quem então saberá?
A mulher que parece com ela mesma:
-Ela, a sua amante. Escute: homem é trouxa. Apaixona-se e abre tudo para aquela que abre pra ele. Você caiu nessa, quefazer?
A fila anda, os dois continuam no bate-boca. Elegantes, falam baixinho sobre um problema sem solução. Na hora do embarque eu os vejo sentados, um defronte o outro. As expressões faciais são duras, a dela mais resoluta que a dele.
Eu os vejo embarcando e penso que, afinal, talvez tenham sido os hackers que inventaram as mulheres.
Trapaças da sorte
Não será esta a primeira, nem a última vez em que o assunto é a sorte. É que o problema me incomoda. Vida afora vi gente dando duro, fazendo de tudo sem conseguir sair do lugar. Outros parecem ter nascido bafejados pelos anjos, conquistando posições e situações econômicas privilegiadas sem grande esforço.
No meio termo estão essas pessoas que se preparam muito para um momento feliz e ele acaba acontecendo. Vale para esses a famosa frase de Picasso: “toda vez que a sorte me procurou ela me encontrou trabalhando”.
Existe o acaso favorável? Parece que sim. Trata-se da tal história de estar no lugar certo na hora certa. Muita gente atribui o próprio sucesso a alguma circunstância feliz.
Mas, para que falar sobre isso? Ora, a razão está nos acontecimentos que envolveram uma vendedora. Lembram-se da tragédia ocorrida em Niterói em abril passado? Pois a vendedora morava no morro do Bumba por ocasião do deslizamento: a casa dela foi interditada e perdeu vários amigos. Convenhamos que quem passou por isso tem razão para se perguntar sobre a própria sorte. Você perde casa, perde tudo, que mais?
Entretanto, a sorte reservava, no futuro, uma reviravolta para a vendedora. Pois não é que ela acaba de ganhar 100 mil na loteria? Feliz, a vendedora afirma ser grata a Nossa Senhora Aparecida a quem pediu ajuda após o deslizamento.
Minha avó que já se despediu deste mundo há muito sentenciava:
- Com a sorte não se brinca.
Não se brinca mesmo. A sorte é trapaceira, surpreendente e grosseira porque nos impõe coisas inesperadas. Mas, às vezes consegue ser delicada e amiga, trazendo-nos agradáveis surpresas como essa acontecida com a vendedora de Niterói.
O jeito é sempre estar de bem com a sorte e não provocá-la. E quando uma desgraça vier não se deixar abater: um dos mecanismos utilizados pela sorte, ainda que meio raramente, é o de compensação. Muita gente que anda por aí é capaz de contar boas histórias sobre a compensação. A vendedora de Niterói que o diga.
Ainda a seleção
Estão sendo levantadas as mais variadas hipóteses para explicar a derrota da seleção na Copa do Mundo. É hora de encontrar culpados para que se exorcize o fracasso. Infelizmente o tempo parece passar muito devagar, deixando largos espaços para a curtição. No fundo o que se quer é esquecer, retornar às competições regionais e empolgar-se com a fúria dos clubes. Todo mundo sabe que o melhor remédio para a derrota é uma rápida vitória que distraia a atenção.
Dunga e sua trupe foram demitidos, mas resistem a converterem-se em passado: ainda estão nos noticiários e Dunga exibe aquela sua certeza olímpica de ter feito o seu papel com acerto. Se não deu, não deu. Pena que esse simplismo envolva as esperanças de toda a torcida brasileira.
Das muitas teorias que tenho lido e ouvido sobre a derrota da seleção a que me pareceu mais interessante foi a de um senhor que mora aqui no prédio. Habitualmente carrancudo, nos últimos dias ele tem-se dado o desfrute de sorrisos contidos e alguma fluência no palavreado. De fato, deixou de lado os breves acenos de cabeça para revelar-se torcedor aflito da seleção em busca de uma explicação que o satisfaça em relação ao que denomina “a tragédia da África do Sul”.
Devo reconhecer que a explicação do meu vizinho, se não consistente, é engenhosa. Apela ele para a posição do Brasil no mundo, relacionando-a com o atual insucesso da seleção. Para ele o Brasil sempre foi um país atrasado, subdesenvolvido, daí a energia nacional canalizar-se para setores onde a genética do povo mostrou-se mais favorável. Entre esses setores, o esportivo - em particular o futebol - tornou-se, ao longo dos anos, parte da alma nacional e expressão máxima da nacionalidade. Não por acaso o país converteu-se em pólo exportador de craques e alcançou resultados expressivos em competições internacionais.
A coisa foi bem até que o país começou a romper com o seu calamitoso passado: de subdesenvolvido a emergente, de excluído a membro dos principais grupos econômicos do mundo. Com passos rápidos o Brasil se torna uma potência ainda que internamente persistam as desigualdades etc.
Ocorre que para tudo nesse mundo há um ponto de equilíbrio e a balança pende para um ou outro lado, isso não se pode evitar. Segundo o meu vizinho o peso da melhora do país teve como resultado natural a perda de motivação para outras formas de expressão, entre elas e principalmente o futebol. Já não se precisa das chuteiras para lembrar ao mundo que o Brasil existe. Tal constatação, ainda que subliminarmente, incorporou-se ao modo de ser dos jogadores brasileiros sob cujos ombros já não pesa a responsabilidade de provar que o Brasil existe.
- Por isso aconteceu o fracasso e era natural que assim fosse – decretou o meu vizinho.
No fim perguntei a ele se a sua teoria poderia ser usada para prever o próximo campeão mundial. Ele não pensou para responder:
- O Uruguai.
Tentei ponderar que das equipes que disputarão as partidas semifinais a do Uruguai é a menos provável, porque mais fraca. Disse a ele que, em minha opinião, a Alemanha está jogando muito, daí reunir condições para vencer a Copa do Mundo. Ao que ele respondeu:
- Você está se esquecendo da balança. O Uruguai é o Brasil de ontem. O país precisa da vitória para dizer que existe e isso fará da seleção uruguaia a campeã do mundo.
Não nos dissemos mais nada. Não preciso dizer que acho isso uma loucura, mas não nego que ficarei intrigado se a seleção uruguaia sagrar-se campeã mundial.
Em tempos de flagelados fantasmas
Não adianta: continuamos assombrados pelos fantasmas do futebol. A seleção perdeu e, três dias depois, a mídia escrita não trata de outra coisa. Há, sim, um esforço para retornar às manchetes sobre economia e assuntos políticos. Mas, a coisa anda devagar. Dunga ainda está entranhado nas goelas dos brasileiros, não desce de jeito nenhum, vai ser difícil digeri-lo, tirar a imagem dele da memória.
Agora, mais que nunca, o autoritarismo de Dunga vem à tona e o insucesso é explicado pela política de reclusão dos jogadores, imposta pelo técnico. De repente o escondido Jorginho, o auxiliar de Dunga, é retirado das sombras e se fala sobre a traição dele ao grupo por ter trazido sua família à África do Sul, contrariando tudo o que pregava ao grupo.
Os jogadores da seleção chegaram ao Brasil hoje e não foram bem recebidos. Ninguém entende o descontrole emocional daquele segundo tempo contra a Holanda e pede-se socorro aos psicólogos de plantão: deve existir uma explicação para tanta desgraça ocorrida num lapso de 45 minutos que se eternizam nas nossas memórias.
Querendo fugir dos fantasmas do futebol – por favor, inventem outra coisa para que esqueçamos a Copa – dou de cara com os flagelados fantasmas. Quem são eles? Trata-se de gente que está se aproveitando da tragédia provocada pelas chuvas em Alagoas. De repente, na destruída cidade de Palmares, aparecem pessoas de outros lugares que se infiltram nos abrigos dos verdadeiros flagelados para compartilhar da ajuda que esses vêm recebendo.
Tempos diabólicos esses, não? Fantasmagóricos mesmo. Seria engraçado não fosse horrível.
Dunga, flagelados fantasmas, ora…