Arquivo para julho, 2010
A mão uruguaia
Pertenço à geração que cresceu achando que o Uruguai foi um dos maiores responsáveis pelo tal complexo de vira-lata dos brasileiros. Os uruguaios estragaram a festa brasileira de 50 na tragédia que ficou conhecida como “Maracanazo”. Nomes como os de Obdulio Varela e Ghiggia, jogadores uruguaios, assombraram os sonhos futebolísticos do Brasil por muito tempo. Meu tio assistiu à final de 50, no Maracanã, e falava de Obdulio como de um super-homem. Mil vezes descreveu o tapa de Obdulio na cara do defensor brasileiro Bigode, coisa que nem mesmo sei se de fato aconteceu. E aquela escapada de Ghiggia pela direita, colocando a bola no fundo das redes do goleiro Barbosa, entrou para a história do Brasil talvez como fato mais impactante que batalhas travadas durante a Guerra do Paraguai.
Depois disso o Brasil venceu duas Copas e aconteceu 70. De repente o timaço brasileiro de 70 teve que se defrontar justamente com o Uruguai, em partida do mata-mata. Rapaz, ninguém dormiu. Não importava que os jogadores de 70 sequer se lembrassem da tragédia de 50: era a alma brasileira que estava contaminada pela derrota anterior e uma espécie de fantasma pairava sobre as cabeças. No fim o Brasil venceu o jogo e, dois jogos depois, sagrou-se campeão mundial.
Fiz as pazes com o Uruguai muito devagar. Creio que o armistício começou quando conheci Montevidéu e pude entender um pouco a natureza daquela gente boa que divide fronteira com o Brasil. E não pude deixar de me apaixonar por um país pequeno, cuja população é de cerca de 3 milhões de habitantes, comparável a algum Estado brasileiro. A partir daí acompanhei com tristeza as dificuldades do Uruguai, os reflexos da ditadura que vigorou no país por muito tempo e o verdadeiro desmanche do futebol uruguaio que levou de roldão equipes tradicionais como o Penãrol e o Nacional. E como não simpatizar com os grandes jogadores uruguaios que fizeram história nos clubes brasileiros? Pedro Rocha, Dario Pereira, Lugano, quem se esquece deles?
Então veio o jogo de ontem entre as seleções de Gana e do Uruguai. Creio que muita gente torceu por Gana, pela África, pelo complexo de miséria que, aliás, não é o caso de Gana. Outros torceram por Gana porque ainda não perdoaram ao Uruguai o feito de 1950. De modo geral, exceto pela solidariedade latino-americana, pode-se dizer que o Uruguai entrou em campo praticamente sozinho para jogar contra Gana. De fato, era visível a torcida pela seleção africana para a qual penderam os povos de língua inglesa, por exemplo.
Pois torci pelas ruas de Montevidéu, por Punta Del Este, pelo pequeno Uruguai que, enfim, recupera seu prestígio diante do mundo. Vi com alegria o renascimento da famosa raça uruguaia, a busca da vitória quando ela já parecia impossível. A mão do jogador Suárez que se levantou para impedir a entrada da bola nas redes uruguaias, no último instante da prorrogação, entra para a história como um dos momentos mais significativos de todas as Copas.
Os noticiários da noite de ontem mostraram a alegria do povo nas ruas de Montevidéu. As imagens funcionaram como bálsamo num dia de tristeza no Brasil cuja seleção foi, em campo, o retrato exato, irretocável, das limitações do homem escolhido para comandá-la.
O grande silêncio
O que há por aí é um grande silêncio. É preciso lembrar que muitas vezes o silêncio fala mais que turbilhões de palavras. O silêncio tem seus meios de se expressar: ele permite a comunicação pelos gestos, pelo olhar, tantas vezes pela simples curvatura do corpo ou um gesto apenas simbólico.
O grande silêncio de hoje começou logo após a derrota da seleção brasileira. No começo deixou-se macular pelo choro, por lágrimas e faces contraídas: o tal silêncio às vezes ruidoso nascido de revolta e inconformismo. Depois, tudo foi se tornando calmo, plácido, como um corpo que já não respira, não se bate, torna-se frio e expressivo dentro de sua profunda falta de expressão.
O silêncio que se abateu hoje sobre a nação foi o de derrota, irmão gêmeo de esperanças falidas, de desejos negados, de sonhos acabados. De tão grande, tão imenso e voraz, o silêncio tornou-se agressivo, asfixiante.
Ele está agora lá fora, nas ruas, no coração dos homens. Traz consigo o significado da decepção, de amores subitamente desfeitos, de sexo interrompido.
Hoje a nação torcedora do Brasil não pode gozar. O coito com a bola foi interrompido por uns caras mal ajambrados, coloridos de laranja extravagante, intrusos que acenderam a luz alaranjada antes da consumação carnal do desejo coletivo.
Foi assim que o Brasil perdeu e a Holanda ganhou. E agora este silêncio, a sensação aguda de algo perdido e irremediável, de colapso de talento, da falta de amor próprio de um povo que parece só ser solidário através de uma bola rolando.
Elano triste
Aí está a foto de Elano, em close, no alto da primeira página. Impossível demonstrar tristeza maior que a desse jogador de repente impedido de jogar por causa de uma contusão.
Não importa o que se diga. Os clichês, “pátria de chuteiras”, “ufanismo verde-amarelo” e “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas” não se confundem com a realidade de um homem isolado cujo drama é não poder jogar.
“A espera de um milagre” deixa de ser título de filme para se transformar nas palavras do médico da seleção: ele garante que só por milagre Elano voltará a jogar nesta Copa.
Não é preciso gostar de Elano, nem aprovar o futebol dele. Não importa se ele é essencial ou não para a seleção. O que vale é essa foto ao acaso, foto de drama que diz mais que todas essas bandeiras do Brasil penduradas por aí, meio sem que se saiba por que, como se estivéssemos vivendo uma enorme festa junina verde-amarela.
A foto nos lembra que de que há um brasileiro sofrendo na África e isso vale mais que muitos discursos e abraços oportunistas. Não importa se Elano está triste porque não pode jogar ou porque não pode defender o Brasil. Na verdade nem mesmo o drama importa: o que vale é essa tristeza na face do homem, exibida a todos nós, fazendo-nos lembrar de que nem tudo é glória, que o mal pode acontecer até mesmo através de um jogador de outra seleção que, de repente, maldosamente arrebenta com a perna de um seu colega de profissão.