2010 agosto at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para agosto, 2010

Lá se vai agosto

escreva o seu comentário

Agosto é o mês do cachorro louco – diz-se. Muita gente não casa em agosto por medo de desgosto. O fato é que o mês que termina é considerado azarento, daí ser ligado, por muita gente, a superstições, simpatias e coisas do ofício esotérico.

Li num site o que o nome agosto foi dado ao oitavo mês pelos romanos que o tinham como azarento. Como se percebe de lá para cá a humanidade não mudou muito. É verdade que no Brasil agosto é sempre lembrado por acontecimentos históricos fatídicos: Getúlio Vargas suicidou-se em agosto de 1954, Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961, Costa e Silva teve um derrame cerebral em agosto de 1969 e Juscelino Kubitscheck faleceu num acidente em agosto de 1976.

Os fatos que acabo de relacionar tiveram, obviamente, grandes repercussões políticas no Brasil. Mas a sina de agosto não é restrita apenas ao país dos brasileiros. De fato, uma rápida pesquisa na internet nos traz casos fatídicos ocorridos no mês de agosto em todo o mundo. Só para lembrar a bomba atômica sobre Hiroshima foi lançada em agosto de 1945, o muro de Berlim começou a ser construído em agosto de 1961 e por aí vai.

Deste agosto vou guardar como acontecimento fatídico a chacina ocorrida no México. Há muitos outros, pungentes, como essa monumental enchente no Paquistão. Ocorre que a chacina mexicana, na qual imigrantes tentavam entrar ilegalmente nos EUA pela fronteira com o México, é dessas coisas que não descem goela abaixo.

De ontem para hoje confirmou-se a existência de dois brasileiros entre os mortos. O corpo de um deles já foi identificado, do outro foram encontrados apenas os documentos. Gente simples, pobre, oriundos de cidadezinha do interior de Minas Gerais, jovens que imaginaram tentar a sorte nos EUA, vítimas do sonho americano.

Repórteres das grandes redes de televisão entrevistaram as famílias dos dois jovens. A simplicidade de do lugar onde moram, a pobreza e falas nas quais se destacava empréstimo de para a viagem dos dois e a promessa de que enviariam dinheiro assim que começassem a trabalhar compunham um quadro de enorme tristeza e choro. Aos familiares dos jovens, gente pacata do interior, soava incompreensível que traficantes houvessem matado os rapazes por motivo tão fútil qual seja a recusa de trabalharem para o tráfico.

Quem sabe agosto não seja o mês azarento na proporção em que é considerado. Provavelmente no mundo atual onde acidentes e crueldade são cotidianos, os demais meses se igualem a agosto. Mas, não se pode falar em azar quando o assunto em pauta é a chacina ocorrida no México. Lá o que acontece é um desgoverno, a ruptura do Estado numa região sobre a qual se perdeu o controle. Esse descontrole está expresso no assassinato, nas últimas horas, de um prefeito de cidade próxima ao local onde ocorreu a chacina dos imigrantes. Estava com ele uma filha de 4 anos de idade que foi ferida e encontra-se internada, em estado grave.

Cenas de uma manhã de domingo

escreva o seu comentário

São duas cenas, ambas tendo como palco uma feira-livre. A primeira rola quando um casal chega à feira e passa a andar no corredor entre as barracas. A mulher tem cerca de 30 anos de idade e corpo escultural. Não chega a ser bela, mas os dotes físicos pronunciados através do tipo de roupa que usa se destacam e atraem olhares masculinos.

Passa o casal de mãos dadas e o feirante da barraca de frutas diz:

- Olha, olha… Que mulher! Mulher assim custa muito dinheiro.

Duas senhoras que escolhem frutas olham para ele algo indignadas. Ele se explica:

- Vocês acham que um careca feio desses tem uma mulher assim sendo pobre? Pode apostar, o careca tem dinheiro. Para ter uma mulher dessas o cara precisa dar para ela um cartão de crédito e dizer: pode gastar. Se não for assim ela não fica.

Uma das senhoras diz, não sem uma ponta de irritação:

- Você não acredita no amor. Ela pode muito bem gostar dele, não há dinheiro que segure a relação sem amor.

O feirante toma ares de quem conhece a vida e sentencia:

- Pode escrever, o cara tem muito dinheiro para bancar uma mulher dessas.

A discussão prossegue sem que se chegue a acordo. O dinheiro é confrontado com o amor, sem nenhuma piedade pelos sentimentos. No fim o feirante vai atender outras pessoas e a conversa termina quando um rapaz que trabalha na banca diz a outro:

- Não adianta, mulher bonita acompanhada de homem feio dá nisso. Os homens não aceitam e pronto.

Mais à frente desenrola-se a segunda cena da manhã de domingo. Um japonês conversa com uma senhora, provavelmente sua conhecida, e, de repente, sai-se com essa, falando alto para as pessoas ouvirem:

- É o que eu sempre digo: primeiro a gente come a carne para depois comer os ossos. Estamos casados a 45 anos. Ela é tudo para mim.

A frase intriga as pessoas próximas que observam o japonês sem dizer nada. Em seguida a mulher o japonês, que estava afastada, aproxima-se dele. Ele a envolve com o braço e os dois seguem carinhosamente.

Das muitas formas de se dizer que se ama alguém a relação entre comer carne e ossos é, de fato, inusitada. Mas, como entrar numa história de 45 anos de casados, nos diferentes modos com que as pessoas se declaram a outras segundo a capacidade de entendimento que desenvolveram entre si ao longo de toda uma vida?

Em relação à primeira cena duas coisas precisam ser ditas: aquele a que o feirante alcunhou de “careca” não era um sujeito feio; vale lembrar a letra do samba que diz, taxativamente, que é dos carecas que elas gostam mais.

Notícias terríveis

escreva o seu comentário

Que coisa! Há notícias que o melhor é não tomar conhecimento delas. De dias para cá dois assuntos ocuparam espaço na mídia, ambos traumáticos. O primeiro é o caso de mineiros chilenos presos em uma mina cujo acesso foi interrompido por um desabamento a 300 metros de profundidade.  São 33 homens que se comunicam com a superfície por um tubo pelo qual recebem água e alimentos. Eles ainda não sabem que só poderão sair do local após quatro meses, tempo necessário para uma máquina cavar um túnel pelo qual possam retornar com segurança.

Os jornais de ontem estamparam fotos 3X4 dos 33 mineiros.  Os retratos nos fazem mais íntimos desses homens antes sem face e considerados em bloco. Ali estão os seres humanos presos a 700 metros de profundidade, numa situação que dará margem a muitas narrativas posteriores. Não há como não se irmanar aos mineiros, não imaginar as agruras da situação em que se encontram e o longo tempo que resta para que retornem à superfície. Nesta manhã foi divulgado um vídeo no qual os mineiros aparecem sem camisa e aparentemente bem. Entretanto, uma longa espera os aguarda.

O segundo caso é a terrível chacina ocorrida no México quando 72 pessoas foram barbaramente assassinadas por traficantes de drogas. De várias nacionalidades, as pessoas assassinadas pretendiam entrar ilegalmente nos EUA, através da fronteira mexicana, auxiliadas pelos coiotes. O processo é bastante conhecido assim como a história dos imigrantes ilegais que visam tentar a sorte e melhores condições de vida em solo norte-americano. No momento está sendo realizada a autópsia dos cadáveres e a identificação deles.

A dimensão da barbárie ocorrida no México incomoda. Ela talvez comova mais que a notícia de uma bomba que explodiu no Iraque e matou mais de 50 pessoas. Isso porque as mortes no Iraque, embora horríveis e inaceitáveis, não têm o caráter de chacina.  O que se passou no México é algo que expõe a pior face do ser humano, a condição animalesca de que tanto procuramos nos afastar. A frieza de bandidos que mataram pessoas que se recusaram a trabalhar para  o tráfico ofende a própria natureza do homem e nos coloca diante de um espelho no qual se refletem os descaminhos da civilização, a subversão da ordem e a falência dos Estados. De repente é com se alguns liames que sustentam a civilização tivessem se afrouxado, senão rompido. Não foram mortes provocadas por razões ideológicas, diferenças étnicas ou o que quer que seja, também essas injustificáveis. Foram assassinatos em massa, frios, desnecessários, exercício de poder arbitrário e ocasional, bestiais, inaceitáveis, absurdos, desumanos e originalmente medonhos. Os criminosos mataram porque havia que se matar. Enquanto isso, a família de um equatoriano, único sobrevivente à chacina, recebe ameaças do traficante que levou o rapaz ao México.

Estamos habituados às notícias terríveis que nos chegam diariamente. Entretanto, algumas delas nos constrangem mais que outras pelo teor incomum, quando não insólito. Não há como não pensar nos mineiros presos na mina chilena e no tempo que terão que passar lá. A sensação é a de que estamos distanciados de alguns de nós, que algo precisa ser feito para restituí-los mais depressa ao mundo. Já em relação aos marginais mexicanos fica a impressão de que algo deu errado, senão na espécie, na civilização, que temos mentido sobre a verdadeira índole do homem, esse ser que suplantou outros seres e dominou o planeta, embora sujeito a recaídas à condição de bípede caçador.

Pobre língua portuguesa

escreva o seu comentário

Quem trabalha em escolas conhece de perto o descaso das novas gerações em relação à língua portuguesa. O fato é que as novas gerações são, cada vez mais, proprietárias de vocabulário restrito e construções gramaticais erradas. Isso se percebe na fala e, com muito maior intensidade, em textos escritos. Redigir qualquer coisa é um problema! Nem sempre existe falta de imaginação: simplesmente as pessoas não conseguem expressar com coerência aquilo que querem dizer.

 Os professores de português conhecem o assunto em profundidade daí que o que se está a dizer não é novidade para ninguém. Por trás da insuficiência geral, a falta de leitura tão importante para o enriquecimento do vocabulário, ordenação de ideias, aquisição de cultura etc.

É pena. Talvez hoje se encontrem cada vez menor número de pessoas que tenham amor às palavras e não as tenham como simples serviçais a seu dispor para comunicação. Não falo da oratória empolada, dos discursos políticos, mas do sabor que o som de certas palavras tem, de construções gramaticais não só corretas como eficientes em termos de expressão e comunicação.

Lembrei-me desse assunto ao topar com um velho livro, o “Pequeno Dicionário de Assuntos Pouco Vulgares”, de autoria de Alfredo de Castro Silveira. Publicado em 1960, por J. Ozon Editor, trata-se de ‘”excertos e garimpagens nos domínios da literatura abrangendo todos os ramos do saber humano”, conforme é explicitado pelo autor.

Castro da Silveira reuniu inúmeras palavras, algumas de muito pouco uso, acompanhadas de seus significados. É assim que aprendemos que o termo certo para identificar algo danoso é “estropício” e não “estrupício” como se diz, palavra essa que tem o significado de “algazarra”. Isso sem falar na diferença de “bacamarte”, que é uma arma de cano curto e “bracamarte”, um tipo de espada curta, ou espadagão, que se brandia com as duas mãos. E inúmeras curiosidades como essa de que “camelô” também pode ser chamado de “bufarinheiro” e “contrabandista” de “entrelopo”.

Os exemplos acima parecerão supérfluos, detalhes para estudiosos ou quem tem paixão pela língua. Que seja. Ainda assim, permanece a necessidade de interação das pessoas com o básico do léxico, com um número mínimo de palavras que permitam a elas expressar-se de modo suficiente a defender seus interesses e exercer as suas cidadanias.

Infelizmente, na prática não assistimos a exemplos dignificantes, bastando ver o verdadeiro show de horrores da atual campanha política em exibição nos horários gratuitos pela televisão. Outro dia vi o Tiririca pedindo aos eleitores para votar no palhaço. Não sei se ele mesmo disse, mas corre que o mote da campanha dele é “Vote no Tiririca, pior não fica”.

Sei lá o que acrescentar a isso.

Acidentes aéreos

escreva o seu comentário

Não com frequência, mas com certa regularidade, os acidentes aéreos continuam acontecendo. Ontem mesmo um avião de fabricação nacional acidentou-se aos pousar na pista, na China, com vítimas fatais e outras em estado grave.

Conheço gente que não entra em avião nem que a vaca tussa. Outros temem os navios. Já ouvi discussões sobre o que seria pior, um avião caindo ou um navio afundando depressa. O fato é que aviões e navios conferem às nossas vidas alguma atemporalidade. Dentro deles experimentamos a sensação de perda de contato com a Terra e, principalmente, de nossa liberdade. Nada mais exemplar que o alto mar ou as grandes alturas para estarmos em situação que nos escapa ao controle e nos faz dependentes das máquinas e homens que as pilotam.

É no vácuo de nossa inação contra ocorrências sobre as quais somos impotentes que se baseia a indústria do cinema para produzir tantos filmes sobre desastres aéreos, sequestros em pleno ar e naufrágios. A técnica consiste em explorar medos latentes dos espectadores que veem a si mesmos nos atores em dificuldades tantas vezes sem remédio. Quem não se lembra das cenas do filme Titanic, aquelas nas quais o navio fica na vertical e as pessoas escorregam em direção aos abismos marinhos? Que pode um homem, a força humana, contra algo terrivelmente maior que escapa totalmente ao seu controle e o faz joguete de uma situação onde a morte é inevitável?

Não sei dizer se chego a ter medo de viagens áreas, mas confesso que elas me preocupam. Recentemente estava num avião e fomos avisados de que enfrentaríamos turbulências. Foi quando uma aeromoça afirmou que turbulências não derrubam aviões. Fiquei mais tranquilo ao ouvir isso, mas será verdade? E quanto às tempestades? Não é que dias atrás um avião caiu porque foi atingido por um raio?

A verdade é que não se pode pensar nisso tudo senão babau viagens. Mas, o que me move a falar sobre esse assunto é a entrevista de uma mãe que perdeu seus dois filhos no grande acidente ocorrido há mais de um ano no aeroporto de Congonhas: ao pousar o avião não conseguiu brecar e chocou-se com um prédio, ocorrendo a morte de todos os passageiros.

Posso dizer que as palavras dessa senhora me colocaram diante da dimensão exata das consequências de acidentes aéreos porque, na verdade, quando eles ocorrem, assiste-se às cenas meio como a algo que nos diz respeito, mas de longe. Fica-se sim constrangido, com pena, mas, ainda que acontecimento muito doloroso, distante.

A mãe que perdeu dois filhos falou sobre uma dor simplesmente inimaginável. Ela descreveu o seu horrível sofrimento ao ver o prédio em chamas, sabendo que os seus filhos queimavam em meio ao enorme desastre.

Não há o que acrescentar a algo assim, exceto rezar para que jamais aconteça com as pessoas a quem amamos. Resta torcer para que sejam tomados cuidados máximos em relação à manutenção de aeronaves e segurança em aeroportos. Isso é o mínimo que se pode fazer num momento em que o tráfego aéreo no país encontra-se em ritmo crescente, com maior número de pessoas fazendo uso de aviões diariamente.

Cérebro Multitarefa

escreva o seu comentário

Neurocientistas estudam o problema da atenção destacando que ela pode ser muito comprometida num mundo multitarefas. Na mira dos cientistas esquecimentos, desatenções, esgotamento etc.

O que me incomoda é essa história de multitarefas. Sabe aquele computador novo que dizem ter um processador mais eficiente, capaz de realizar várias tarefas ao mesmo tempo sem perda de eficiência e velocidade de processamento? Pois é bem assim que me sinto, cobrado em produtividade, quando leio uma reportagem sobre déficits de atenção provocados por excesso de atividades.

Vá lá que hoje em dia as nossas pobres cabeças são submetidas a situações tão variadas que podem confundir. Basta, por exemplo, você acordar de manhã e, antes de sair, ligar o computador para checar os e-mails enquanto na TV são exibidas as notícias do dia. É quando o telefone toca para lembrá-lo de que está atrasado para uma reunião, isso sem falar no seu filho que está de pé ao seu lado, esperando para dizer alguma coisa muito importante sobre a vida dele na escola. Depois de tudo você nem chega a tomar café direito e já está no trânsito, olhando para a telinha do GPS em busca de rotas alternativas.

Você está dirigindo, mas o pensamento está longe, provavelmente dentro da sua pasta de couro onde você colocou várias contas a pagar e documentos que precisam ser entregues no banco onde você tem conta. O dia inteiro promete ser nesse pique, mas é sempre assim, não? Por que seria diferente?

Pronto, você é um cara multitarefa, não tem jeito, essa é a imposição do mundo em que vive, da sua era. Para se distrair você pode pensar que poderia ser pior: se a sua era fosse a mesma em que os dinossauros andavam por aí, não haveria tantos compromissos exceto o de fugir sempre para não ser devorado por algum predador. Você pensa nisso e constata que está esgotado porque só alguém muito cansado se põe a imaginar como seria trocar a vida atual por uma incursão na era mesozóica, em pleno período jurássico dos grandes répteis.

A vida é um problema cheio de variantes e escolhas que exigem muita atenção. O problema é que, no nosso caso, não dá para trocar o processador, fazer um upgrade tornando-nos capazes não só de armazenar mais dados como de processá-los adequadamente. Nascemos com um processador feito de neurônios, vasos sanguíneos e outros tecidos. Esse processador tem limites, se o forçarmos além do que é capaz simplesmente espana. O máximo que podemos fazer por ele é ativá-lo ao máximo para que funcione melhor e possamos dar conta do recado que nos é diariamente imposto.

Conheço uma senhora que tem agora 92 anos. Foi lúcida até meses atrás quando o processador dela passou a dar sinais de estar pifando. De lá para cá ela confunde seres reais com imaginários, vivos com mortos e assim por diante. Fatos passados são trazidos por ela ao presente como se tivessem acabado de acontecer. A realidade e a ficção misturam-se na cabeça dela, eu diria até que docemente. O mais interessante é que no atual estágio ela pode conviver com quem quiser, mesmo com aqueles que morreram há muito tempo e que, de repente, são autorizados a fazer parte da conversa como se estivessem presentes.

Quem a vê tem pena, principalmente lembrando-se dela lúcida e ativa, condição à qual parece que ela não vai retornar. Não sei não. Creio que a pena só existe porque estamos aferrados ao mundo e à ordem das coisas. O discurso interrompido nos incomoda porque não faz parte do código a que estamos acostumados.  Se perguntarmos a um médico ele nos dirá que o processador da nonagenária já deu o que tinha que dar, que a arteriosclerose danificou a irrigação sanguínea do cérebro e coisas assim. É bem possível, na verdade muito certo. Entretanto, quando vejo essa mulher não posso parar de pensar que talvez ela tenha mesmo é conseguido algum upgrade, adquirindo um processador mais potente, mais esperto, que permite a ela fugir da realidade da sua velhice e deixar os problemas e o sofrimento de lado para vagar em outra dimensão, melhor e mais fecunda que aquela da vida apressada e tantas vezes sem sentido que diariamente experimentamos.

Mundo Louco

escreva o seu comentário

Sob o Sol que ilumina o mundo existe muita coisa estranha. Quem anda por aí certamente já se deparou com situações insólitas, algumas delas beirando a insanidade. A fauna humana é vasta, diversificada, sempre capaz de surpreender com atitudes inesperadas. Não creio que alguém discorde disso. Até mesmo as pessoas mais reclusas e que optaram por virar as costas ao cotidiano sabem do potencial humano para o que quer que seja, talvez por isso mesmo limitem contato com seus semelhantes.

A notícia vem do Japão: de uma mulher que se supunha viva e que teria 101 anos foram encontrados os ossos, guardados numa mochila pelo seu próprio filho. Interrogado pela polícia o filho contou que a mãe morrera em 2001, mas na época ele não tinha dinheiro para realizar o enterro. Por essa razão, cortou os ossos e guardou-os numa mochila que foi encontrada no apartamento dele, em Tóquio.

Na notícia divulgada pela BBC Brasil informa-se, ainda, que o filho tem recebido o dinheiro da aposentadoria da mãe acrescido de uma verba de ajuda que no Japão é dada a pessoas centenárias. Mais: esse não é o único caso. Descobriu-se que um idoso que hoje teria 111 anos, morreu há 30, fato escondido pela família, obviamente visando receber a aposentadoria. E suspeita-se que existam muitos outros casos.

Esse é um assunto sobre o qual a gente fica meio sem saber o que dizer. Você lê a notícia e passa a imaginar os detalhes da trama que, para não estender muito, passa pela putrefação do cadáver em casa até se chegar aos ossos partidos e guardados numa mochila. Isso sem deixar de se perguntar por que, afinal, o japonês não deu fim à mochila com os ossos. Amor pela mãe?

Olhe que vivemos num país onde campeiam desde fraudes grosseiras até algumas muito imaginosas. Essa turma que mantêm contas milionárias e ilegais no exterior que o diga; os que colocam dinheiro na cueca ou dentro da meia que se pronunciem. Mas, ossos de mãe em mochila…

Verdade que por aqui se passou o famoso “Crime da mala”, ocorrido em 1928, quando um imigrante italiano assassinou a esposa e despachou o cadáver para a Europa, dentro de uma mala. No porto de Santos um choque provocou a abertura da mala e o cadáver, em avançado estado de putrefação, foi encontrado. Esse crime tem uma versão menos cinematográfica, ocorrida em maio último, quando o cadáver de uma moça desaparecida foi encontrado dentro de uma mala, numa rua do Leblon, Rio de Janeiro.

Em frase muito citada Carlos Drummond de Andrade diz:

Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.

É verdade. Só que existem estranhos mais estranhos que outros.

Não foi para isso que criei o meu filho

escreva o seu comentário

Com essas palavras e chorando muito, uma mãe transmitiu toda a sua agonia aos repórteres que a circundavam. A cena se passou defronte à recepção do Hotel Intercontinental, São Conrado, Rio de Janeiro. Dentro do hotel marginais haviam feito reféns, um deles rapaz de pouco mais de vinte anos de idade, filho da mulher acossada pelos repórteres.

A ação começara pouco antes. Os marginais, traficantes de drogas, voltavam para a favela da Rocinha e deram com a polícia. Durante o tiroteio que se seguiu uma mulher que descia de um táxi foi baleada e morta: depois se soube que ela trabalhava para o tráfico. Pouco depois a mãe pediu ao filho que se rendesse. Tendo ele se negado ela postou-se à frente do hotel, desesperada, aguardando a ação da polícia. Repetia que esse era o seu filho, que apesar de tudo o amava e concluía:

- Sou mãe. Vocês me entendem, não?

Algum tempo depois os marginais se renderam. No meio do grande alívio de hóspedes e funcionários do hotel que passaram a ser abordados pelos repórteres em busca de detalhes da ocorrência, ficou ali a mãe para quem a manhã de sábado fora de todo pungente e, talvez, incompreensível.

Era uma mulher que afirmava trabalhar honestamente e amar ao filho em qualquer circunstância. Algo de muito grande dera errado em seus planos para o filho, por isso chorava tanto.

As cenas do lamentável episódio correram o mundo e entraram nas nossas casas, sem nenhuma cerimônia, como se fossem parte de um filme cujo enredo é conhecido e não nos diz respeito. De estranho e fora do script só a imagem de uma mulher chorando por um filho levado pelo crime, talvez irrecuperável.

Um sujeito teimoso

escreva o seu comentário

Contam que quando ele nasceu já veio à luz de mal com o mundo. Eu que o conheci bem garanto que nunca vi ninguém como ele. Baixinho, robusto sem ser gordo, medíocre ciente da própria mediocridade, agia em conformidade com o seu perfil. Desde sempre foi entrave a tudo, desses que discordam pelo simples exercício de discordar, não interessando a ele ter ou não razão. Agindo assim, ganhou fama de teimoso, aliás, de modo algum imerecida: teimava por profissão, opunha-se a tudo, nisso a essência dele de ser.

Mas não era, não, mau sujeito. Bom conversador, até educado, pertencia ao time dos que não têm time, ou seja, dos que atuam por instinto próprio, jamais coletivo.

Chamava-se Manoel e, a bem dizer, era um cara do contra. Quando se queria alguma coisa dele o melhor era mostrar-se contrário ao que se pretendia, jeito eficaz de fazê-lo executar algo às vezes urgente. Exemplifico: a mãe do Manoel tinha um cinema pequeno, coisa bem simples dotada de velha máquina de projeção e bancos de madeira para assento dos espectadores. Era um cineminha muito pobre e desconjuntado no qual se exibiam películas aos sábados e domingos, em todo caso única diversão de um lugarejo de chão de terra. Nesse cinema acontecia quase sempre do celulóide dos filmes se arrebentar, sendo necessário colá-lo para continuar com a projeção.

Era aí, na ruptura do celulóide, que entrava a figura do Manoel porque só ele sabia como resolver o problema, ligando as partes separadas para fazer a alegria do público que, acostumado a isso, pacientemente aguardava pelo reinício do filme. Pois o que todo mundo sabia é que não se podia pedir ao Manoel que resolvesse o problema. Ao contrário, o que a mãe do baixinho fazia era esperar bem uns dez minutos para, então, falar com ele dizendo que fora bom a fita romper-se, já estava cansada mesmo, o público que fosse embora etc. Então, o Manoel, que era do contra, ia lá e consertava tudo, só para contrariar a mãe. Por essa via fazia-se a alegria dos espectadores que recebiam a graça de poder assistir ao filme inteiro.

Esse Manoel teimoso viveu até a semana passada quando, já muito velho, partiu desta para a melhor. Eu soube da morte dele dias depois e não pude deixar de me lembrar dos meus tempos de menino naquele cinema de fim de mundo, onde assisti aos seriados do Flash Gordon e a muitos filmes em preto-e-branco. Voltaram-me imagens de noites geladas nas quais, às 7h30, um alto-falante repetia tristemente os acordes de uma música orquestrada, aviso inconfundível de que às 8h seria iniciada a sessão do cinema.

Eu pensava nisso, distraído, e ia de pés descalços para o cinema quando vi o Manoel na esquina da casa dele, fumando um cigarro. Ao vê-lo me perguntei se naquela noite, caso o celulóide arrebentasse, ele iria lá para juntar as partes, dando-nos a alegria de ver o filme até o fim. Depois eu me perdi dessas imagens e deixei de ser menino para estar aqui escrevendo sobre o Manoel, ele que morreu e deixou como legado histórias de celulóides partidos, ele que talvez, mesmo morto, tenha se estranhado com o caixão porque essa era a natureza dele, nascido que foi na forja do contra, daí que nada impediria de continuar fiel a si mesmo na hora de sua última despedida.

Adeus Iraque

escreva o seu comentário

Mais de sete anos depois os EUA retiram suas tropas do Iraque e legam à História uma muito mal tecida colcha de retalhos, alguns deles com uma inscrição ilegível, mas que bem poderia ser “não existem bonzinhos quando estão em jogo os interesses nacionais”.

A verdade sobre todos os fatos é que não existe verdade. No grande jogo de interesses as informações são manipuladas e as explicações muitas vezes tecidas sobre enormes farsas, a começar pela razão apresentada pelo governo Bush para invadir o Iraque: colocar fim às armas de destruição que o Iraque estaria desenvolvendo.

Com a humanidade em perigo, nada mais justo que os campeões da democracia tomassem para si a missão de salvar o mundo. Assim foi. Os norte-americanos desembarcaram no Iraque e, rapidamente, desestruturaram o Estado iraquiano, levando o país a um estado de confusão praticamente insolúvel no qual saques e violências não reprimidas tornaram-se norma. A motivação de prender Saddam Husseim, colocar fim à ditadura e devolver o país à democracia foi substituída por um estado de anarquia com conflitos de etnias e sempre muita violência.

Agora os EUA vão-se embora sem ter alcançado os resultados prometidos e, pior que isso, sem encontrar as armas de destruição que, afinal, nunca existiram. A essa altura é impossível prever o que acontecerá ao povo do Iraque daqui por diante. A torcida, obviamente, é para que as coisas se ajustem.

Da malfada Guerra do Iraque restam-nos fatos e imagens que dificilmente serão esquecidas. A derrubada da estátua de Saddam é uma delas, acontecimento seguido pela infeliz cobertura do rosto com uma bandeira dos EUA; os episódios de Abu Ghraib; e as terríveis cenas do enforcamento de Saddam Husseim. Isso sem falar em atentados…

Outra coisa sobre a qual se pode especular, mas não prever, é como o futuro narrará os fatos ocorridos durante a Guerra do Iraque. A impressão é a de que a História não será benigna com as ações do império norte-americano.