Arquivo para agosto, 2010
Começam os debates
A campanha presidencial finalmente alcança o momento em que os candidatos discutem as suas propostas de governo e se apresentam ao eleitorado através da televisão. O que se espera é um aprofundamento das ideias e plataformas de ações a serem empregadas pelos candidatos caso eleitos.
Já há algum tempo o Brasil não tem se notabilizado pelo perfil de seus homens públicos. Não se veem por aí grandes tribunos ou pessoas capazes de entusiasmar o grande público que vota. Desta vez, pode-se dizer que o grupo de candidatos à presidência deixa a desejar. Nenhum deles possui grande magnetismo pessoal que se traduza em imagens convincentes.
Entretanto, tudo isso deixa de ser importante quando o que se requer é competência. Nesse sentido o primeiro debate, transmitido ontem pela televisão, deixou a desejar. Não se viu, nas performances dos candidatos, traços diferenciais determinantes para a opção do eleitor por um ou por outro. Na verdade os candidatos parecem carregar às costas o fardo das ideologias dos partidos a que pertencem, as quais, infelizmente, não são de todo claras e nem sempre diferentes, confundindo-se em muitos aspectos.
Mas, é só um começo. A maior proximidade das eleições e os resultados das pesquisas contribuirão para acirrar os ânimos e revelar as verdadeiras tendências de cada um. É no sufoco que a razão pode ceder lugar às verdadeiras inclinações e revelar capacidades.
Carta de um amigo
Recebi, ontem, carta de amigo que supunha morto. Aqui no prédio colocaram caixas postais nos corredores, em cada andar. Toda semana abro a minha com a estranha chave que me coube: uma peça dourada que mais parece capaz de abrir um sofisticado cofre ou até mesmo um baú esquecido em porão de castelo antigo.
Foi da minha caixa postal que saiu a mensagem que restituiu a vida ao meu amigo. Do envelope pardo, com o meu endereço escrito a mão, saiu uma folha de papel, ligeiramente amassada, na qual li:
Caro amigo
Por alguma razão lembrei-me de você dias atrás. Não foi difícil encontrar o seu endereço que obtive de uma lista de antigos colegas enviada a mim há algum tempo. Não sei dizer com precisão a razão desse meu contato que não espero seja retribuído. Soube que você publica livros, coisa que, sinceramente, tenho por inútil: há muito tempo desisti da cultura por acreditar que o homem atual encontra-se em irreversível involução, nada podendo salvá-lo em seu retorno à condição animalesca. A violência crescente é apenas um dos sinais de involução que a arrogância dos homens insiste em olvidar.
Como disse, tenho me lembrado de você, das discussões que tínhamos em noites inteiras regadas à bebida barata. Ainda hoje me parece que você não tinha razão em alguns pontos, coisa que hoje já não tem nenhuma importância.
Abraço do amigo…
Fernando, assim se chama essa pessoa que não vejo há muito e que tinha por morto. A história que corria sobre ele é que abandonara o cargo de professor numa universidade para tornar-se fazendeiro em pleno sertão. Tempos atrás correu o boato de que teria sido assassinado por um vizinho durante conflito de demarcação de divisa de terras. Na ocasião deplorei que uma das mentes mais brilhantes que conheci tivesse desaparecido de forma brutal e desnecessária.
Mas, felizmente, Fernando está vivo e, pelo jeito, o mesmo de sempre: anotou o endereço no remetente com letra ilegível, mostrando que não quer ser encontrado. A carta foi postada em Manaus, fato que apenas delimita a região onde Fernando circula atualmente.
Gostaria muito de rever o Fernando para que encerrássemos diálogos há tanto interrompidos. Como não sei para onde mandar a resposta escrevo neste blog que talvez ele possa vir a ler -duvido! Entretanto, caso isso aconteça, Fernando, quero que saiba que afinal você estava certo em relação a alguns aspectos que discutimos da última vez, dos quais eu discordava inteiramente. Talvez isso não tenha mesmo a menor importância a essa altura do campeonato, mas o fato é que, Fernando, eu não mudei muito, continuo acreditando em coisas em desuso como a fidelidade às ideias e o descarte a coisas que professei e, mais tarde, descobri estarem erradas.
Matar ou Morrer
Matar ou Morrer é um faroeste de 1952, estrelado por Gary Cooper que recebeu o Oscar de melhor ator pela sua atuação. Do elenco participa a notável Grace Kelly, mais tarde princesa de Mônaco, cuja vida foi precocemente interrompida por acidente automobilístico.
Matar ou Morrer funciona de modo a dividir com o espectador a tensão de um xerife (Gary Cooper), próximo de se aposentar, que não pode escapar a uma situação insólita: exatamente ao meio-dia, chegará à estação de trem um inimigo mortal com o qual terá que de confrontar. O xerife está para se casar com a bela Grace Kelly, mas seu destino poderá mudar quando da chegada do criminoso - que acaba de sair da cadeia e vem acompanhado de dois comparsas. A direção é de Fred Zinnemann a quem se devem outras obras de relevo como O homem que não vendeu a sua alma.
Lembro-me quase sempre desse filme quando, diariamente, vejo, nas páginas de portais da internet, fotografias de lutadores que competem no Ultimate Fighting. A ideia de quem entra no cercado do Ultimate é exatamente a de matar ou morrer. Ali vale praticamente tudo. Diante da selvageria que ronda a barbárie, as proibições não parecem muito relevantes: não valem cabeçadas, enfiar os dedos nos olhos ou na boca do adversário, chutar a cabeça do adversário caído, golpear a virilha, golpear a nuca e umas coisas mais. Quem acha que as regras são suficientes para que a competição seja apenas uma peça esportiva, certamente não se deu ao trabalho de assistir a alguns embates do Ultimate. Reina dentro do ringue o clima das arenas romanas, onde a sedução dos espectadores não prescinde do sangramento dos competidores. É o sangue que confere maior realidade ao sofrimento, à submissão pela força. A diversão consiste em ver homens testados em seus limites de força e técnicas de luta, muitas vezes massacrados pelos adversários.
Não sou contra o Ultimate, mas confesso certo estranhamento com esse tipo de luta. Sempre fui um aficionado do boxe e isso me valeu uma discussão com um amigo que disse não ver diferença entre as lutas do Ultimate e o boxe. Disse-me ele que, em última instância, o boxe também é uma versão de matar ou morrer, afinal o sangue corre solto e as coisas se resolvem na porrada.
Não tive argumentos convincentes contra a argumentação do meu amigo. Daí que passamos a falar sobre cinema e o filme Matar ou Morrer pintou na conversa. Ele discorda, mas imagino que o nível de tensão dos lutadores do Ultimate seja o mesmo que o de Gary Cooper ao esperar o trem. No fim são todos humanos e para eles não difere muito se a vida é jogada numa arena ou numa estação de trem.
As minhas palmadas
Por favor, deixem as minhas palmadas intocadas. Elas vieram das mãos de minha mãe, já falecida. Teve ela, para dá-las, as suas razões, com as quais certamente não concordei ao recebê-las.
É preciso considerar que as mãos de minha mãe traziam, nas palmadas que tão precisamente aplicavam, a tradição e a cultura de tempos pregressos, habilitadas em formar homens. Eram mãos que buscavam não pecar pelo exagero, baseando-se num conceito de justiça certamente elementar, mas eficiente.
Lembro-me que, por ocasião do enterro de minha mãe, no instante em que fecharam o caixão, a última coisa que vi dela foram justamente as suas mãos que, finalmente, repousavam sobre o corpo esquálido, consumido pela longa doença. Mãos imóveis que se despediam do mundo com a certeza de dever cumprido, de tradição repassada, de geração continuada.
Mas, repito, por favor, deixem as minhas palmadas intocadas. Elas me pertencem e constituem-se numa ligação perene com minha mãe e os princípios com que ela me criou, os quais têm norteado a minha vida. Não faço o pedido em vão: acabam de aprovar uma lei proibindo as palmadas. A lei foi assinada pelo próprio presidente da Republica e certamente proposta por gente entendida em educação, com a intenção de coibir tantas violências que se cometem contra crianças.
Não há como discordar da lei que condena as palmadas, afinal lei é lei e o governo deve saber bem o que está fazendo.
Todo mundo sabe que qualquer lei só passa a valer depois de promulgada, daí não ter efeito retroativo. Entretanto, a lei das palmadas me parece uma daquelas estabelecidas para corrigir erros anteriores que não podem continuar acontecendo. Se assim for, pelo menos em conceito, a minha mãe terá agido errado e com isso não posso concordar.
Portanto, ao pedir que deixem as minhas palmadas intocadas, estou cumprindo um dever de cidadão e filho. Solicito, também, um adendo à lei, qual seja o de isentar de erro as milhares de mães brasileiras que, ao longo da história do país, fizeram de tudo para educar as suas proles.
Peço isso pela memória da minha mãe, por aquelas mãos que me abriram tantos caminhos.