Arquivo para outubro, 2010
Criador e criatura
A literatura é rica em casos envolvendo criador e criatura. A relação também se verifica em muitas outras situações como a de atores que interpretam personagens em séries e acabam tendo dificuldade em se livrar deles. Caso famoso é o de Sean Connery que, vida afora, fez o possível para livrar-se de 007, o agente britânico com licença para matar.
Na literatura as relações entre criador e criatura nem sempre são pacíficas. Leitores de contos e romances conhecem narrativas famosas nas quais a criatura volta-se contra o criador, sendo essa situação muito utilizada em filmes.
Felizmente, na vida real os casos de revolta da criatura contra o criador são mais raros. Isso nos permite ponderar se na ficção não existe algum exagero dos escritores em acrescentar muita tensão em situações envolvendo aquele que cria com a sua criação.
A política é pródiga em situações nas quais a herança de um político importante é transmitida a outro sob a forma de prestígio e transferência de votos. Embora nem sempre se possa falar em criador e criatura, também no setor das atividades políticas as coisas nem sempre dão certo. Nas últimas eleições, por exemplo, o senador pelo Ceará, Tasso Jereissati, considerou-se traído pelos irmãos Gomes aos quais introduziu na política; e, para ficar em poucos casos, veja-se o episódio em que Paulo Maluf investiu todo o seu prestígio político em Celso Pitta.
Acaba de ser eleita para a presidência da República aquela que pode ser considerada uma criação do atual presidente. Sem o prestígio político dele ela nem sonharia alcançar o alto cargo que virá a ocupar. Trata-se de pessoa sobre quem pouco se sabe. No geral imagina-se que o atual presidente zele pela pessoa que criou politicamente, senão que a tutele. Ocorre que a presidência da República é um cargo alto demais para que alguém que o ocupe se anule ou o exerça sob tutela. Mais que isso, é lícito supor que ninguém que se torne primeiro mandatário de um país esteja imune às benesses do cargo e o faça com o despojamento sugerido pela transitoriedade. Seria exigir demais. Dirão que tal despojamento aconteceu antes, na Argentina, quando o vitorioso Hector Campora, imediatamente renunciou ao cargo para que Juan Domingo Perón se tornasse presidente da República. Mas, nesse caso, fez-se valer a febre do peronismo, sempre em alta como recentemente se viu por ocasião da morte do ex-presidente Nestor Kichner.
O que acontecerá no Brasil só o tempo dirá. Se a presidente eleita vai ou não, ao final de seu mandato de quatro anos, renunciar ao seu direito de candidatar-se novamente só para agradecer ao homem que a promoveu, não se sabe. Se ela governará segundo as previsões do atual presidente é outra incógnita. Se a futura presidente não se deixará influenciar pelas pressões de correligionários descontentes com o atual presidente, também não se sabe.
São coisas assim que fazem a vida interessante. Quem sabe tudo venha a ocorrer dentro do previsto e acordado. Entretanto, vale lembrar aquele ensinamento de matuto desconfiado qual seja o de que não se dá carta branca a ninguém. Acrescente-se, ainda, que se a presidente eleita não se sair conforme a encomenda e adotar rota própria - o pouco que se sabe do passado dela, indica que isso possa ocorrer – também vai ser curioso, muito curioso, dir-se-ia até instigante.
Horário eleitoral
Trânsito pesado, de vez em quando o motorista da van deixa escapar uma imprecação. São Paulo está cada vez mais terrível, caótica, vai chegar o dia em que haverá um nó insolúvel e tudo vai parar, talvez definitivamente.
Os passageiros viajam quietos. São dois homens que não se conhecem, ambos vão para o aeroporto de onde seguirão para destinos diferentes. O motorista liga o rádio e ouve-se um jornal da manhã que de repente é interrompido pelo horário eleitoral obrigatório. O locutor do jornal radiofônico não se faz de rogado ao anunciar o horário eleitoral: explica aos ouvintes que por determinação superior eles não poderão ouvir as notícias do dia e serão obrigados a participar das campanhas, exceto se desligarem os rádios.
Mal começa a arenga dos partidos antagônicos e o motorista protesta, dizendo que ninguém merece ouvir aquilo, tal e tal. É quando um dos passageiros se irrita e também protesta contra a imposição do governo. Então o motorista aquece a irritação geral com um comentário sobre a Hora do Brasil. A certa altura ele pergunta se alguém ouve a Hora do Brasil e o outro passageiro, um japonês, responde que às vezes ouve.
A partir daí fecha-se o circulo entre os três homens que passam a falar sobre as próximas eleições e o perfil dos candidatos. O japonês entra de sola na conversa, criticando os políticos a quem acusa de incompetência. Então o outro passageiro diz que candidatos a cargos públicos deveriam ser obrigados a fazer um curso no qual seriam explicadas a eles suas atribuições, caso eleitos. Como não poderia deixar de ser o nome de Tiririca vem à baila, afinal um palhaço é um palhaço e não serve para o Congresso. O japonês ouve esse comentário e apressa-se a expor a sua teoria a respeito de candidatos e competência. Ele diz:
- Em primeiro lugar um curso não daria muito certo porque nesse país o professor seria de encomenda, sabe-se lá comprometido com quem. Agora, não vejo a questão do Tiririca pelo prisma que se fala. Para mim o fato de ele ser analfabeto não muda nada. Ele não serve porque é palhaço, essa é a profissão dele e nada mais. O mesmo acontece com artistas, jogadores de futebol, essa gente toda cuja celebridade conquista votos. Então o Gilberto Gil, o Caetanto Veloso e os outros não serviriam porque o que sabem fazer é outra coisa, bem diferente das atividades legislativas. Aqui no Brasil basta um sujeito aparecer e já é considerado intelectual. Veja o Jô Soares que é muito bom no que faz, mas intelectual… As pessoas admiram muito o Jô porque ele fala sobre tudo, mas se esquecem do ponto que ele tem atrás da orelha, do sujeito que sopra no ouvido dele quando há dificuldade em relação a um assunto. A mesma coisa pode-se falar do Paulo Coelho que para mim não é nem nunca vai ser um intelectual. O caso é que estão pegando no pé do Tiririca porque ele não sabe ler, mas o foco está errado, muitos outros sabem ler e escrever, mas simplesmente não servem para o legislativo e muito menos para o executivo.
O outro passageiro fala, concordando com o japonês, acrescenta que é por essas e outras que o Brasil é assim e coisa e tal. A conversa segue até que chegam no aeroporto. Os passageiros se despedem com um aceno de cabeça, por alguns minutos jogaram conversa fora, partem certos de que nada vai mudar, o Brasil é o que é e pronto.
Sob o comando das mulheres
São Paulo é uma cidade enorme, impossível conhecê-la toda. Ruas tortas que desembocam em outras mais tortas ainda, formando uma rede de infinitas possibilidades de caminhos que podem confundir.
Quem me diz isso é um motorista de táxi. Homem na faixa dos quarenta, ele é um sujeito bem humorado que parece gostar da profissão. Erra pelas ruas da grande metrópole, levando pessoas de um lado para outro. Diz que o táxi oferece a oportunidade de travar contato com pessoas, muitas delas interessantes.
A certa altura eu o interrompo e pergunto como ele se vira numa cidade tão grande e a enorme variedade de destinos dos passageiros. Ele ri e diz que com a ajuda do guia, que sempre traz no carro, é capaz de chegar a qualquer lugar. Ao que pergunto se não usa GPS e ele me responde:
- Veja bem senhor: eu já tenho a minha mulher e uma amante; só me falta mais uma mulher dentro do meu carro me dando ordens, mandando que eu vire à direita, à esquerda, prossiga por tantos metros…
Não consigo deixar de rir e digo ao taxista que bem poderiam gravar vozes de homem no GPS. Ele protesta:
- Pelo amor de Deus, só falta ter no carro um marmanjo, isso seria muito pior.
Chegamos ao meu destino, desço do táxi pensando que as mulheres reclamam muito, mas não se dão conta da ditadura que exercem sobre os homens. Veja-se esse taxista embrenhado entre o amor de duas mulheres e fugindo da voz autoritária daquela moça que vive dentro do GPS.
O problema de um papo furado como esse é o que acontece depois. A verdade é que eu não tinha me dado conta do exercício de poder daquela mulher do GPS sobre as minhas decisões. Ela manda em mim sem cerimônia, preciso refletir melhor sobre isso.
Previsões
Morreu o polvo Paul, aquele que acertou resultados de jogos da última Copa. Fica mais pobre o mundo das ciências ocultas que tratam dos fenômenos inexplicáveis.
Esse polvo era sabido. Respeitado por muita gente e contando com simpatizantes em todo o mundo recebeu ele, em contrapartida, duras críticas do atual governante iraniano. De fato, Ahmadinejad classificou o polvo Paul como símbolo do declínio e decadência do Ocidente.
Se o declínio e decadência de um país ou região é medido pelo interesse de seus habitantes pela vidência, então o Ocidente está mesmo perdido e há que se reconhecer que Ahmadinejad tem mesmo razão. Aqui no Brasil, por exemplo, o povo é muito dado à superstição, sendo bastante comum a procura de videntes, tarólogos e toda sorte de intérpretes do futuro. A sorte pode ser lida nas cartas, nos búzios, na palma da mão e por muitos outros meios, para cada um deles existindo especialistas. Além disso, a vidência não é igual para todas as pessoas de modo que certos futurólogos são mais respeitados e bem sucedidos que outros.
Há quem jure que certos videntes são capazes de fazer previsões muito acertadas. Tive um parente, já falecido, que ainda jovem ouviu de um vidente que ficaria rico ganhando na loteria. Nasceu ali, naquele momento, um jogador para a vida inteira. Esse parente veio a tornar-se proprietário de um pequeno negócio cujos lucros aplicava, anos a fio, no jogo do bicho e na compra de bilhetes. Pertinaz, jamais desistiu de seu propósito, mesmo em épocas de vacas magras que, aliás, eram quase permanentes no cotidiano dele.
Nem é preciso dizer que a mulher os filhos do jogador não se conformavam com uma vida difícil resultante da jogatina que consideravam vício. O fato é que vez por outra o meu parente ganhava alguma coisa no bicho, acertava uma centena, nunca o milhar, que dava a ele algum dinheiro, o qual, obviamente, era reaplicado no jogo.
Mas que não se pense mal desse parente já morto há muitos anos. Era um sujeito excelente, vítima talvez de uma sugestão que o impressionou demais e o levou à jogatina desenfreada. Por outro lado, louve-se nele a pertinácia: sempre acreditou que um dia ganharia e jamais desistiu de apostar.
Foi num final de ano. O meu parente jogava há muito tempo e mantinha sua fé inabalável na sorte que um dia viria. E não é que ele foi recompensado? De fato, ele acertou o primeiro prêmio em duas loterias, uma delas a de natal. E a sorte veio por atacado: acertou uma milhar no bicho e ganhou uns prêmios em rifas pequenas que havia comprado.
A história pode parecer inverídica, mas juro que é verdadeira. Existem testemunhas. A coisa foi tão fantástica que não faltaram más línguas para dizer que o sortudo tinha vendido a alma para o diabo e outras coisas desagradáveis. Pura inveja.
Nunca saberemos se os prêmios conquistados tinham ou não ligação com a previsão do vidente. O mais provável é que de tanto arriscar um dia tenha o jogador acertado. Questão de probabilidade. Mas, não se sabe. É a tal coisa, veja-se o caso do defunto polvo Paul, afinal como é que ele conseguia acertar o resultado dos jogos? O que existe por detrás da sorte?
Perigo na cozinha
Durante conversa entre duas mulheres, uma casada há pouco, a outra há vinte anos, o assunto gira em torno dos afazeres de casa. Ambas trabalhando fora elas ponderam sobre dificuldades em manter a casa em ordem, cansaço para preparar o jantar após um dia corrido e outras mazelas que a tradição destina mais às mulheres. Obviamente os maridos entram em pauta, sendo acusados de ajudarem pouco e não reconhecerem o esforço de suas mulheres para fazer do lar um lugar habitável. Ao tal “eles querem camisa limpa, mas não sabem quanto isso custa” emenda-se o comentário de que, entretanto, os coitados fazem o que podem, trabalham tanto, e assim por diante.
A certa altura a mulher mais jovem diz que, entretanto, está numa maré de sorte porque arrumou uma ajudante - leia-se empregada – que não é das melhores, mas preenche bem a maior parte das necessidades. Ela não sabe cozinhar, mas isso não tem tanta importância porque o casal não almoça mesmo em casa e à noite dá-se um jeito com um lanche, quem sabe uma sopa preparada que basta colocar na panela e esquentar. Ao que a mulher mais velha comenta que sorte ter uma ajudante assim, hoje em dia está difícil e há o problema da confiança, de deixar tudo na mão de alguém que afinal não se conhece bem, vejam-se os incontáveis casos em que pessoas subtraem coisas do lugar onde trabalham e simplesmente desaparecem.
A conversa vai bem até que a mulher mais nova diz que, entretanto, vai mandar a ajudante embora. A outra mulher imediatamente protesta, afinal é tão difícil arranjar alguém que faça o serviço e em quem se confie, veja lá o que vai fazer porque pode-se ficar sozinha, afinal por que se despediria alguém que está dando certo?
Segue-se um curto período de silêncio. Percebe-se algum constrangimento da mulher mais jovem em responder à pergunta. Mas ela termina por desabafar:
- O problema é que a fulana é jovem e tem um corpinho muito atraente. Não é bonita, mas tem dois enormes olhos azuis. Agora, o corpinho é de amagar, magra, peituda, bumbum arrebitado e tudo o mais.
- O seu marido?
- Não, nada, até agora, né?
- Isso é um perigo - pondera a mulher mais velha. E acrescenta:
- Ele tem chegado mais cedo em casa?
- Não, não, não que eu saiba. Mas já vi ele dando umas olhadas, disfarçando, claro.
- Então minha filha, como se diz por aí, demorou. Faça o que tem que ser feito e depressa. Homem é homem, sabe como é. Botar mulher vistosa dentro de casa não dá certo.
- Vou fazer isso.
- Faça logo.
No fim da conversa fica-se sabendo que a ajudante é separada, tem um filho pequeno e precisa muito do emprego. Dá pena, mas o casamento vem antes, homem é homem, sabe como é.
Pelé, 70 anos
De vez em quando me ponho a pensar sobre os fatos mais marcantes acontecidos durante o período de minha vida. Um dos primeiros foi o assassinato de John Kennedy, na época em que eu iniciava aquele que então era chamado de curso ginasial. Lembro-me de que fomos dispensados das aulas e saímos da escola com a ideia de que algo muito grande tinha acontecido. Para nós era como se o mundo fosse acabar dado que não fazíamos a menor ideia da proporção, nem mesmo dos reflexos que poderia ter a morte de Kennedy sobre as nossas vidas.
Ainda hoje acho que o impacto sobre nós do assassinato ocorrido em Dallas prende-se mais à gravidade das palavras do diretor da escola quando ele nos comunicou que o mundo corria perigo. Era uma tarde fria e o ginásio estadual em que estudávamos ficava no alto de uma elevação à qual se chegava por ruas íngremes. Suspensas as aulas, descemos por aquelas ruas, uma turba de alunos em silêncio, avisados sobre um acontecimento muito grave e esperando, talvez, pelo pior que poderia acontecer ao mundo.
Outro fato muito marcante ocorreu antes da morte de Kennedy: foi a conquista do Campeonato Mundial, realizado na Suécia, pelo Brasil. Menino, eu ouvia dos meus parentes mais velhos inúmeras histórias sobre o futebol que sempre terminavam com comentários sobre a Copa de 50 quando o Brasil foi derrotado pelo Uruguai em pleno Maracanã. Um primo de meu pai, o Vicente, assistiu ao jogo no estádio, e contava inúmeras histórias sobre o episódio fatídico. Nomes como os de Obdulio Varela Gigghia , carrascos dos brasileiros na vitória uruguaia, eram moeda comum em todas as conversas. Falava-se sobre a desastrosa atuação de Bigode, se o goleiro Barbosa poderia ter evitado o segundo gol uruguaio, a cabeçada de Ademir que bateu na trave uruguaia no último minuto, o erro do técnico Flávio Costa que preferiu levar um parente dele, o Chico, para jogar na ponta-esquerda da seleção, e assim por diante. A essas histórias se juntavam as da Copa de 54 quando o Brasil foi derrotado pelo excepcional selecionado da Hungria, aquele em que jogava Puskas, que no final das contas perdeu a Copa para a Alemanha. Nomes como os de Castilho, Bauer e Humberto, jogadores da seleção de 54, eram sempre citados.
Por fim veio 58, o ano da redenção do futebol brasileiro. Entre outros significados a Copa de 58 serviu para ajudar a vencer, pelo menos em parte, o complexo de inferioridade terceiro-mundista do povo brasileiro. Ganháramos, éramos melhores que os outros em alguma coisa e o país estava indo para frente. Mas, 58 foi também o ano em que Pelé nasceu para o Brasil e para o mundo. De repente, um garoto de 18 anos de idade, sem a menor cerimônia, estraçalhava com os ferrolhos europeus e mostrava que o Brasil tem gente capaz. Os jogos transmitidos pelo rádio pela voz de Pedro Luís e Edson Leite gravaram-se nas memórias como documento e testemunho de uma época em que, inesperadamente, um povo sofrido tornou-se feliz.
Falando sobre fatos marcantes que muito me impressionaram, devo dizer que tive a sorte de viver na época em Pelé jogou futebol. Muitas vezes eu o vi jogar no Pacaembu que, na época, era muito utilizado pelo time dele, o Santos. Seria impossível traduzir em palavras as maravilhas que saíram dos pés de Pelé, certamente um agraciado dos deuses. Note-se que quando se fala de Pelé, no futebol, em geral destacam-se os seus gols, jogadas brilhantes e mesmo exaltam-se os seus dotes físicos invejáveis, certamente propulsores de toda a magia de que ele era capaz. De todo modo era isso e mais que isso porque vê-lo em campo, sua colocação e inteligência nata para o esporte, as previsões de jogadas, enfim o que fazia mesmo quando não estava com a bola, era simplesmente demais.
Ter visto Pelé jogar terá sido um dos prêmios que recebi e levarei desse mundo. Ter sentido a emoção de vê-lo no momento de suas realizações em campo é dessas coisas que não tem preço, fantásticas e insubstituíveis.
Pelé completa 70 anos de idade e recebe homenagens, mais que merecidas, em todo o mundo. Creio não ser demais dizer, em meu nome e da minha geração, muito obrigado Pelé. Você nos deu muita alegria, fez-nos acreditar que tudo é possível. No mais é fechar os olhos e retornar a uma noite de quarta-feira, Pacaembu lotado, e rever Pelé pegar uma bola no meio do campo, avançar driblando, até chegar perto do gol e colocar a bola nas redes. Depois, enquanto o Deus comemora, toda a torcida fica em pé, mesmo a do time adversário, batendo palmas, essas palmas que nunca sairão da minha cabeça, porque magia é para sempre.
A presidência da República
De uma coisa estejam certos: depois que Luís Inácio Lula da Silva ocupou o cargo a presidência da República nunca mais será a mesma. Não foi a presidência que se serviu do funcionário eleito pelo povo para ocupá-la: foi Lula quem se serviu da presidência.
Nos últimos oito anos toda a aura que sempre cercou o cargo de presidente da República foi metodicamente demolida. Lula fez questão de agir fora do esperado, rompendo com a tradição. Nem Fernando Collor de Mello que se apresentava como atleta e dava voltas de jet sky em Brasília chegou perto de Lula em matéria de inovação.
O modo de ser do atual presidente da República evidencia resquícios de revanche. Não se trata de revanche consciente, mas da sublimação do passado pobre e vida difícil.
A incessante comparação de Lula com FHC tem raízes muito mais profundas que o oportunismo eleitoral: ela se fundamenta na necessidade de demonstrar a vitória do trabalhador sobre o intelectual, daquele que ascendeu ao topo vencendo etapas contra o bem nascido. Nada de errado nisso, exceto pelos exageros.
Não há como se esconder o fato de que o presidente arroga-se acima de quase tudo, mais parecendo um agente com licença especial para agir como bem entender. As sessões de leitores dos jornais estão cheias de cartas nas quais se expressa indignação pelas atitudes do presidente. “Até onde ele pretende chegar?”, “chefe de facção”, “estimulador da violência de militantes” e outras caracterizações são comuns, havendo até mesmo entre os seguidores do presidente aqueles que o criticam pelos exageros.
Por outro lado, também não se pode negar que Lula tem sorte. Herdou de seus antecessores, por assim dizer, todos os ingredientes para fazer o bolo. E cumpriu a sua tarefa. Governou num período de calmaria, sem o fantasma da inflação banida, antes dele, com o Plano Real. Seu governo passou muito bem pelas crises mundiais, o país cresceu. Méritos existem e são inegáveis.
Goste-se ou não de Lula, aprove-se ou não a sua conduta, depois dele o conceito que se tem da presidência da República terá mudado irreversivelmente. Se para bem ou para o mal só o futuro dirá.
Censura
Blogueiros uni-vos! O perigo ronda os meios de comunicação e, mais dia, menos dia, pode até mesmo chegar aos blogs.
Viram o que aconteceu no Ceará? Pois a Assembléia Legislativa daquele Estado aprovou, por unanimidade, a criação de um Conselho Estadual de Comunicação Social. Sabem a que virá o tal Conselho? Ele terá como função “orientar, fiscalizar, monitorar e produzir relatórios” sobre as atividades da imprensa local em suas diversas modalidades.
A notícia está no jornal “Folha de São Paulo” de hoje. Segundo afirma o jornal, o conselho baseia-se nas propostas restritivas à liberdade de imprensa, aprovadas pela Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), realizadas pelo governo federal. Fala-se ainda sobre o empenho do governo federal em estimular os Estados para a adoção de medidas iguais às aprovadas no Ceará.
Embora ainda falte o implemento do governador do Ceará está armado o esquema de censura à imprensa. Aliás, como acontece em relação às viroses, periga o esquema espalhar-se por todo o país. Quanto aos blogueiros, se acham que estão imunes à epidemia de censura que ameaça vir é bom prestar atenção à parte do texto aprovado pela Assembléia cearense que fala em atividades da imprensa “em todas as suas modalidades”. Há quem pense que os blogs não fazem parte da imprensa falada e escrita. Será?
Há algum tempo tem sido detectado no país um movimento no sentido de calar a opinião para proteger atitudes escusas. Cinismo e irresponsabilidade fazem parte do discurso de autoridades que acusam de mentirosas mesmo acusações bem fundamentadas. Infelizmente, trata-se de um filme a que já assistimos no passado, perigoso demais e com consequências desastrosas.
Pessoalmente, o que me aflige é a possibilidade de viver mais uma vez segundo as normas de um regime de exceção. Uma vez na vida já é muito, já experimentei, sei bem como é, aliás, os brasileiros sabem muito bem como as coisas se passam quando vigoram a censura e outros comemorativos dos regimes de exceção.
Blogueiros uni-vos!
Mania de fotografia
Não duvide, há sempre alguém com uma máquina fotográfica perto de você. Nem precisa ser uma máquina convencional de vez que um celular simples serve para fotografar e filmar.
Não é a primeira vez que falo sobre o assunto, mas continuo impressionado com o impulso das pessoas fotografarem tudo, cada momento, guardando em bytes uma vasta memória do que veem ao longo de suas vidas. É assim que milhares de fotos são acumuladas sob a ação dos controles automáticos de câmeras que se encarregam do equilíbrio das condições locais: abertura do diafragma, sensibilidade, profundidade de campo, velocidade do obturador, tudo automatizado para que não se perca tempo com ajustes. Acresça-se a isso a capacidade crescente de armazenamento dos dispositivos de memória que permitem guardar gigas e gigas de informação digital.
Brad Pitt brinca com o filho Zahara na grama do Central Park, em Nova York; Hugh Jackman brinca com seus filhos de caçar caranguejos nas pedras; Tom Cruise leva Suri para um passeio na Riviera Francesa. Como sei como disso tudo? Ora, atores famosos brincam com seus filhos e há sempre alguém no encalço deles, flagrando-os na intimidade.
Diariamente os sites de notícias da internet publicam milhares de fotos selecionadas por assunto, disponibilizadas a gosto dos usuários. Basta algo acontecer para, minutos depois, fotos aparecerem no vídeo dos computadores. Atentado no parlamento da Tchetchênia? Aí estão as fotos da polícia dentro do prédio destruído e onde morreram seis pessoas. Dois ursos andam numa rua do Japão? É só olhar para a foto de ursos passeando no centro da cidade de Shari, província japonesa de Hokkaido. Lá estão os animais em meio ao tráfego de carros, circulando livremente antes de serem atingidos por um atirador.
A desmistificação da fotografia é fato concreto e incontrolável. Sites como Orkut são úteis para disponibilizar fotos pessoais e de amigos. O mundo passa a se entender por meio visual, frequentemente em detrimento de palavras. Uma nova ordem de relacionamentos estabeleceu-se, dela derivando o imperativo de “fazer parte de”, “não estar fora de” e assim por diante. Derivam daí as comunidades que se multiplicam como se constata a cada dia.
Mas, o mais interessante é o fato de as pessoas gostarem tanto de serem vistas. Em alguns casos a situação chega ao limite do despudor tal o empenho em se expor, mostrar-se publicamente.
Numa época de despersonalização compulsória e pessoas imersas em multidões sem rosto a fotografia pode funcionar como passaporte de reconhecimento. Mostrar-se publicamente numa foto adquire o significado de estar vivo, destacar-se da multidão, diferenciar-se, conquistar uma espécie de reserva de identidade.
Penso se, afinal, tudo isso não passa de modismo. Há poucos anos não existiam câmeras digitais e as fotos dependiam de filmes e revelação. Inexistiam, também, as comunidades da internet e a própria internet. Em assim sendo não é absurdo imaginar que, com o desenvolvimento da tecnologia, algo novo e ainda desconhecido, talvez outra forma de comunicação, substitua os meios atuais. Mas, isso só saberemos se vier a acontecer.
Quem viver verá.
Velhice e aposentadoria
Por ocasião da realização da última Bienal do Livro, em São Paulo, uma conhecida escritora declarou que a velhice é um horror e acrescentou: eu era tão bonita…
O tempo passa, o tempo voa e a poupança… quase sempre diminui. Num país tropical onde a juventude é muito valorizada as oportunidades no mercado de trabalho encolhem na medida em que se envelhece. O grande problema a enfrentar é a manutenção do padrão de vida a partir do instante em que o envelhecimento reduz ou impede a continuidade do trabalho.
A situação da velhice é complexa em todo o mundo. Agora mesmo assiste-se ao braço de ferro entre o presidente Nicolas Sarkozy e a sociedade francesa. A intenção do governo francês é a de elevar, de 60 para 62 anos, a idade para aposentadoria, medida essa já aprovada pelo parlamento. No Japão pretende-se elevar a idade de aposentadoria de 60 para 65 anos. O significado óbvio dessas medidas é a redução dos gastos do Estado com aposentados.
Enquanto isso, no Brasil, verifica-se aumento da expectativa média de vida. Segundo o IBGE a expectativa de vida no país chegou a 73,1 anos em 2009. Em contrapartida o INSS – órgão que paga as aposentadorias – vem apresentando rombos milionários, devendo chegar a cerca de 45 milhões ao final de 2010.
É nessa hora que se faz necessária muita cautela e a adoção de políticas responsáveis em relação ao problema. Agora mesmo, em plena campanha eleitoral, promete-se um reajuste de 10% para os aposentados. É verdade que a medida é mais que justa, mas como evitar o aumento do rombo?
Há cerca de quinze anos assisti a palestra de um economista que participara de fórum mundial de economia na Europa. Na ocasião ele relatava que o grande tema do fórum fora o envelhecimento da população mundial, havendo preocupação de muitos países que, assim se acreditava, chegariam a uma situação insustentável em algumas décadas. Não se chegou a isso ainda, mas o problema é crescente e de fato muito preocupante dado que a sempre benvinda melhoria da qualidade de vida contribui diretamente para elevação da expectativa de vida.
No Brasil não se pode dizer que tenha existido, até agora, um sistema previdenciário, estatal ou particular, que dê conta do recado. Os mais velhos hão de se lembrar de que há alguns anos surgiram por aí uns montepios que pareciam muito confiáveis. Muita gente aderiu aos montepios que prometiam, após pagamento de mensalidades durante alguns anos, retribuição posterior sob a forma de aposentadoria até a morte do segurado. Como em geral acontece as pessoas entravam no sistema de montepios confiando e sem se dar ao trabalho de fazer direito as contas. Caso fizessem teriam notado que, apesar de toda a manipulação de números apresentada pelos vendedores de montepios, o processo todo seria inexequível. O fato é que os montepios quebraram e o dinheiro despareceu; os segurados que confiavam numa aposentadoria tranquila anos mais tarde, obviamente ficaram a ver navios.
O que tenho ouvido em relação à velhice é muita reclamação. Indisposições frequentes e dores fazem parte do discurso de pessoas idosas, tantas vezes saudosas de seus períodos de força e virilidade. Nos de idade mais avançada percebe-se algum temor, nem sempre da morte em si, mas do modo como a temerária chegará, com ou sem sofrimento.
O pior fica por conta do tratamento que se dá aos idosos. Começa pela linguagem que se usa em relação a eles sobre a qual existem muitas reclamações. Alguns idosos simplesmente abominam essa história de “terceira idade”. O cidadão está na fila para embarque no aeroporto e aí aparece aquela mocinha com cara de não se sabe o quê, dizendo que o embarque será preferencial para pessoas da “melhor idade” etc. Há quem deteste esse tipo de tratamento. E que dizer dos planos de saúde pagos durante muitos anos, quase sempre sem serem usados, que sofrem reajustes muito altos na velhice, justamente quando mais se pode precisar deles? Pela lógica de que mais risco custa mais não passam os muitos anos pagos e sem utilização?
E por aí vai.