Arquivo para outubro, 2010
Intenção de voto
Muita gente se interessa em conhecer a intenção de voto de pessoas próximas. Vez ou outra alguém me pergunta, na boa, em quem pretendo votar no segundo turno para a presidência da República.
Não sei se por irritação, sempre vejo nessas perguntas inocentes intenção mais profunda, como se o meu voto fosse indicador do meu perfil de cidadão ou, ainda, de minhas inclinações ideológicas. No final das contas, caso seja assim, talvez o fato se explique pela polarização que, no momento, acontece nos meios políticos brasileiros.
O interessante é que, a bem da verdade, avaliar o eleitor pela intenção de voto não passa de grande bobagem. Seria preciso existir, por parte dos candidatos, diferenças ideológicas e programáticas muito claras para que o eleitor pudesse votar conscientemente, escolhendo aquele que de fato correspondesse aos seus anseios.
Infelizmente, isso não é o que se verifica no momento quando se assiste a uma verdadeira caça de votos, para isso os candidatos, em maior ou menor grau, comprometendo-se com ações talvez impossíveis caso sejam eleitos. Dentro desse quadro, não há posição ideológica que resista por parte dos candidatos e muito menos de parte dos eleitores. É assim que se passa a um estágio em que se vota mais pelo sentimento do que deveria ser. De fato, cabe ao eleitor a construção de um painel futuro imaginário no qual melhor se insira esse ou aquele candidato de sua preferência, em condições de realizar um bom governo.
É por ver as coisas desse modo que não respondo a perguntas sobre a minha intenção de voto. Não quero e não preciso ser taxado de isso ou aquilo, comprometido com tal e tal política, cego a esse ou aquele escândalo, conivente ou não com a corrupção e outros tantos que tais.
Portanto, não me perguntem mais. A minha confissão será feita apenas no dia da eleição, no momento em que digitar o número do candidato(a) na urna. Estarei a sós com a urna e então poderei expressar o meu contentamento ou descontentamento com o modo como as coisas têm sido feitas etc.
No mais, encareço a alguns fanáticos - que também são meus amigos e prezo tanto - que me desobriguem de uma declaração que, afinal, não serve a muita coisa e não se confundirá, como talvez pensem, com o meu perfil de cidadão.
Então, bons dias a todos esses curiosos de plantão, inclusive aqueles que são responsáveis pelas pesquisas de opinião.
Vassoura em ação
Vá lá, blog talvez não seja lugar para intimidades, mas é domingo e está ventando, daí…
A primeira é que fui a um velório de senhora idosa ali no Cemitério da Freguesia do Ó. Sabe como é velório, há momentos e momentos. Os de tristeza ficam por conta das pessoas mais próximas a quem faleceu; os quase descontraídos resultam do encontro de pessoas conhecidas que não se veem há algum tempo e aproveitam a oportunidade para colocar a curiosidade em dia.
Pois foi após conversar com um sujeito excelente, com quem raramente me encontro, que dei com a placa da prefeitura colocada no prédio do velório por ocasião de sua inauguração. Lá estava, do lado esquerdo e no alto, uma vassoura cunhada em bronze e, ao lado dela, a inscrição: “Vassoura em ação”.
Isso mesmo. A obra, datada de 1985, foi inaugurada pelo então prefeito de São Paulo, Jânio da Silva Quadros. O homem da vassoura esteve ali, naquele lugar, para inaugurar obra pequena, mas deixar a sua marca para a posteridade. Na ocasião era prefeito da cidade pela segunda vez, isso após ter renunciado à presidência da República por razões até hoje misteriosas, dizem as más línguas que ligadas ao consumo excessivo de álcool.
Então me lembrei daquele sujeito muito louco que era o Jânio, amado pelo povo e grande esperança - aliás, fraudada - de todo país. Vieram-me as imagens dele ao assumir a prefeitura, típicas, jogando inseticida na cadeira de prefeito antes de se sentar nela só porque o candidato concorrente, Fernando Henrique Cardoso, tirara foto sentado nela, talvez achando que seria eleito. E a chuteira que Jânio dependurou no seu gabinete para indicar que não mais se candidataria a nada, os famosos bilhetinhos através dos quais passava ordens e governava, a proibição de exibição do filme “A última tentação de Cristo”, do Martin Scorcese, e por aí afora.
De novo em casa, horas mais tarde, assisti pela TV a um documentário sobre os feitos da NASA. A certa altura um astronauta, que fizera reparos na nave, declarou que enquanto trabalhava, em pelo espaço e há cerca de 600 Km daqui, tinha à sua frente a imagem maravilhosa do nosso planeta, em rotação à velocidade de 8 Km por hora - salvo engano da minha memória. Disse ele que, naquele momento, pensou que lá, na Terra, estava tudo que ele tinha aprendido e vivenciado até então e, mais que isso, pode sentir a fragilidade do planeta em que vivemos.
Impressionou-me bastante essa visão de fragilidade. Estando em posição de ver-nos do espaço e tendo atrás de si a imensidão do universo pode o astronauta perceber a pequenez do nosso mundo e, talvez, o quanto nos levamos a sério esquecendo-nos da transitoriedade da vida e da própria civilização.
Eu já tinha entrado nesse papo cabeça de que tudo passa e, como ressaltava Machado de Assis - copiando o Eclesiastes - de que “tudo é vaidade”, quando desliguei a televisão a fui arranjar algo para me distrair.
As imagens que se somam num mesmo dia nem sempre são animadoras: no velório a vida encerrada, na placa de inauguração os ecos de um período político complexo, no documentário o testemunho sobre a fragilidade do planeta que habitamos.
Arre! O negócio é sair dessa, varrer tudo da memória e olhar para frente.
Dia de caça
- Não sei se aquele a quem chamavam Geraldo era certo da bola. A mim me parece que não. Esses tempos todo tenho refletido sobre o caso e sempre chego à mesma conclusão: ele não era certo da bola, não.
A velha diz isso e pega o fósforo para acender o cigarro. No rosto enrugado destacam-se dois olhinhos vívidos e inteligentes. Ela me olha com a cautela necessária diante de estranhos, embora eu tenha vindo recomendado. Talvez simpatize comigo ou simplesmente veja em mim alguém que seja a ela útil e confiável. Demora-se a acender o cigarro. Tenho vontade de puxar conversa, perguntar sobre o número de cigarros que ela fuma por dia, mas me calo. Depois de algum tempo, a velha traga profundamente e solta uma enorme mancha de fumaça que esconde parcialmente o seu rosto. Depois continua:
- Aquele Geraldo era de fato um homem estranho. Alto e loiro, não chegava a ser bonito, mas de todo modo atraente. O senhor veja que para alguém assim, fogoso e na força do homem, uma mulher se faz necessária, sempre. E não consta que até os trinta anos de idade ele tivesse parte com nenhuma mulher. Veja que isso ele próprio proclamava, dizendo que reservava o melhor de si para quando encontrasse aquela a quem dedicaria todo o seu amor.
- Encontrou?
- Ah, sim, demorou, mas encontrou. Era uma bela moça, mais nova do que ele, que veio passar aqui umas férias. Apaixonaram-se e ele reformou a casa do sítio onde morava para que vivessem ali após o casamento. Não nego que formavam um belo casal, muito feliz. Foi assim até que se casaram e partiram para a lua-de-mel. Que, ao que se sabe, não chegou a acontecer.
- Como assim?
- Pois, dois dias depois do casamento ele reapareceu aqui sozinho. Embora a curiosidade geral sobre o fato, ninguém ousou pergunta a ele nada. A mulher com quem ele tinha se casado nunca mais se viu. Ele se tornou taciturno, quieto demais e triste. Mais tarde se soube que ele deixou a mulher por descobrir que ela não era virgem, isso na noite de núpcias. A virgindade fazia parte do código dele, sabe? Uma coisa assim pode não importar a muita gente, mas era regra para ele que havia se conservado para o dia em que se casasse.
A velha apagou o cigarro no cinzeiro, tossiu e me encarou como se olhasse através de mim e recontasse a si mesma uma história que não saia da sua cabeça.
- Acho que foi um ano depois disso que começou a amizade do Geraldo com o meu filho. Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. O Geraldo vinha muito aqui em casa e parecia renovado, alegre como nunca fora. Meu filho, que mais ou menos regulava com a idade dele, prezava-o muito. E assim foi durante muito tempo, até que aconteceu o que o senhor certamente já sabe.
- Sim?
- Na verdade nunca se soube como as coisas se passaram. Certo dia saíram os dois, como de vez em quando faziam, para caçar. Foi lá que o Geraldo matou o meu filho e se suicidou.
Após dizer isso, a velha se cala. O rosto enrugado se contorce num espasmo de dor. Obviamente, ela não aceita as versões que correm sobre o fato e busca explicação razoável para a perda do filho. De minha parte dou-me por satisfeito. Resta-me fazer algumas anotações sobre o caso e nada mais.
Não há mais o que dizer. Despeço-me da velha e saio em direção ao portão. É uma manhã clara e de céu muito azul. No fundo do quintal um canário canta e o som me parece o de uma marcha fúnebre. Quando chego ao portão, ouço a voz da velha:
- Delegado, o senhor vai descobrir o que de fato aconteceu e me dar uma explicação?
Não sei bem o que responder. Geraldo e o filho dela estão mortos, o caso da tragédia ocorrida num dia de caça está encerrado.
Religião e política
Num país de maioria católica o mais esperado é que as crianças convivam, em família, com a prática de religião de seus parentes mais próximos. Se hoje não é assim, se já não é possível generalizar, pode-se afirmar com toda a certeza que era assim. De fato, desde cedo aprendíamos sobre a existência de Deus, ouvíamos as palavras do evangelho e éramos convidados – ou intimados – a participar dos atos litúrgicos da igreja.
Deriva do procedimento anteriormente citado a religiosidade transferida de uma geração a outra, tendo se tornado importante, no país, o crescimento do número de adeptos de outras religiões que não a católica, entre as quais se destaca a verdadeira nação de evangélicos.
Os princípios religiosos recebidos na infância são marcantes. Existem pessoas que nunca os abandonam, jamais deixando de lado as crenças que adotaram; outras mantêm intacta a fé na existência de Deus, mas deixam de lado qualquer tipo de crença; outras, ainda, abandonam a fé se que é que algum dia realmente a tiveram. A muitos desses últimos geralmente acontece romper com a religião pela adoção de ideologias contrárias às doutrinas religiosas. O fato é que a palavra fé tem entre seus sinônimos confiança absoluta mesmo em relação aquilo que não se consegue explicar racionalmente. Por essa razão acontece a pessoas intelectualizadas deixarem de ter fé, não sendo incomum que voltem a tê-la e tornem-se praticantes na velhice. Aconteceu assim a Joaquim Nabuco sobre quem o escritor Graça Aranha afirmou serem “a sociabilidade no princípio e a religiosidade no fim os polos de seu espírito”. Nada de oportunismo, portanto, de adesão de última hora, como sucede àqueles a quem se acusa de adesismo à religião após uma vida de pecados, atitude tomada apenas pelo temor de que o inferno realmente exista.
Faço essas considerações num momento em que a religião é incorporada à pauta da campanha política que elegerá o próximo presidente da República. De fato, a defesa do direito à vida pelos grupos religiosos atingiu nesses dias proporções consideráveis, obrigando os candidatos à presidência a se posicionarem em relação a esse tema e outros de natureza semelhante.
Derivam daí atitudes de políticos atuantes que têm provocado apreensão popular e críticas a partir dos meios de comunicação. Trata-se de uma espécie de adesismo de última hora à religião, no caso da candidata do PT chegando à negação pública de seus posicionamentos anteriores. De repente a necessidade de não perder votos leva a candidata ao paroxismo de assinar carta na qual promete não mudar a legislação brasileira sobre o aborto, caso venha a ser eleita. Note-se que esse posicionamento contraria a conhecida posição da candidata, aliás, confirmada em vídeo que circula no You Tube no qual ela aparece afirmando ser favorável à descriminalização do aborto. Tal atitude tem favorecido o candidato adversário por levantar questões a respeito das verdadeiras convicções da candidata e, mais que isso, sobre como agiria ela ao ocupar cargo de suma importância para o país, qual seja o da presidência da República.
Por outro lado, assiste-se à campanha do PSDB que, obviamente, explora o fato ao valorizar a vida, indicando, claramente, aos eleitores que não se deve votar em alguém de duas caras e assim por diante.
Como já afirmaram alguns analistas não falta cinismo na campanha do segundo turno. Usam-se todos os meios para conquistar o eleitorado, mormente aqueles que tocam o sentimentalismo e a crença das pessoas. Temas de grande interesse público são deixados de lado e o uso indevido do nome de Deus escandaliza.
Volto à infância, às missas nas igrejas do interior, aos sinos que badalam profundamente, como aqueles das igrejas de São João del Rei. Aliás, no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei, repousa Tancredo Neves para quem os sinos certamente tocam e tocarão.
Por quem tocarão os sinos das igrejas do Brasil no futuro, quando estiverem finalmente deitados os que hoje concorrem à presidência e aquele que agora a ocupa?
Certa vez ouvi de um senhor, em Mariana, Minas Gerais, bem ali na casa onde Alphonsus de Guimarães chorava, em versos, o toque do sino da igreja próxima a ele, que os sinos não tocam por qualquer um.
O que dirá, no futuro, a história sobre esta época de tanto cinismo e conservadorismo? Por quem tocarão os sinos?
Do seio da Terra
Nesses dias em que a atenção está voltada para os embates entre as facções políticas que concorrem à presidência da República é com emoção que assistimos ao resgate dos mineiros chilenos, há mais de dois meses soterrados numa mina.
Retornar à superfície depois de passar tanto tempo numa caverna a 700 metros de profundidade representa reviver, recomeçar algo que fora temporariamente perdido. Não houve como conter a emoção quando a cápsula que foi içada por 700 metros dentro de um túnel cavado chegou à superfície e dela emergiu um homem que poderia estar morto caso não fosse estabelecido contato com a superfície ou não se conseguisse construir o túnel.
O resgate foi completado com a viagem do último mineiro à superfície e a saída dos homens que haviam descido para ajudá-los. Em particular, impressionou muito a imagem da última pessoa a deixar o local, a partir daí vazio. Enquanto os repórteres que acompanhavam a saída da cápsula da mina, pela última vez, perguntavam se a luz seria apagada – não foi – experimentou-se a curiosa sensação de despedida de um lugar que faz parte do planeta, mas parece não estar no nosso mundo.
A manhã de hoje prestou-se a todo tipo de especulações. Pergunta-se sobre o futuro dos mineiros e o impacto que terá sobre suas vidas o período de reclusão forçada. Especialistas explicam consequências de natureza psicológica e falam em readaptação. Especula-se sobre a exploração comercial do episódio, produção de filmes, livros, documentários etc. Acima disso tudo fica a lição de solidariedade, pode-se dizer de humanidade. De fato, o mundo acompanhou com emoção e muita tensão cada passo desse resgate em nenhum momento isento da possibilidade de não dar certo. Cada mineiro resgatado representava uma vitória parcial só completada e com grande alívio ao final de todo o processo.
Hoje de manhã comentaristas citavam o episódio da nave Apolo que quase milagrosamente retornou a Terra depois de apresentar defeitos no espaço. Falava-se, também, sobre o submarino russo e os marinheiros que sobreviveram a uma explosão, mas não puderam ser resgatados. Ocorrências dessa natureza, nas quais momentaneamente pessoas ficam à margem de todas as benesses da civilização, são muito impactantes. No caso dos mineiros a reclusão forçada a ambiente isolado e a uma temperatura de cerca de 40º Celsius, afastados de todo e qualquer conforto e tendo como única força o apoio entre si e a esperança, poderia ter sido desastrosa.
Os mineiros estão a salvo e agora começam a surgir as suas histórias. Transformados em heróis não se sabe ao certo o que o futuro a eles reserva. Mas, estamos todos felizes: deu certo, a humanidade fez a sua parte, a solidariedade foi o ponto alto de todo o episódio e podemos nos sentir humanos, muito humanos.
Não se pode dar um pause na vida
A frase acima é de um médico chileno respondendo a perguntas de um repórter sobre o comportamento dos mineiros, soterrados a 700 metros de profundidade, após retornarem à superfície. De uma coisa todos estão certos: as coisas não serão como antes marcados que foram os homens pela reclusão forçada a um ambiente de escuridão, por tempo prolongado. Entre outros cuidados será necessária uma readaptação até mesmo ao ambiente familiar. De todo modo a prolongada reclusão dos 33 homens tem despertado as mais diversas reações e comentários. É do presidente do Chile a observação de que, depois desse episódio, os chilenos não serão os mesmos dado que aprenderam uma lição dura que os uniu e preparou para novos desafios.
A poucas horas do início do resgate dos mineiros – estima-se que o processo deverá durar cerca de 48 horas até que o último mineiro seja resgatado – de nada adiantam especulações técnicas, restando-nos, apenas, torcer para que a operação seja bem sucedida. Enquanto isso não acontece, fica aí a frase do médico. Afinal, não se pode mesmo dar um pause na vida?
No ano passado um belga que se supunha em estado vegetativo pode se comunicar graças a um médico que descobriu não se tratar de estado de coma. O horror da situação fica por conta dos 23 anos em que o homem era capaz de perceber o que acontecia à sua volta sem, contudo, dar qualquer sinal de entendimento. Em 2007 um polonês acordou de um estado de coma que perdurou por 19 anos. Ele retornou a um mundo completamente diferente daquele que havia deixado, presenciando, por exemplo, grandes avanços tecnológicos inexistentes na época em que ficou doente.
Os filmes de ficção científica com alguma frequência utilizam o tema de passagem do tempo, expondo personagens a situações vividas em épocas diferentes. Viagens ao futuro no qual uma guerra nuclear destruiu o mundo que conhecemos têm servido de pano de fundo a muitas tramas, a maioria delas não muito felizes porque inverossímeis demais. Entretanto, deixam em nosso espírito a inquietação ligada à finitude da civilização atual com consequente desaparecimento de toda a cultura acumulada nesses últimos seis mil anos. Nessa linha de raciocínio chega-se aos valores que tanto lutamos por preservar, às identidades individuais e ao próprio significado da vida. Questões ligadas às crenças e a fé também decorrem dessa linha de raciocínio, levando-nos, talvez, ao velho beco sem saída representado pela origem e fim de tudo, vida após a morte e assim por diante.
Como se vê, o isolamento forçado de seres humanos em situação na qual estão no mundo, mas apartados da civilização, se presta a inúmeras divagações. Talvez por isso, o isolamento e o resgate dos mineiros chilenos provoque tanta comoção e não só no Chile. O que passa a existir é a sensação de que representantes da espécie humana foram alijados por fatores naturais do convívio de seus semelhantes daí ser missão universal restituí-los ao mundo em que vivemos. Entre nós e os mineiros estabeleceu-se um laço de solidariedade que ultrapassa todo o sentimentalismo decorrente de fato tão inusitado. Trata-se de algo mais profundo, ligado ao gregarismo da espécie, a um sentido de rebanho capaz de unir os seres humanos em torno de uma mesma causa.
Desta vez nem mesmo o sensacionalismo das coberturas ao vivo das redes de televisão nos roubará a genuína emoção de ver resgatados esses alguns de nós que subirão por aquele fantástico tubo até à superfície. A par de todos os significados – entre eles a exploração subliminar da ascensão das profundezas ao topo – estará a identidade humana, força que torna possível a sociedade em que vivemos e a preserva.
Sentimento nordestino
Das muitas polarizações despertadas pela eleição em segundo turno para a presidência da República, uma é a divisão do Brasil em nação de pobres e ricos, entre nordeste e sudeste, norte e sul e assim por diante. Talvez o modo de ser e a origem do atual presidente da República contribuam para despertar esse tipo de cisão, afinal vive ele se referindo às elites, aos ricos e seus esportes e assim por diante. De todo modo e genericamente o nordeste tendeu a votar com o PT no primeiro turno, o mesmo acontecendo com o sudeste em relação ao PSDB.
Apesar de tudo isso seria demais falar em sentimento nordestino que representaria, talvez, um tipo de revanche de classes menos favorecidas que têm na imagem divulgada do presidente da República o seu maior representante?
Difícil generalizar, até porque o nordeste tem as suas conhecidas oligarquias que, décadas a fio, têm manipulado a opinião de um eleitorado de menor escolaridade. Entretanto, escrevo sobre isso por presenciar em região do nordeste esse sentimento de brasilidade diferente da outros brasileiros.
Ainda em São Paulo ouvi, no aeroporto, a longa conversa de dois nordestinos. Um deles, morando em São Paulo, o outro retornando ao Ceará, seu lugar de origem. Aquele que mora em São Paulo falava ao outro sobre os bairros da cidade onde residem personalidades oriundas do nordeste. Após citar que fulano está em Moema, sicrano nas mansões de Alphaville, etc. o homem concluiu: estamos espalhados na cidade, acho que em todos os bairros. Era como se um representante de outro povo desse a um conterrâneo a visão de uma invasão.
Outro fato que me levou a falar em sentimento nordestino foi notícia publicada no jornal “O Povo”, de Fortaleza, em sua edição de 08 de outubro. A matéria publicada na página 19 versava sobre a eleição de Tiririca e trazia o seguinte título:
- A “palhaçada” que virou assunto sério nas eleições de 2010.
No texto falava-se sobre a expressiva votação de Tiririca e a suspeita de ele não saber ler, nem escrever. A certa altura lia-se o seguinte:
- Especialistas ouvidos pelo O POVO descartam a hipótese de preconceito pelo fato de ele ser nordestino e defendem o cumprimento da lei – que garante o direito de os analfabetos votarem, mas os impede de serem votados.
Ora, convenhamos que a essa altura do campeonato a última coisa que se deveria ser considerada era o fato de que a suspeita de analfabetismo de Tiririca, figura pública e bem sucedida, fosse vinculada ao fato de ele ser nordestino. Entretanto, foi preciso uma pesquisa junto a especialistas para que fosse afastada a possibilidade da origem do novo deputado federal estar ligada a suspeita de analfabetismo.
O Brasil é muito grande e abriga um só povo. Urge acabar com certa visão de inferioridade para que a igualdade plena possa vigorar. Nenhum governo conseguirá isso por decreto: cabe à educação aparar arestas que conduzem a situações como a citada em relação a Tiririca.
É preciso acabar com os preconceitos regionais, caso ainda vigorem.
Professor Bernardo Beiguelman
Tive a honra de ser aluno do Prof. Bernardo Beiguelman ao tempo do meu curso de graduação em medicina. Era o professor Bernardo titular de Genética Médica, matéria em relação à qual desenvolveu inúmeros trabalhos. Geneticista renomado, perfil de cientista, o Prof. Beiguelman idealizou, na década de 60, a criação do departamento de genética médica da Unicamp.
Em Bernardo Beiguelman salientava-se, sobretudo o aspecto humano. Alto e muito claro, sempre com seus óculos de lentes grossas devido à miopia, era um homem alegre que tocava violino e gostava de reunir-se com amigos. Sua relação com alunos pautava-se pelo interesse particular por cada um. Lembro-me muito bem das aulas do Prof. Beigueman e de sua metodologia de ensino. Baseava ele o curso de genética num livro de sua autoria. Cada aula correspondia à abordagem de um capítulo do livro; os estudantes deveriam estudar o capítulo antes da aula e, ao chegarem, eram submetidos a uma prova valendo nota. Depois de realizada a prova seguia-se a aula do Prof. Beiguelman que se estendia sobre assunto previamente estudado pelos alunos. Não havia como não aprender genética.
Certa vez, durante uma aula, alguns alunos mostraram-se desatentos e conversaram entre si. Na ocasião o Prof. Beiguelman interrompeu a aula e disse algo que me marcou para sempre:
- Quero dizer que não estou aqui por acaso. Não cheguei aqui por acaso. Antes de dar aulas em um curso de medicina, lecionei em todos os níveis. Lutei, portanto, para chegar onde atualmente estou.
De fato, não foi por caso que o Prof. Bernardo Beiguelman alcançou a condição de geneticista renomado. Formado em história natural pela USP, doutorou-se me ciências biológicas. Na própria USP tornou-se livre-docente e, durante vinte anos, foi conselheiro da Organização Mundial de Saúde.
A última vez que travei contato com o Prof. Beiguelman foi há alguns anos, por telefone. Estava eu às voltas com um texto de genética de populações e perdia-me em alguns cálculos sobre a frequência de genes na segunda geração. Depois de quebrar bastante a cabeça, procurei e encontrei na lista o telefone do Prof. Bernardo. Quando liguei ele atendeu com sua costumeira bonomia. Lembrava-se de mim, como não? Depois, dizendo que o alegrava muito saber que alguém, num sábado a tarde, andava às voltas com um assunto daqueles passou a me explicar, do começo ao fim, o tema intrincado cuja solução me torturava. Foi uma grande aula aquela.
As últimas notícias que tive do Prof. Beiguelman vieram através de alguns de seus ex-alunos. Falaram-me eles da tristeza do professor pela perda de um filho, delegado de polícia, assassinado anos atrás. Diziam que o professor não se recuperara do infeliz acontecimento.
Na última terça-feira o Prof. Bernardo Beiguelman morreu. Tinha 78 anos e faleceu em consequência de problemas respiratórios. Deixa-nos trajetória de brilho e dedicação, rica em exemplos.
O Nobel de Vargas Lhosa
Mário Vargas Lhosa concedeu entrevista dizendo que não esperava receber o Nobel de Literatura. Chegou a pensar que fosse um trote quando recebeu a notícia pelo telefone. Mas, era verdade, verdade essa que fez justiça a um dos maiores escritores da literatura latino-americana.
De fato é impossível falar sobre a literatura do continente sem referir-se a Vargas Lhosa. Nas últimas décadas o escritor peruano tem-nos premiado com romances, ensaios e artigos que demonstram a excelência de sua veia jornalística.
É sempre difícil escolher entre os muitos livros de um escritor aquele que preferimos. A escolha esbarra em muitos fatores, entre eles a época em que tomamos contato com determinado livro. Certamente a afinidade com um texto que nos diz respeito num determinado momento é preponderante na opinião que dele fazemos. Em assim sendo, penso que, ainda hoje, me parece que “Pantaleão e as Visitadoras” é o livro de Vargas Lhosa que li com maior prazer e mais gosto. Há, sim, “Conversa na Catedral” e “A Guerra do Fim do Mundo” que, entre outros, são excelentes trabalhos. Entretanto a história daquele militar que vai organizar um serviço de visitadoras para atender aos soldados do exército e o faz com tanta correção é para mim o melhor Vargas Lhosa.
Há quantos anos li “Pantaleão e as Visitadoras”? Há mais de vinte, certamente. Entretanto não me esqueci da trama e a cada vez que me lembro dela começo a rir.
Creio que não há para um escritor glória maior que escrever uma história que passe a fazer parte definitiva do imaginário de pelo menos alguns de seus leitores. Mário Vargas Lhosa certamente experimenta esse tipo de glória e não apenas por um único livro. Daí que é mais que merecido o grande prêmio que acaba de ser a ele concedido pela academia de Estocolmo.
Boa notícia a do Nobel de Literatura concedido a Mario Vargas Lhosa. Orgulho para o povo peruano e satisfação para os seus milhares de leitores.
O afastamento de Tasso
Eleição no Brasil não é coisa simples, não. Em primeiro lugar estão os candidatos, fauna variada e capaz de surpreender. Ao lado de gente muito boa, pululam candidatos cuja vitória nas urnas depende da decisão do STF sobre a lei da Ficha Limpa; há os que são favorecidos pelos votos de legenda; os que renunciaram anteriormente para não serem cassados e agora concorreram a novos cargos públicos; o incrível caso do palhaço Tiririca que recebeu mais de 1 milhão de votos, sobre quem paira a suspeita de ser analfabeto; e assim por diante.
O tempo passa e, bem ou mal, algumas caras se renovam na política enquanto outras se afastam. Na eleição de domingo dois grandes caciques regionais não foram reeleitos para o Senado: Marco Maciel e Tasso Jereissati. Maciel recebeu homenagem no Congresso por sua longa carreira política, tendo ocupado, inclusive, a vice-presidência da República. A imagem de Jereissati confunde-se com a de seu estado, o Ceará, onde sempre foi figura proeminente.
De Marco Maciel vi uma foto tirada enquanto discursava no Congresso; já Tasso veio a público no dia seguinte para fazer declaração realmente bombástica: não mais será candidato a cargos públicos. Afasta-se, assim, o grande empresário e político cearense de sua atividade política, embora com a ressalva de que fará de tudo para eleger José Serra presidente. No mais, afirmou, passará a levar uma vida mais tranquila.
Os jornais cearenses trouxeram em manchete de primeira página a desistência de Tasso. Falou-se em fim de uma era. A atitude do político cearense, de todo inesperada, provocou comoção pública, levando seus companheiros de partido a lamentar pelo fato.
O homem que apareceu na televisão para anunciar que não mais se canditará a cargos eletivos era a própria imagem da derrota e ressentimento. Habituado a vencer e contando com o respeito de seus concidadãos, pesou a ele demais a derrota. Uma noite mal dormida e a decepção de quem sempre manteve trajetória de defesa do bem público levaram-no à decisão, certamente apressada.
O fato é que a política é verdadeiro ópio do qual não é fácil se separar. O derrotado de hoje pode ser o vitorioso de amanhã e vice-versa; políticos que se afastaram voltaram a governos carregados pelos braços do povo. Considerando-se fatos da natureza dos citados torna-se justo perguntar se a desistência de Tasso Jereissati é definitiva. Provavelmente ela o é, no íntimo do homem, firme em sua decisão tanto como se espera dele; não o será, entretanto, no animal político que coabita, sob a mesma pele, com o homem.
Na vida dos políticos sempre existe a possibilidade de um chamado ao qual não se pode ignorar. Joaquim Nabuco, monarquista até a raiz dos cabelos, negava-se a servir ao regime republicano: questão de ideologia, de formação, de vergonha, de perfil. Entretanto, quando o país precisou de quem o defendesse em questões internacionais Nabuco não pode se recusar a servir sua pátria.
Por ora fica assim. A ver o que o futuro reserva ao senhor Tasso Jereissati.