2010 novembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para novembro, 2010

Lembrança de carnaval

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Não me lembro do ano, mas que importa? Ela era a Belíssima e destaque do carnaval. Naquele tempo minha mãe me alistara nos Congregados Marianos e eu estava obrigado a seguir as regras da Congregação. Uma delas rezava sobre a devassidão do carnaval e a obrigação de evitar a festança em todas as suas formas. Isso, aliás, foi bem frisado pelo chefe dos Congregados, um caboclo sério e boa gente que respondia pelo nome de João Humberto.

Na semana anterior eu fora chamado à Igreja para confirmar a minha presença no retiro espiritual que ocorreria justamente nos dias da folia. Diante do padre e do João Humberto aleguei compromissos terríveis que me impediriam de participar. Eu ainda não sabia, mas o meu problema é que estava de olho nela, a Belíssima.

Na sexta-feira os congregados partiram para o retiro e os sinos da igreja se calaram. No sábado a folia correu solta: blocos e cordões nas ruas, bailes de salão. A tudo assisti quieto e distante, louco para entrar, mas a minha mãe, o padre, o João Humberto… Sem falar na vergonha da traição aos irmãos que a essa altura estariam meditando e orando pelos pecados do mundo.

Resisti bravamente no domingo. Na segunda-feira, sangue em ebulição, decidi dar uma olhada no baile. Fiquei boa parte da noite do lado de fora, observando de longe as pessoas dançando. Belíssima estava lá, pulando. Vez ou outra ela vinha até a porta para acenar para mim, eu que naquela altura transformara-me em estátua no meio da rua.

Voltei para casa desesperado, não consegui pregar os olhos durante a madrugada. Mas, na manhã da terça-feira gorda, enquanto tomava café, achei que aquilo era demais, estava além das minhas forças. Passei o dia macambúzio, entre a fé e o pecado, entre a cruz e a espada. Até que na noite do último baile fui tomado por frenesi extremo, desses em que o corpo sacoleja por conta própria ao som dos tambores. De todo modo eu era um congregado e o máximo que poderia fazer era dar uma passada perto do salão de baile, olhar de fora e voltar para casa.

Devo ter chegado ao baile perto das onze da noite e fiquei no lugar de costume, olhos compridos na gente que dançava. Como no outro dia, a Belíssima estava lá e, de vez em quando, vinha até a porta para me acenar.

Devo ter resistido até pouco depois da meia-noite. Então uma força maior que eu, poderosíssima, me arrastou para o salão. Sobre o que veio depois não sei direito, mas me lembro de estar sempre ao lado da Belíssima, enfiado com ela nos cordões. Também me lembro de um beijo ao ritmo de uma marchinha cujo som nunca mais me saiu da cabeça.

Não contei nada para a minha mãe. Nos dias seguintes, arrependido pela minha fraqueza, rezei para que ninguém tivesse me visto ou fosse contar aos congregados sobre a minha ida ao baile carnaval.

No domingo fui à missa com minha mãe. Na hora do sermão, igreja cheia, o padre comunicou que eu e outro rapaz, a partir daquela data, estávamos expulsos da Congregação. Quando isso aconteceu, o João Humberto, sempre na primeira fila, voltou-se e cravou os olhos em mim.

Ainda hoje trago esse olhar de reprovação na memória. De minha mãe ficaram as imagens de vergonha pelo filho expulso diante dos demais fiéis e a bronca terrível que veio depois.

A Belíssima? Ora, éramos na época adolescentes e ela, naturalmente, cresceu e tornou-se mulher, não tão bela como seria de se esperar. Anos mais tarde eu a revi e preferiria que não tivesse acontecido porque a nova imagem sobrepôs-se àquela da noite de carnaval, impregnando a antiga de realidade desnecessária.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 novembro, 2010 às 10:40 am

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Receita para a venda de antibióticos

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Começa a vigorar a determinação que obriga o uso de receitas para a compra de antibióticos. Pessoas acostumadas a comprar livremente antibióticos em farmácias a partir de agora deverão, antes, ir a médicos que os prescrevam, caso eles sejam realmente necessários.

O consumo de remédios sem prescrição médica é hábito no Brasil. Pessoas se automedicam a seu bel-prazer ou recebendo indicações de amigos e mesmo de funcionários de farmácias. É assim que uma dor de garganta - muitas vezes simples irritação que pode ser resolvida com gargarejos – é tratada com antibióticos. 

Ouvi pessoas comentando o assunto, uma delas ponderando que a proibição de venda de antibióticos sem receita é armação de convênios e médicos para maiores lucros etc. Pura bobagem. O consumo de antibióticos sem necessidade é um excelente mecanismo de seleção natural de bactérias resistentes. Para que se entenda o que isso significa basta imaginar que no organismo podem ser encontradas diferentes bactérias que competem entre si pela própria sobrevivência. No momento em que antibióticos são utilizados, bactérias não resistentes a eles são destruídas enquanto as resistentes sobrevivem. Note-se que agora as bactérias resistentes não enfrentam a competição das demais e podem proliferar mais facilmente. Essas bactérias passam de uma pessoa a outra o que nos permite concluir que o uso indiscriminado de antibióticos por uma ou várias pessoas contribui, cada vez mais, para o selecionando das piores bactérias. É assim que, com o tempo, surgem as tais superbactérias sobre as quais se tem falado tanto ultimamente. Uma superbactéria é extremamente resistente a vários tipos de antibióticos e sua presença em organismos debilitados pode ser fatal.

A essa altura importa dizer que os antibióticos não induzem as bactérias a se tornarem resistentes. Ao contrário: antibióticos utilizados indiscriminadamente apenas selecionam bactérias resistentes. Exames de laboratório ou indicações médicas de antibióticos para casos de infecções por agentes conhecidos são eficazes e curam.

Enfim, o que importa é que tudo seja feito com critério. Pessoas que se automedicam em geral o fazem de forma errada, correm o risco de ingerir doses inadequadas ou dão por terminado o tratamento assim que os sintomas desaparecem - é preciso lembrar-se de que antibióticos devem seu utilizados em dosagens certas e durante períodos determinados.

Há menos de um mês perdi um amigo que, necessariamente, não devia morrer. Teve ele um AVC cerebral do qual se recuperou rapidamente em hospital. Infelizmente, durante a internação hospitalar, o meu amigo foi infectado por uma bactéria extremamente resistente que provocou a morte dele. Não tenho notícia se o meu amigo foi vitimado pela superbactéria que tem causado tantas mortes em hospitais.

De todo modo, a obrigatoriedade de receita médica para o uso de antibióticos é muito benvinda. As pessoas que discordarem ou acharem que se trata de uma restrição à liberdade de escolha do cidadão devem refletir sobre a importância da medida que, afinal de contas, visa apenas a preservação da saúde das pessoas.

Realidade e ficção no Rio

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As cenas da guerra no Rio são renovadas a cada apresentação dos telejornais. Uma grande cobertura jornalística garante informações atualizadas sobre o combate entre as forças legais e os traficantes. No momento os traficantes estão cercados no Morro do Alemão e tiroteios acontecem. Estima-se em mais de 600 o número de criminosos que controlam, agora, o Morro do Alemão.

Se o leitor prestar atenção ao parágrafo anterior notará que ele poderia ser o início de uma obra de ficção. O autor da obra – conto ou romance – passaria a narrar o cotidiano das pessoas que vivem no Morro, a terrível situação de famílias prensadas pelo poder das milícias, as mortes sem sentido, o problema social e assim por diante. Caso faltasse a ele conhecimento sobre a vida em barracos no Rio, poderia dar uma relida no livro “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, publicado em 1890. Ou os textos de Lima Barreto sobre os bairros pobres do subúrbio:

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforo distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras de paredes de taipa, o bambu, que não é barato. Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas covas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes.

Como se vê, o problema não é de hoje. Não custa lembrar que a Cidade Maravilhosa sempre esteve às voltas com a miséria e a pobreza, tantas vezes descambando para a marginalidade. Quando D. João VI desembarcou no Rio, fugindo das tropas de Junot, trazendo consigo a Corte portuguesa, a cidade nada mais era que um acanhado povoado colonial sem as mínimas condições de receber e hospedar a nobreza de Portugal. Mas, sob D. João VI a cidade, transformada em capital do Império, evoluiu: prédios do governo e um novo teatro foram construídos, transferiu-se a Biblioteca Real de Portugal para a cidade, fundou-se a Imprensa Nacional e o Jardim Botânico. Mais tarde, durante o governo de Pedro II, o conde D’eu, genro do imperador, era atacado pela imprensa, acusado de envolver-se em negociatas e exploração de cortiços.

Anos depois, já em tempos republicanos, durante o governo do presidente Rodrigues Alves (período 1902-1906) a cidade foi modificada. Sob as ordens do prefeito Pereira Passos encetou-se a reforma urbanística que ficou conhecida como “Bota Abaixo”: os cortiços do centro foram destruídos e, em lugar de ruas estreitas e escuras, foram construídos bulevares e novos prédios. A população dos cortiços? Ora, expulsos do centro os moradores de cortiços deslocaram-se para os morros: foi desse modo que surgiram as favelas, custo social da transformação urbanística do Rio.

De lá para cá as favelas só fizeram crescer e muito. Existem favelas que chegam a ter de 400 mil habitantes. Em algumas delas o poder público não pode entrar porque o controle do lugar está nas mãos de um poder paralelo: o tráfico.  É contra essa situação e as ações de marginais que queimam veículos e praticam outros crimes que guerra contra o tráfico está acontecendo.

Pois bem. Nenhuma novidade em tudo o que foi escrito até aqui. Todo mundo sabe o que está acontecendo no Rio e torce para que o poder público vença a batalha contra os criminosos. Mas, imagine que a situação seja resolvida e, dentro de alguns anos, alguém leia esse texto ou outro de conteúdo semelhante. Ao leitor de então poderá parecer que se trata de enredo de alguma obra de ficção. O fato é que as notícias que nos chegam do Rio mais parecem a descrição de cenas de um filme, o qual ,aliás, a mídia tem reproduzido, em alta definição, cena por cena.

Analfabeto funcional

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Confesso que não sabia da existência de analfabetos funcionais ou, pelo menos, o significado dessa designação. Segundo notícia divulgada nos jornais de hoje, analfabeto funcional é um camarada que lê apenas decifrando letras e não interpretando o que foi lido ou que escreve apenas reproduzindo palavras ditadas ou copiadas.

Segundo um promotor o futuro deputado federal Tiririca é analfabeto funcional. Baseia-se ele no parecer de uma fonoaudióloga do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo. A fonoaudióloga esteve presente na audiência em que Tiririca foi submetido a teste de ditado e leitura, ocasião em que o desempenho do futuro deputado realizou-se com dificuldades características de um analfabeto funcional.

Convivi, no interior, com muitas pessoas analfabetas, algumas delas bastante interessantes. No meio em que viviam a leitura nem sempre fazia falta a elas. A simplicidade da teia de relações em que estavam envolvidas fechava-se a contento sem que a leitura fosse necessária. Vez ou outra essas pessoas necessitavam lidar com papéis – os problemas com escrituras eram os mais frequentes. Nessas ocasiões, alguém era encarregado de ler o que estava no papel e as coisas ficavam bem resolvidas.

De minha infância trago a imagem de um homem que, certo dia, bateu à porta da casa de meu pai. Tinha ele recebido uma carta corrente, daquelas cujo texto promete sucesso caso sejam enviadas dez cópias a outras pessoas. Grandes desgraças aconteceriam a quem não as enviasse. Pois o pobre homem, analfabeto e simples como era, ouviu de alguém a leitura do texto da corrente e desesperou-se. De meu pai queria ele que providenciasse cópias feitas na máquina de escrever – nem se falava em Xerox naquela região.

Deu um trabalho danado digitar aquela baboseira. Obviamente, fui o encarregado da missão que veio a contribuir, firmemente, para o meu hábito de digitar com dois dedos. No fim, o homem partiu com as suas dez cópias, feliz e aguardando a sorte grande que o procuraria nos dias seguintes. De resto, estava livre de possíveis desgraças como aquela que roubou a vida a um príncipe, segundo a corrente.

A explicação dada pela fonoaudióloga sobre os analfabetos funcionais veio colocar ponto final numa história que sempre me intrigou. Trata-se de uma jovem que, por grande necessidade de trabalho, matriculou-se numa escola de datilografia. Sonhava ela com bom emprego em escritório, talvez como secretária. O fato é que a moça aprendeu a datilografar, mas nunca conseguiu emprego em que fizesse uso do conhecimento datilográfico adquirido. Para esse fato tinha o irmão dela explicação bastante simples. Dizia ele:

- Não adianta saber datilografar: ela não entende o que lê, nem o que escreve.

Só agora tomo ciência do analfabetismo funcional da moça em questão. Fico pensando no grande número de analfabetos funcionais que andam por aí. Resta saber se eles podem se candidatar a cargos eletivos. Entende o promotor que processou o Tiririca que não. O promotor pede cinco anos de prisão para o Tiririca, segundo ele a merecer a condenação por pratica de falsidade ideológica.

O caso do Dr. Roger

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Saiu a sentença condenatória do médico Roger Abdelmassih, acusado de abusar sexualmente de um grande número de suas pacientes. O crime estarreceu a opinião devido a alta posição social do médico e sua relevância no meio onde atuava. A descrição do modus operandi do médico pelas pacientes que o acusaram é nauseante: aproveitava-se ele, segundo elas, de momentos de torpor induzido por sedativos e anestésicos para abusar delas sexualmente.  Em outras ocasiões forçava suas pacientes a atos libidinosos.

Até ser preso gozava o Dr. Roger de alto conceito, sendo sua clínica referência no tratamento de casos de infertilidade. Com frequência o médico era visto em programas televisivos, chamado a opinar e dar conselhos sobre casos de infertilidade. Foi a esse homem, aparentemente acima de qualquer suspeita, que a juíza Kenarik Boujikian Felippe condenou a 278 anos de reclusão. A sentença é longa e apresenta, detalhadamente, o relato das mulheres vitimadas pela violência do médico.

Não é todo dia que acontece uma coisa assim. Infelizmente, estamos habituados a toda sorte de crimes, veja-se a escalada da violência ora em andamento no Rio de Janeiro. Entretanto, os crimes de que é acusado o Dr. Roger distanciam-se das práticas criminais cotidianamente observadas pelo nível de sordidez a eles implícito. Em primeiro lugar, o acusado é homem de formação superior e terá percorrido todas as esferas de aprimoramento ético exigido pela sua profissão. Além disso, exercia o seu ofício justamente num território onde as intimidades são reveladas e a confiança é mais que essencial. Então, o que aconteceu? Como explicar algo que foge completamente ao esperado e indigna a opinião?

Certamente, o caso do Dr. Roger exige estudos aprofundados de especialistas dispostos a vasculhar a alma humana. Uma simples tara? Uma deformação psíquica que encobre toda a racionalidade? Uma psicopatia clássica com quadro de ausência de sentimentos, falta de remorso, manipulação, egocentrismo e frieza?

Obviamente, o Dr. Roger nega todas as acusações. Em seu favor apresentou depoimentos de pacientes, gratas a ele pela excelência de seus serviços. Pesou contra ele, entretanto, o número de depoimentos de pacientes que se disseram abusadas sexualmente e que se encorajaram para procurar a Justiça. Nesse sentido a sentença da juíza foi taxativa, destacando ela que seria inimaginável para as pacientes que o médico em que depositavam tanta confiança pudesse praticar aqueles atos, beijá-las na boca, “com língua”, ou que ele pudesse passar a mão em seus corpos, e ainda, em alguns casos, praticassem ato libidinoso invasivo (conjunção carnal ou anal).

Há profissões que podem dar àqueles que as praticam eventuais ou duradouras sensações de superioridade ou até de divindade. Situações dessa natureza em geral envolvem a conjunção de temperamentos demasiado egocêntricos com sucesso na prática profissional. Observam-se graus variados desse tipo de distorção, não sendo incomum a observação delas nos mais variados meios. Em relação ao Dr. Roger afirmou a Dra. Kenaric que ele usou de violência contra as vítimas, comprovando-se que o réu está a delinquir de longa data, de forma reiterada, enfrentando as vítimas, com menoscabo à Justiça, assumindo posição de superioridade, de ser inatingível.

É possível que o leitor dessas mal traçadas já tenha cruzado com pessoas cujo perfil apresente componentes ligadas à ideia de superioridade e menoscabo aos seus semelhantes. À falta de ânimo para falar de casos concretos fico com a ficção. O filme “Apocalipse Now”, dirigido por Francis Ford Coppola, é uma adaptação cinematográfica do livro “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad. No filme, um capitão, Willard, recebe ordem para matar um coronel que enlouqueceu nas selvas do Camboja, isso durante a Guerra do Vietnam. O coronel Kurtz é um ídolo dos nativos e ignora as referências de civilização, agindo como se fora um Deus. Em seus domínios reina o sofrimento e a barbaridade. Kurtz é um desses que de repente imagina-se acima dos outros e das regras, comportando-se como se fora inatingível.

O caso do Dr. Roger Abdelmassih inquieta e convida à reflexão.

Emburrados

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Sabe aquele filho que, depois de receber uma bronca, fica num canto, calado e se recusa a comer? Então, esse aí é o cara quem chamamos de emburrado. Para tirá-lo dessa condição só uma nova bronca ou, simplesmente, ignorá-lo.

Mas, existe outro tipo de emburrado, gente que se queima com coisas ou medidas de que não gosta. Está acontecendo agora no Rio de Janeiro: segundo o Secretário de Segurança os traficantes estão praticando crimes como forma de reação à pacificação de favelas e transferência de presos. Estão emburrados: pronto. Tão emburrados que queimam carros, jogam granadas e atiram com armas de grande alcance.

Enquanto os bandidos estão de bico, a população vive o seu cotidiano de incertezas. O cidadão sai de casa de manhã e não sabe se volta. A insegurança é total, absurda, incontrolável. Existe um poder paralelo no Rio que se dá ao desfrute de ficar emburrado e sair por aí cometendo crimes como forma de retaliação.

Meus camaradas, o nome do que está acontecendo no Rio é guerra. Podem colocar panos quentes, dizer que se está conseguindo muito e que o esforço para conter a criminalidade é enorme. Tudo bem. Mas a guerra continua e o Rio, com toda a sua beleza, vai ficando mais para Afeganistão que Brasil.

Nós que amamos tanto o Rio sofremos com isso. Sofre-se de longe pela boa gente carioca que se vê no meio dessa balbúrdia. Crimes terríveis acontecem em nome da supremacia de facções ligadas ao tráfico. Agora, nova componente acrescenta-se a essa triste história: o crime dos emburrados. Pode?

Não sei não, mas a violência explícita perdura há tanto no Rio que é difícil acreditar que um dia a cidade retorne à paz e normalidade. Mas, não custa torcer.

A eternidade dos Beatles

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A discussão sobre a existência da eternidade empolga filósofos e estudiosos de várias áreas. O escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu páginas memoráveis sobre o assunto. Eternidade significa algo que não acaba, que é para sempre. Os que duvidam da existência dela advogam que tudo tem um fim, daí que nada pode ser eterno. As diferentes religiões ligam a eternidade à existência de Deus, criador de todas as coisas – entre elas o tempo – sendo Ele mesmo eterno e tendo-se pronunciado como o princípio e o fim de todas as coisas.

Para alguns a existência da eternidade esbarra na condição de que exista alguém para confirmá-la; nesse caso a testemunha seria necessariamente eterna. Segundo os que pensam desse modo uma eternidade vazia careceria de sentido. Com eles não concordam os que consideram a possibilidade de ocorrência de fatos que simplesmente escapam ao entendimento humano. Referem-se esses últimos a questões insolúveis sobre as quais todo o conhecimento não alcança explicações. A questão da Santíssima Trindade seria um dos enigmas insolúveis para o homem; a eternidade outro.

Dos exegetas que condicionam a existência ao testemunho deriva o fato de que, para homem comum, a duração da eternidade coincide com o período de sua vida. Em outras palavras, para mim é eterno aquilo que dura o tempo em que estou vivo e posso testemunhar. Obviamente, esse modo de ver tem a contrapartida daqueles que ligam a noção de eternidade a algo além da vida, dado que essa é finita.

Em todo caso, o fato é que de nada me adianta algo que durará para sempre sem a minha presença. E se o meu testemunho é fundamental para que algo exista e seja eterno, posso dizer que os Beatles são eternos e que Paul McCartney nada mais faz que confirmar a eternidade deles. E o faz com a precisão e arte necessárias para manter o respeito à obra que ajudou a criar.

Os noticiários falam sobre o virtuosismo de Paul, seu show impecável e insistem na presença de pessoas de várias idades no enorme público que ontem compareceu ao Morumbi. Emoções a parte, trata-se do ciclo da eternidade da música dos Beatles em cada pessoa. Ciclo de maravilhas transcritas num show de inacreditável beleza, comandado por um homem capaz de operar milagres de sensibilidade. Ciclo que permanecerá mesmo depois de Paul, talvez por séculos a fio desde que o som dos Beatles continue a ser ouvido.

Beleza, beleza em estado puro, intemporal, o show de Paul McCartney. Sensação de estar num rio dentro de um barco, com árvores de tangerina e céu de marmelada. Tal como Lucy in the Sky with Diamonds.

A República do Batom

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Senhoras e Senhores, Irmãos de Opa, Membros da Confraria dos Contribuintes do Imposto de Renda, Cidadãos e Cidadãs da Terra Brasilis: está em curso a constituição de uma nova nomenclatura política no Brasil, a começar pela denominação de República do Batom.

Pensando bem, a eleição de uma mulher para o cargo de presidente da República não poderia dar noutra coisa. Nada contra mulheres no poder, pelo amor de Deus. Mas há que se acostumar com novas maneiras de ser porque, queira-se ou não, o chamado sexo frágil acaba de dominar um dos últimos redutos da masculinidade e virilidade nacional.

Fato de tal magnitude obviamente não passa sem novas caracterizações. Uma delas, muito importante, refere-se a mudanças léxicas no modo de expressar opiniões sobre pessoas e situações. Nesse sentido há que se elogiar a nova presidente por ter dado o pontapé inicial: ela nomeou como “três porquinhos” os três coordenadores de sua campanha. O apelido caiu bem dado que os três estão bem gordinhos. Coisa de mulher. Coisa de mulher presidente da República.

O que há de vir depois disso não se sabe, mas é previsível. O presidente do Banco Central, aquele cara dos juros altos, logo, logo vai virar Tio Patinhas. Para a cambada de políticos que vive metida em mensalões, aprovação de obras públicas sem licitação, troca de favores, nepotismo, dinheiro escondido na meia etc, para essa quadrilha toda a comparação com os Irmãos Metralha cairia muito bem. E por aí vai.

Quando da vitória de Dilma o jornal “The Economist” cobrou dela para que não fosse apenas “um Lula com batom”. Pediu demais, mas quem sabe. Em todo caso, seria muito bom se a nova presidente contasse com um pouco da sorte do presidente a quem vai substituir. Nos oito anos em que esteve à frente do governo Lula contou com muita calmaria no cenário internacional e passou bem pela crise que afetou os mercados. Agora fala-se em nova crise global com a quebradeira na Irlanda. Internamente a dívida pública é alta e há que se considerar os perigos das muitas concessões feitas pelo governo atual em várias áreas: elas poderão se constituir num forte percalço à administração da nova presidente.

Mas, que ninguém se preocupe: não se trata de nada que não se resolva com prime, uma boa base, pó fino e natural, blush, rímel e um batom de cor forte, mas que não chegue a ser berrante. O povo gosta e o mais importante é ser feliz.

Quem sabe!

Virginia Woolf

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A revista Time acaba de divulgar a lista das 25 mulheres mais influentes do século XX. A lista é encabeçada por Jane Adams (1860-1935) que lutou pelas causas sociais de trabalhadores e foi a primeira americana a receber o Prêmio Nobel da Paz. Fazem parte do grupo a Madre Tereza de Calcutá (1910-1997), a cantora Madonna (1958-), Coco Chanel (1883-1971), Oprah Winfrey (1954-) e Hillary Clinton (1947-).

Entre as mais influentes também se encontra a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941). Seu livro mais conhecido é Orlando, publicado em 1928, considerado um marco do modernismo. Orlando é um jovem inglês, nascido ao tempo da Idade Moderna, que, durante viagem à Turquia, certa manhã acorda transformado em mulher. Como Orlando é imortal, pode-se acompanhar a sua trajetória por um período de 350 anos nos quais a ambiguidade do sexo é trabalhada pela autora. O leitor acompanha Orlando dos dezesseis aos trinta e dois anos que correspondem, em termos de biografia, a mais de três séculos de história literária. Segundo o crítico Harold Bloom o que mais importa em Orlando é a comédia e um intenso amor pelas grandes eras da literatura inglesa. Virginia adorava a arte e Orlando reflete as atividades de uma grande leitora que, já no prefácio do livro, confessa as várias influências sobre o seu trabalho.

Virginia Woolf forma, juntamente com James Joyce, Marcel Proust e Franz Kafka, o quarteto mágico do modernismo. O crítico Peter Gay explica como se deu a transição do realismo para o modernismo, abordando aspectos inerentes aos dois movimentos. Afirma o crítico que os autores de prosa convencional não chamavam atenção especial para as suas técnicas. O esperado nos romances tradicionais eram personagens enfrentando situações complexas, havendo surpresas e mudanças de fortuna; entretanto, a trama caminhava para uma solução final, um desfecho claro como se houvesse acordo tácito entre o escritor e os leitores. Exploravam-se mais as exterioridades, ao contrário das obras modernistas, voltadas para as realidades internas. Seguiu-se, com o modernismo, uma revolta contra as exterioridades. Peter Gay prossegue dizendo que os modernistas inverteram dramaticamente a técnica do romance, mudando a distribuição habitual do espaço, muitas vezes dedicando longas passagens a um único gesto. Abandonavam-se os cenários e o drama investindo-se numa viagem interior, celebrando-se a subjetividade.

A questão da subjetividade foi explicada por Virginia Woolf durante uma palestra na qual afirmou: “em dezembro de 1910, a personalidade humanam mudou”. Referia-se a escritora à mudança de mentalidade definida como modernismo. Para Woolf a primeira década do século XX ainda estivera envolta em princípios vitorianos antiquados.

Virgínia Woolf era filha de um historiador de ideias e editor importante. Desde cedo mostrou-se muito frágil e sensível, sendo frequentes suas mudanças de humor que, por vezes, chegavam a enlouquecê-la. Leitora incansável, Woolf escrevia desde cartas a ensaios e polêmicas feministas. Em seus livros a escritora abordava questões políticas, sociais e também o pensamento feminista, envolvendo a situação da mulher e suas limitações diante das imposições de um mundo masculino.

Em 1912 Virginia casou-se com Leonard Woolf com quem, cinco anos mais tarde, fundou a editora Hogart Press. Nessa editora foram revelados escritores como T. S. Eliot e Katherine Mansfield. Entre os livros de Virginia Woolf destacam-se, além de Orlando, Rumo ao farol e As ondas.

A extrema fragilidade de Virginia Woolf terá sido o fator preponderante em sua precoce morte. No dia 28 de março de 1941, logo após um colapso nervoso, a escritora vestiu um casaco, encheu-o de pedras e atirou-se nas águas de um rio, onde morreu. Pouco antes de seu suicídio deixara uma carta ao marido Leonard com os seguintes dizeres:

Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim, mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.

V.

Eder Jofre

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Jornais e sites estamparam ontem fotos de Eder Jofre ao tempo em que atuava como peso galo. Comemoravam-se os 50 anos da conquista do título mundial por Eder em luta realizada em Los Angeles. O ano era 1960 e o adversário, derrotado por Eder, chamava-se Eloy Sanches.

Não há como recompor por inteiro o perfil de uma época e o peso da vitória de Eder sobre a então combalida estima nacional. O Brasil perdera a Copa de 50, na trágica final contra o Uruguai, em pleno Maracanã; Getúlio Vargas suicidara-se em 1954; Juscelino assumira o governo, em 1956, e dava novo impulso ao país com o desenvolvimento da indústria automobilística e a construção de Brasília; a bossa nova firmava-se como novo gênero musical com o lançamento, em agosto de 1958, do compacto Chega de Saudade, cantado por João Gilberto; Maria Esther Bueno vencia a final de Wimbledon em 1959, tornando-se a tenista número 1 do mundo; e Pelé nascia para o mundo durante a fantástica conquista, pelo Brasil, da Copa do Mundo de 1958.

De repente um país mais que secundário e carente, subdesenvolvido, atrasado e assolado por enorme dívida externa projetava-se no cenário internacional. Buscava-se, a todo custo, suplantar um não confessado sentimento de inferioridade em relação a outros países com vitórias e demonstrações de capacidade do povo brasileiro. Foi nesse contexto que se inseriu a conquista do título mundial por Eder Jofre. Rever hoje as fotografias da luta de 60 e as da grande recepção popular ao boxeador por ocasião de seu retorno ao país é mais que nostálgico: as fotos em preto-e-branco documentam um momento de felicidade coletiva, de um grande grito que se prolongava após a conquista da Copa da Suécia.

Aquele Brasil não se parecia com esse que hoje conhecemos. Talvez seja demasiada a comparação, mas o Brasil de 60 seria uma aldeia enquanto que este se assemelha a uma grande cidade. Naquele mundo Eder Jofre reinou e deu mostras de sua força e categoria. Tornou-se uma paixão popular e, mais que isso, orgulho nacional. Tínhamos um campeão mundial, descendente de famílias de boxeadores, um brasileiro que derrotava estrangeiros. Esse sentimento tornou-se muito evidente quando da luta de Eder contra o irlandês Johnny Caldwell, realizada no ginásio do Ibirapuera. De fato, o combate rapidamente tornou-se uma guerra contra a Inglaterra e regiões próximas. Os jornais atribuíam a Caldwell reações de desprezo ao lutador brasileiro e isso feria o sentimento popular de nacionalidade. Nessa luta, realizada em fevereiro de 1962, Eder derrotou Caldwell e unificou o título mundial dos pesos galos. Na manhã seguinte, os jornais estampavam fotos de Caldwell ajoelhado na frente de Eder numa clara alusão à supremacia do brasileiro.

Eder perdeu o título em 1965 numa luta realizada no Japão contra Fighting Harada. A notícia da derrota espelhou-se no final de uma manhã, provocando grande tristeza. Algum tempo depois Eder abandonaria o boxe, mas voltaria a lutar tornando-se campeão mundial na categoria peso pena.

A comemoração do cinquentenário da conquista do título mundial por Eder Jofre devolve-nos imagens de um país em ebulição, avançando contra sólidas amarras, encarando o seu destino.  Mas aí Juscelino deixou o poder, Jânio foi eleito e renunciou, Jango assumiu e não completou o governo porque deposto pelos militares que fizeram a chamada revolução de 1964. Iniciava-se um longo tempo de ditadura e silêncio, mas isso já é outra história.