Arquivo para janeiro, 2011
Notícias do Brasil
Ao telefone um parente que mora no exterior pede notícias sobre o Brasil. Tenho vontade de dizer que as coisas estão como sempre, mas não. Ele soube pelo noticiário internacional da tragédia na região serrana do Rio e me pergunta se é o que dizem ou há exagero. Repondo que não sei por que de uns dias para cá eu me nego a assistir a qualquer telejornal que se ocupe do assunto. Pudera. O fato é que não dá para assistir, impassível, a uma desgraça daquela dimensão. De parte da perda de bens matérias fica a de centenas de vidas. Digo ao meu parente que não suporto ver pessoas chorando porque perderam tudo ou, simplesmente, porque famílias inteiras estão soterradas debaixo de um mar de lama. O maior problema da realidade acontece quando ela se torna irracional, quando as perdas superam a capacidade de compreensão, quando começa a pairar no ar a terrível pergunta: afinal, o cara que inventou esse mundo era mesmo bom?
Não fiz a pergunta ao meu parente. Ele é muito instruído, verdadeiro rato de bibliotecas que adquiriu cultura invejável. Todo mundo sabe que o apuro de conhecimentos nem sempre anda de braços dados com a fé religiosa. Depois existem aqueles ramos da filosofia que geram tantas dissidências da fé.
Aconteceu ao meu parente: ele que foi batizado, crismado e cresceu dentro de família religiosa, a certa altura divergiu da fé. O fato é que ele chegou à negação de tudo, isso para desespero da mãe dele, senhora de credo e muita fé. Pois. Também aconteceu a ele envelhecer e aproximar-se do pórtico em que a grande dúvida se instala e muita gente socorre-se na fé. Não que ele agora seja carola. Digamos que se afastou de Nietsche e do materialismo dialético que embasou seu raciocínio nos últimos trinta anos. Agora ele é regressista, alguém que junta os cacos de algo que quebrou para ver no que dá. É o insondável, a perspectiva do outro lado o que mais o preocupa.
Portanto, não perguntei a ele se Deus é bom ou não. Mudei de assunto, falei sobre o novo governo e a presidente que ainda não se sabe a que veio. Expliquei que ela recebeu uma herança de popularidade à qual deve fazer jus embora nem de longe tenha perfil para isso. É uma burocrata, uma burocrata algo misteriosa que substituiu a um falante. Aliás, que me perdoem os que admiram tanto o ex-presidente, mas está uma delícia não vê-lo a todo o momento nos meios de comunicação, falando pelos cotovelos, exercitando o seu narcisismo.
No fim da conversa o meu parente perguntou sobre a reação dos brasileiros ao caso Battisti. Respondi que não vi nenhuma reação digna de nota. O ex-presidente recusou-se a extraditá-lo no último instante de seu governo e agora a bola está como o STF que, ao que parece, vai rever o assunto. A minha opinião? Ora, estão segurando o italiano aqui por fidelidade a modelos esquerdistas superados. O Battisti está condenado à prisão perpétua na Itália por atos de banditismo e isso em quatro instâncias. Mais: a razão alegada pelo Brasil de que o prisioneiro poderá sofrer perseguição na Itália não procede, afinal a Itália é uma democracia. Mas, que se pronunciem os juristas.
Desliguei o telefone e não pude deixar de pensar na lógica do Criador, ser infinitamente bom, mas que expõe o homem a tantas provações. Lembrei-me de famílias desfeitas e de tanta gente chorando. Vieram as imagens de Teresópolis e outras cidades vergastadas pela fúria das tempestades. Sinceramente, não me foi possível encontrar lógica em tanto sofrimento. A questão da bondade divina é antiga e sobre ela debruçaram-se grandes filósofos. Quem sou eu para colocar a minha pá nessa terra tão adubada de opiniões? Mas, por que tanta desgraça?
Tragédias como a acontecida na região serrana do Rio fazem-nos pensar sobre o certo e o errado, a bondade e a maldade e, mais que isso, sobre o sentido da vida.
A agonia do Cine Belas Artes
Há quem fale em saudosismo quando pessoas protestam contra o fechamento de um cinema que, durante décadas, constituiu-se em polo cultural de uma cidade grande como São Paulo. O caso do Cine Belas Artes é emblemático no sentido de que o encerramento de suas atividades representa a submissão de um ponto de convergência cultural ao mundo dos interesses e negócios.
O Belas Artes de hoje é um sobrevivente dentro de um mundo de salas de projeção de rua desaparecidas e substituídas por outras mais modernas e localizadas em shoppings. De fato, a lógica comercial converge para o fechamento de um ramo de negócio para que outro, certamente mais rentável, ocupe o seu lugar. Obviamente, tal raciocínio não leva em conta qualquer escala de valores de modo que tanto faz que no tradicional ponto comercial, localizado junto à esquina da Rua da Consolação com a Av. Paulista, funcione um cinema ou uma loja. Entretanto, essa indiferença não se aplica quando o que está em jogo é parte da memória cultural da cidade e uma das importantes referências de seus habitantes.
Conheci o Belas Artes nos meus primeiros anos em São Paulo, então uma cidade em transformação e ainda sem essa insaciável sede de violência. Não faz tanto tempo assim. O centro da cidade era, digamos, mais respeitável, sem essas levas de desocupados, tantas vezes bandidos que nos ameaçam. Para ficar num só exemplo, a Rua São Bento tinha suas lojas chiques que se abriam na calçada sem qualquer constrangimento. Havia mais cuidado com as vestes; respeito e lhaneza no trato figuravam entre os hábitos dos paulistanos. Não era nenhuma maravilha, mas respirava-se mais civilidade.
Frequentei o Belas Artes nas décadas de 70 e 80. Ali assisti a filmes de grandes diretores como Michelangelo Antonioni, Akira Kurosawa, Alain Resnais, Ingmar Bergman e muitos outros. Era um cinema “cabeça”, mais preocupado com a qualidade e fugindo do apelo comercial dos filmes exibidos nas demais salas da cidade. Se há algo que me irritava um pouco eram as filas de espera entre uma sessão e outra: no espaço destinado à espera reuniam-se muitas pessoas, entre elas os tais intelectuais de plantão sempre prontos a exibir sua cultura através de uma enxurrada de opiniões, quase sempre superficiais. O lugar era propício ao surgimento de críticos de salão, opiniosos sobre diretores e filmes. Também não custa confessar que ali, no Belas Artes, assisti a um ou dois filmes que não compreendi muito bem. Em particular sai muito chateado de um filme de Bergman cujo sentido maior me escapou. O curioso é que mais tarde me empenhei em descobrir que filme fora esse: tornei a assistir a filmes de Bergman que vira no passado, mas não identifiquei aquele que desafiara a minha compreensão.
Como se vê o Cine Belas Artes está ligado à memória de muita gente que tem nele referência cultural e a ele dedica muito carinho. A notícia do fechamento no fim de janeiro logrou mobilizar muita gente e está sendo proposto o tombamento do cinema, coisa que está por ser decidida. Evidentemente, torcemos por alguma medida que impeça o fim do Belas Artes. Enquanto isso, o velho cinema que existe há quase 70 anos, vai vivendo a sua lenta agonia, agora com esperanças de salvamento.
A Night in Tunisia
Aquele som de Dizzy Gillespie tocando trompete em “A Night in Tunisia” não me saiu da cabeça desde a primeira vez que ouvi. Talvez o que tenha me agradado de pronto tenha sido a fusão de ritmos – não identifiquei assim na época, mas pressenti – que estaria além dos trabalhos de boppers como Charlie Parker, Thelonius Monk e o próprio Gillespie. De qualquer modo o bebop - estilo musical baseado em virtuosismo instrumental, tempo mais rápido e muita improvisação – estava em voga desde os anos 40 e ouviam-se discos dos boppers naquele Brasil dos anos sessenta. O bebop era marcadamente diferente do estilo musical que o precedeu, o swing tocado pelas grandes orquestras. Desde então “A Night in Tunisia” tornou-se um dos “hits” mais famosos de autoria de Gillespie e até hoje faz parte do repertório de instrumentistas e cantores de jazz.
O que há de significativo em “A Night in Tunisia”, além de seu encanto natural, é a fusão da melodia do bebop com ritmos afro-cubanos. Existe algo e tribal e profundo que nos convida a uma imersão num universo onde passado e presente de fundem, permitindo toda sorte de alegorias. Quanto a mim tive a sorte de assistir a um show de Dizzy Gillespie, realizado em São Paulo, em 1978. De repente, São Paulo tornou-se, por alguns dias, centro musical do jazz dado que para a cidade vieram alguns dos principais jazzistas então em atividade. Foi um Festival realizado no Palácio das Convenções do Anhembi, todo ele inesquecível porque tivemos a oportunidade de ver de perto músicos como Gillespie, Zoot Sims, Milt Jackson, Chick Corea, Joel Farrel, Stan Getz, Ray Brown, George Duke, Al Jarreau, John McLaughlin, Benny Carter e muitos outros. Numa das noites Gillespie tocou a sua “A Night in Tunisia”, levando o público a verdadeiro delírio.
Escrever sobre o festival de 1978 é tarefa para críticos musicais, pesquisadores e memorialistas. Do que me lembro muito bem é da profusão de estilos musicais apresentados, desde o som de big-bands aos instrumentais de músicos brasileiros como Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal. Mas, por algum motivo, aquele festival prensou-se em minha memória com o som de “A Night in Tunisia” soprada pelas bochechas infladas de Gillespie ao seu trompete.
Por outro lado, arquivei na memória o país Tunísia como algo musical, terra de colonização francesa sobre da qual, sinceramente, poucas informações retive. Há poucos anos um amigo falou-me sobre a Tunísia, país africano no qual ele pensava passar suas férias. Não sei se o meu amigo de fato foi à Tunísia, mas guardei a informação de que se tratava de lugar de paz, parada obrigatória de turistas europeus que lotam suas praias.
Parece que não é bem assim. Segundo a imprensa internacional existia na Tunísia uma espécie de acordo entre o governo e o povo: o governo garantia paz e serviços de qualidade em troca da aceitação de um regime controlador sob as vestes de democrático. Essa política, imposta pelo presidente Ben Ali, terminou ontem com uma rebelião que o fez fugir, deixando o poder. Isso pode parecer estranho num país cujo IDH é próximo ao do Brasil, a expectativa de vida é de 74 anos e os dados econômicos bastante favoráveis. Entretanto, o crescimento econômico contrasta com as dificuldades econômicas do povo e o fato da família da mulher de Ben Ali controlar vários ramos de negócios. A reportagem do jornal “El Pais” sobre a Tunísia começa com uma frase de Rim Ben Smail, catedrática da Universidade de Túnis (citada por Clóvis Rossi em artigo da “Filha de São Paulo): “Quando você compra um computador, um celular, um automóvel ou a pasta de dentes, esta comprando da família da mulher do presidente”. Foi a corrupção, portanto, o motor da revolta na Tunísia, país de futuro indefinido no momento, correndo-se até mesmo o risco de instalação de uma ditadura militar.
Mas, o melhor é deixar de lado a realidade e entregar-se ao som de “A Night in Tunisia”. Dizzy Gillespie morreu em 1993, mas sua música sobreviveu a ele, permitindo-nos experimentar uma maravilhosa noite na Tunísia, noite em que a lua que está sobre nós é a de sempre, mas nessa noite brilha mais, muito mais forte, porque estamos na Tunísia e Gillespie toca o seu trumpete.
Janeiro das catástrofes
Sempre tive medo de tromba d’água. Em menino aprendi que nuvens muito carregadas podem despejar toda a água em ribanceiras. Daí que a água desce, verdadeiro rio, levando consigo o que encontra pela frente: pedras, terra, árvores e casas, vidas, tudo enfim.
Em conversa com outras pessoas acaba-se concordando com o fato de que no passado o clima era muito diferente, o inverno era mais frio, por exemplo. Quem conheceu Campos do Jordão há 50 anos ou mais afirma que o frio era, no passado, muito mais intenso na cidade. Invernos muito rigorosos traziam grandes geadas, água congelada dentro de encanamentos e outros comemorativos que acompanham as invernadas. Às vezes acho que o passado fica cada vez mais distante e as lembranças ganham corpo, sendo natural a tendência de valorizarmos mais certas ocorrências.
Não sei, não. Quem morou em cidades cercadas por montanhas – casas localizadas num vale com morros em ambos os lados - aprendeu a temer as forças da natureza. Tempestades prolongadas, com direito a relâmpagos, raios e muita água preocupam os moradores locais para quem catástrofes estão sempre em perspectiva.
Talvez por essa razão seja-nos inadmissível assistir a essa espantosa catástrofe ainda em curso nas cidades da zona serrana do Rio. Não é o caso de repetir aqui tudo o que se diz na imprensa sobre o descaso de autoridades, falta de ação de governos, promessas eleitoreiras e tudo o mais ao que se pode acrescentar a imprudência de pessoas que constroem casas em lugares inapropriados. Todo esse palavrório perde o sentido diante de cadáveres cobertos por pedaços de lona e pessoas ainda desparecidas.
As chuvas, infelizmente, continuam. Novos governantes visitam as regiões atingidas pelas tempestades, obviamente com ares de nenhuma culpa em relação ao ocorrido, afinal a responsabilidade recai sobre administrações anteriores. Enfim, trata-se de uma história que se repete porque, a seguir a carruagem no ritmo de sempre, daqui a alguns anos novas tragédias poderão acontecer e os culpados serão aqueles que hoje parecem isentos de qualquer responsabilidade em relação aos infaustos acontecimentos.
O meu pinheiro egoísta
Há 30 anos encontrei um pinheirinho numa estrada da Serra da Mantiqueira. Era de tal modo pequeno que me condoí dele e levei-o para casa. Depois de colocá-lo num vaso por alguns dias e adubá-lo achei que ele já estaria forte o suficiente para ser transferido. Foi nessa ocasião que eu plantei o pinheiro em frente à minha casa.
A partir daí o pinheiro cresceu e como. Plantado numa encosta de morro ele ganhou corpo e, em alguns anos, alinhou-se com outros pinheiros, seus descendentes. Grande e robusto, crescendo numa encosta, o pinheiro cercou-se de cuidados relativos à sua segurança: ano após ano desenvolveu raízes poderosas, algumas visíveis sobre o solo, uma delas tão longa que veio rachar o piso de concreto da área da frente da casa.
Sempre admirei esse pinheiro a quem me afeiçoei sobremaneira me orgulhando de sua majestade e força. Atualmente ele é uma árvore altíssima que se exibe com suas poderosas raízes as quais sempre me impressionam. Entretanto, justamente hoje, a minha opinião sobre o meu pinheiro foi abalada por uma publicação da revista científica “The American Naturalista”, divulgada pelo jornal New York Times. Segundo os cientistas autores do trabalho publicado pela revista as árvores criam mais raízes do que realmente necessitam apenas para dificultar o crescimento de outras árvores. Segundo Ray Dybzinski, da Universidade de Princeton, raízes desnecessárias funcionam como verdadeiras armas que evitam o crescimento de outras árvores. Trata-se, portanto, de uma competição em relação aos recursos disponíveis, processo darwiniano de sobrevivência do mais apto. Em outras palavras, as árvores não estão isentas do velho egoísmo que tanto prejudica as relações humanas.
Então, o meu pinheiro? Pois é. Aquela raiz que estourou o piso da área não está ali apenas por necessidade de sustentação e crescimento. Sem qualquer eufemismo, a raiz bem que pode ser considerada uma agressão desnecessária que recebi de alguém que só sobreviveu graças a mim.
Mas, não importa. O que vale é que o pinheiro está lá, grande e forte, ligado a mim tanto como eu a ele. Nessa vida em que nem tudo floresce é com muito orgulho que me apresento como o cara que plantou aquele soberbo pinheiro. Dia desses vou me aproximar dele para uma dura em relação à raiz desnecessária que me causou prejuízos. Mas, não será uma reprimenda tão dura assim, afinal todo mundo sabe como funcionam essas conversas entre pais e filhos.
Briga de galos
Eu tinha um parente - morreu há mais de 20 anosv- que era louco por briga de galos. Tinha ele, no quintal de sua casa – viveiros habitados por galos ferozes. Para alcançar o status de feroz um galo passava por muitas provações. Em primeiro lugar vinha a raça, sendo algumas mais briguentas e agressivas nas rinhas. Também contava – e muito – a hereditariedade: tal frango em formação era filho de um grande vencedor das rinhas, resultado de cruzamento tal etc. Por último valia-se muito o galista das tais escorvas – não sei se é bem esse o termo – que consistiam em lutas de treinamento, obviamente com os bicos dos contendores protegidos. Como no boxe, não se expunha a fera a lesões em treinos que só visavam aumentar a agressividade delas.
Quem nunca viu ou lidou com galos de briga não tem ideia dos preparativos que cercam uma luta. As rações especiais são importantes, assim como massagens para enrijecer os músculos. Treinamento e mais treinamento para no fim chegar-se ao grande dia em que a fera entra na rinha para delírio dos viciados que apostam muito dinheiro entre si.
Falo sobre esse assunto com algum conhecimento de causa. Como disse, o meu parente era fanático pelo “esporte”. A mim aconteceu certo dia receber dele, de presente, um franguinho, descendente de uma linhagem de bons galos de briga. Coube-me treinar esse franguinho até ele se transformar no galo preparado para as rinhas. A bem da verdade eu não sabia bem para o que estava preparando a minha fera: na época eu era um rapazote e jamais assistira a uma verdadeira briga de galos ou frequentara rinhas.
Um dia, finalmente, o meu pupilo foi dado como pronto e o meu parente levou-me para assistir àquela que seria a estreia dele no mundo das rinhas. Naquele ambiente hostil encontrei vários galistas, cada um trazendo um ou mais galos, combinando as lutas mais ou menos em acordo com o tamanho dos galos. Para fechar negócio – e apostas – a técnica consistia em aproximar um galo do outro, modo de avaliar a agressividade da dupla. No fim, ficou acertado que o meu galo participaria da segunda luta. Até aí eu, meninão, estava achando tudo muito interessante e orgulhoso do animal que eu treinara para ser um vencedor.
A primeira luta - ou briga - foi um fracasso. Um dos galos “afinou” e recebeu os maiores impropérios da massa de torcedores acotovelada em torno da rinha. Muita gente perdeu dinheiro com a desistência daquele pobre ser. Mas, as coisas andaram rápidas e eis que já era o meu galo a entrar na rinha. Até aí eu estava confiante e, sinceramente, não atinava com o que viria em seguida. Antes da luta começar só me preocupei um pouco ao ouvir de um dos apostadores que o adversário do meu galo era um experiente matador das rinhas. Aliás, o homem disse alto e bom tom:
- Esse galinho vermelho não vai aguentar nem o começo.
O galinho vermelho era o meu. Então a briga começou e lá veio aquele matador com ares de vitória para cima do meu galinho. Logo de cara ele feriu o galinho com sua espora afiada, arrancando muito sangue dele. Creio que só aí, ao ver o sangue, eu compreendi a extensão da tragédia que se anunciava. Não vou entrar em detalhes sobre o horror que se seguiu, a formidável reação do galinho que praticamente destruiu a crista do seu oponente, os gritos de selvageria e as apostas que se renovavam, os meus apelos ao meu parente para que acabasse com aquilo porque, afinal, eu amava o meu galinho.
Não cheguei a ver o fim da luta. Não resisti àquela sessão de animalidade dos torcedores e crueldade para com os animais. Só depois soube que o galinho morrera após receber uma fortíssima bicada no meio da cabeça.
Desde esse dia passei a odiar as brigas de galo, felizmente proibidas pelo governo. Não me cabe traçar o perfil psicológico das pessoas que se deliciam e têm reações orgásticas ao assistirem ao brutal embate entre dois animais colocados frente a frente para satisfazer os baixos instintos de torcedores e apostadores. Infelizmente, muita gente gosta de brigas entre galos, aliás, pessoas conhecidas e importantes estão envolvidas com esse “esporte”.
Nunca me esqueci do galinho vermelho que morreu bravamente, sem se entregar ao famigerado matador. Embora na época eu não avaliasse bem a extensão do que aconteceria - a ele e ao seu contendor – ainda assim me sinto culpado por ele não ter vivido como os seus iguais. Anos depois eu disse isso ao meu parente. Ele sorriu, olhou-me de cima para baixo e disse:
- Você não é culpado de nada. Na raça do seu galinho vermelho a luta é instintiva: é o que eles sabem fazer de melhor. É como entre os homens: existem os de paz e os talhados para a guerra. Temperamentos assim, violentos, só se consumam na luta e, se a felicidade existe, a deles só pode ser encontrada numa arena ou em situações de perigo.
As críticas ao ex-presidente
Basta correr os olhos nos jornais para encontrar textos que condenem as atitudes do ex-presidente da República. Ora se fala sobre a herança maldita que legou a sua sucessora, herança essa na qual se destacam enormes contas a pagar que chegam a um total de 137 bilhões; ora se critica o ex-presidente pelo fato de ele se sentir dono do país, tanto que, embora apeado do poder, encontra-se descansando com a família em instalações do exército, no Guarujá; de outra vez fala-se sobre as regalias dos filhos do ex-presidente que receberam passaportes diplomáticos a isso se acrescendo o fato de que ambos eram pobres no início do governo do pai e agora são sócios de várias empresas; e por aí vai, jamais se deixando de lado o fato de que o ex-presidente é adorado pelo povo.
O que não se sabe é se está em andamento um lento processo que visa a erosão da figura do ex-presidente. Se assim for trata-se de um trabalho que exige paciência e cujo resultado é imprevisível. O fato é que o público que lê essas letras miúdas dos jornais é restrito e está mais que careca de conhecer o modus operandi do ex-presidente no sentido de endeusar a si próprio. Para a grande massa e brasileiros, aquela que se fia no palavrório dos governantes e passa a ter acesso a bens antes inatingíveis, pouco importa o que a tais cabeças pensantes dizem. O povo deu o seu recado nas urnas, elegeu uma desconhecida para a presidência, isso a mando do líder que os comanda, e o resto não passa de conversa fiada.
Mas, é nesse ponto que as coisas se confundem. Qual deve ser o comportamento da imprensa no caso Lula? Entregar-se a críticas e acusações, embora reconhecendo o valor merecido de aspectos do governo dele? O que parece é que a imprensa não consegue se livrar do fantasma de Lula. O homem deixou a presidência, hora de deixá-lo em paz, senão ignorá-lo. Estamos no início de uma nova década, uma nova presidente está em exercício, o futuro nos chama. Para aqueles que se comprazem em criticar o ex-presidente, para os que não o suportam, vale lembrar que justamente o que ele precisa é de luzes e ribalta. Pois que deixem de mostrá-lo acenando de varandas, de falar dele, das caixas de pertences pessoais que estão sendo entregues na casa dele, dos aparelhos de ginástica que tiveram que ser devolvidos à presidência, dos 100 ternos que ele usava enquanto presidente, do cabelo da primeira-dama, do craque que está no banco de reservas da Dilma e assim por diante. Pelo amor de Deus, chega.
Está mais que claro que esse início promete ser o período mais difícil para o governo que começa. Rubens Ricupero elencou, em artigo publicado na “Folha de São Paulo”, os gargalos que o novo governo terá que enfrentar todos eles decorrentes do engajamento do governo Lula na vitória eleitoral da candidata do planalto. São eles: inflação de mais de 6%; dólar a R$1,60; déficit em conta corrente de mais de 50 bilhões; superávit primário de menos de 1% do PIB.
Então há muito que pensar e fazer, cada um no seu papel, a imprensa noticiando e comentando, o governo tomando medidas de interesse coletivo. Enquanto isso, o governo anterior vai se tornando a cada dia mais passado e seus personagens incorporando-se à paisagem, como, aliás, acontece a todos os que deixam governos, em todo o mundo.
A sorte existe
Amigos, eu tenho três assuntos a escolher para tecer algumas linhas. Um deles refere-se à concessão passaportes diplomáticos aos dois filhos e ao neto do ex-presidente Lula. Eles receberam os passaportes com a seguinte justificativa: em razão de interesses do país. Foi muito bom para eles porque não terão que entrar em filas e visitarão países estrangeiros com mais facilidade que nós, pobres mortais. Confesso que fiquei feliz com a concessão porque ela nos garante que qualquer um pode ter um passaporte desses, cedido pelo Ministério das Relações Exteriores. Aliás, meu próximo passo será me candidatar a um passaporte diplomático dado que também quero um. Não sou filho, nem neto de ex-presidente, mas sou contribuinte de modo que eu - e outros milhares de brasileiros iguais a mim - tenho direito, justificado pelos tais interesses do país.
Já que toquei no assunto, os passaportes diplomáticos foram concedidos no apagar das luzes do governo Lula pelo então Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Não vou esconder a minha aversão pelas posições políticas do ministro, mas deixo claro que, dias atrás, me enchi de simpatia por ele. O Amorim é natural de Santos e visitou sua terra natal na condição de filho ilustre, cedendo medalhas e documentos de sua trajetória política ao Arquivo de Memória da cidade. Nem é preciso dizer que muita gente achou que ele investia na posteridade, mas e daí? Amigos, a história é feita de documentos, medalhas e tudo o mais que sobreviva às cinzas dos atores de uma dada época, daí que toda contribuição para a posteridade é muito benvinda. Em todo caso a minha simpatia pelo Amorim logo se desfez com essa história absurda de passaportes a dois carinhas que tudo o que fizeram pelo país foi serem filhos do ex-presidente que, aliás, demora-se a se afastar das mordomias do poder.
O segundo assunto relaciona-se à visita da cantora Amy Winehouse ao país, onde fará alguns shows. De tanto ouvir falar sobre a imprevisibilidade dela – nunca se sabe se cantará ou não – e atos realmente tresloucados resolvi ouvir os discos Frank e Black to Black. Amigos, eu me surpreendi muito com o sucesso que a Amy faz porque, a bem da verdade, ela é retrô, o que faz é aplicar o seu vozeirão a hits dos anos sessenta, acompanhada por acordes envelhecidos, vejam os solos de guitarra. Isso não quer dizer que a Amy seja ruim, não, é ótima cantora, sua fama é justificada. O que fica claro é que ela não acrescenta nada ao que outros já fizeram e isso há cinquenta anos. Imagino que fãs da cantora simplesmente execrem opiniões como essa, mas que fazer se tenho a impressão de já ter ouvido isso antes e com outra cabeça que não a de hoje? O que me leva a pensar que essa moçada não se deu ao trabalho de ouvir coisas antigas e está tomando o velho por novo, sorte da Amy, afinal ela fatura milhões batendo na mesma tecla que a Aretha Franklin e tantas outras. Meus amigos, a Amy é um revival dos anos sessenta e pronto.
O meu terceiro assunto é esse cara que até poucos dias atrás era mendigo e possui uma grande voz, a tal “Golden Voice” como dizem os gringos. Pois esse cara foi filmado, enquanto brincava de locutor, por alguém que colocou o vídeo no You Tube. Aconteceu que da noite para o dia mais de dez milhões de pessoas assistiram ao vídeo e o mendigo foi retirado das ruas, reencontrou a mãe depois de 20 anos e está lá, de cabelinho cortado, recebendo ofertas de emprego em rádios e tudo mais.
Muita gente tende a achar que essa história do agora ex-mendigo pode ser explicada por puro acaso. Amigos permitam-me discordar: o nome disso é sorte. Sou desses caras que acreditam, talvez ingenuamente, que a vida pode simplesmente virar da noite para o dia, abrindo-se o sol para quem tem sorte. Dirão que é bobagem. Respeito opiniões contrárias, mas, amigos, como se explica uma coisa dessas? Eu respondo, assim: o cara estava no lugar certo, na hora certa, foi filmado numa época em que existe o You Tube, milhares de pessoas viram e deu no que deu. Muita coisa junta para simples acaso, daí eu insistir que o nome disso é sorte e ponto final.
“Verão” de J. M. Coetzee
“Verão”, terceiro livro da trilogia biográfica de J. M. Coetzee é um livro de um escritor sobre si mesmo. À primeira vista a afirmação anterior parece redundante dado que não existe outro significado para uma autobiografia. Entretanto, não se tem, em “Verão”, uma análise da obra do escritor, desenvolvendo-se a biografia em torno de um período da vida dele, por volta de 1970, quando ainda não se tornara famoso.
A sensação provocada pelo livro de Coetzee é a de que, a seu modo, o escritor se explica, desnudando-se o homem que está por trás do grande escritor, se ficcionalmente ou não isso realmente não importa. O que vale é a dicotomia entre o homem que publica e se torna famoso e alguém de quem não se espera quase nada tal a sua inaptidão geral para todas as coisas. É por ter-se tornado importante demais - Coetzee recebeu o Prêmio Nobel em 2003 – e pessoalmente não se ajustar à figura pública que talvez devesse ser que o escritor digladia-se com suas memórias nas quais revela-se sempre inapto para relacionamentos, frio, confuso, admitindo que chega a ser visto como arrogante por outras pessoas.
Em “Verão” chama atenção a técnica narrativa utilizada. Os textos, aparentemente descolados uns dos outros, ligam-se num denominador comum que é a personalidade do escritor que não se poupa através das vozes de pessoas que o conheceram. A essas pessoas – cinco no todo – recorre Vincent, o biógrafo, entrevistando-as e buscando em seus discursos histórias e impressões sobre o escritor. São vozes nem sempre coincidentes que, entretanto, se somam quando o assunto é dirigido para aspectos da personalidade do escritor sempre tomado com um ser de espécie invulgar, utópico, confuso, inadaptado e até mesmo inesperado em seu modo de agir. No mais, o livro começa e termina com anotações de Coetzee feitas na época de interesse do biógrafo. Tais anotações são textos breves seguidos de sugestões para serem desenvolvidas posteriormente.
Ao tempo da realização da biografia Coetzee já está morto fato que reduz o espaço investigativo de Vincent a entrevistas e consulta de anotações deixadas pelo escritor. Dentro desse contexto ressaltam-se as relações de Coetzee com sua família, em especial com seu pai, e, principalmente com a África do Sul na época do apartheid. Coetzee é um africânder – descendente de calvinistas que se estabeleceram na África do Sul - e a ele se aplica aquilo que entre nós Sergio Buarque de Holanda caracterizou com “um desterrado em sua própria terra”. De fato, é muita clara a consciência de Coetzee de que tinha um direito abstrato de estar em sua própria terra natal porque a presença dele baseava-se num crime, a conquista colonial. Esse modo de ver colocava o escritor numa posição de transitoriedade em seu país. Embora profundamente consciente da situação social – a biografia escrita por Vincent é um mergulho no contexto social do apartheid e suas terríveis consequências – Coetzee em nenhum momento se mostra engajado em qualquer das vertentes conflitantes. Para ele, segundo uma das entrevistadas, a política é sintoma de nosso estado decaído, daí não interessar a libertação nacional da África do Sul.
Mas tudo isso é muito pouco em relação a uma obra que convida à reflexão. No texto alinhavado por Coetzee pressente-se a todo instante o perfil do grande escritor, um dos maiores de nosso tempo. Além disso, pode-se dizer que “Verão” fila-se àquela que parece ser a tendência dominante do romance atual, qual seja a do enredo autobiográfico. No caso de “Verão” esse modo de romancear se faz com despojamento e simplicidade linguística que em nenhum momento confunde-se com autocomiseração.
“Verão” de J.M. Coetzee é uma publicação Companhia das Letras e pode ser encontrado nas livrarias.
Mulheres atraentes
Ninguém nega, mulher bonita, atraente é da hora. Outro dia assisti a uma entrevista do Arnaldo Jabor na qual ele contou que, em seu tempo de estudante, havia uma colega muito gostosa cujo maior destaque era aquilo que eufemisticamente chamamos de traseiro. Segundo o Jabor quando a moça descia para o pátio, nos intervalos, parava tudo. Outro que exaltava a beleza feminina e listava o que é fundamental na mulher é o poeta Vinicius de Moraes, sempre começando com aquele “beleza é fundamental” muito do jeito dele. No mais, basta passar por uma banca de jornal para verificar que mulher é sempre capa, seja lá qual for o gênero de revista. Além disso, histórias como essa do Jabor existem aos montes, nas escolas, repartições, enfim em todo lugar onde circulam mulheres que atraem olhares masculinos.
Do que se está falando muito- aqui e no exterior - é da beleza da esposa do Temer, moça de 27 anos de idade presente na cerimônia de posse do marido como vice-presidente da República. O José Simão, plantonista de gozação da Folha, escreveu que o Temer casou com uma miss 43 anos mais nova e isso é uma temeridade. A imprensa internacional destaca que a ex-modelo foi a sensação da posse de Dilma Roussef e a compara à primeira-dama francesa, Carla Bruni:
- Uma Carla Bruni à brasileira? – foi a pergunta publicada pela agência italiana ANSA.
E assim foi pelo mundo, em jornais dos EUA, da Argentina, da Espanha e por aí afora. Todos eles exibiram fotos da beldade ao lado do Temer.
Pois é, o Temer, quem diria. Sorte dele porque no sempre incauto mundo dos machos latino-americanos seguramente ele ganhou pontos, muitos pontos. Hoje de manhã, quando fui à banca, comprar o jornal, um cara a quem não conheço olhava para uma foto da posse da Dilma. Ao lado dela estavam o Temer e a esposa Marcela. Aí o cara disse: esse Temer tem sorte.
Pois muita sorte e felicidades ao Temer e à esposa Marcela, pessoa bonita que ela é. Agora, que não me perdoem os escribas de plantão, mas paira no ar certo grau de despeito, senão preconceito. Preconceito, sim, porque fazendo as contas o Temer está com 70 anos e aí pesa na opinião pública certa reprovação como se um homem mais velho não pudesse ter esposa jovem. Li uma entrevista de Marcela Temer na qual ela se mostrou pessoa muito articulada e consciente de seu papel. O problema é que só faltaram perguntar a ela como seria a relação com um idoso, etc.
Os que venceram a barreira dos sessenta anos de idade sabem bem como essas coisas se passam. Ok, piadas são engraçadas e há mesmo que se fazerem piadas, o riso faz parte da alma ensolarada dos brasileiros. Mas, existe uma área perigosa na qual as mentes conservadoras interagem com o inconsciente coletivo que reprova aquilo que não se considera no mínimo de bom-tom. Besteira pura, a família brasileira não está ameaçada, viva o Temer ainda que, enquanto político até possamos lamentar que ele ocupe o cargo de vice-presidente da República, representante de um partido fisiológico que ele é. Mas aí são outros quinhentos, outros quinhentos, nada a ver com o casamento dele.