Arquivo para janeiro, 2011
A vida longa dos políticos
Começo de ano é tempo de caça de prioridades, estabelecimento de rotas e tudo o mais. Quer-se uma nova vida, coisas novas, fatos novos que despertem a atenção e a imaginação. No fundo é a rotina que incomoda, a continuidade que se sonha venha a ser descontinua. A mudança dos números do calendário precisaria vir acompanhada de renovação, no mínimo sobre o modo de ver as coisas. Seria como se o 31 de dezembro fosse acompanhado de uma virada de página, deixando para trás velhos e insolúveis problemas, afinal se eles não têm solução por que persistir?
Na prática, como se sabe, não é assim. Não existe máquina que transforme o velho cotidiano em novo e a vida não é aventurosa como acontece a personagens de certos romances os quais, sem mais nem menos, mudam de continente e embriagam-se com culturas antes desconhecidas, participando de uma maré de acontecimentos variados e pródigos em novidades. Ao contrário - e para ficar num só exemplo - o mais difícil é desvencilhar-se de amarras que nos prendem a situações que se tornaram desagradáveis, muitas vezes insustentáveis. Espero que um amigo não leia esse texto, mas dias atrás ele me falava sobre uma relação amorosa com data de encerramento já vencida, porém sem que ele encontrasse justificativas para sair de convívio sem magoar a pessoa que já não é amada. Achava ele que o final do ano seria o limite máximo para uma tomada de atitude, iniciando-se 2011 com novas perspectivas. Ao que sei tudo na vida do meu amigo continua como dantes no quartel de Abrantes e parece que a situação continuará na mesma por bom tempo.
O problema é que, em muitos casos, para a vida mudar de verdade seria preciso um rearranjo no mundo dos personagens que, bem ou mal, fazem parte do nosso cotidiano. Isso não significa, necessariamente, que a mudança tenha que ocorrer no ambiente restrito das famílias e de amizades próximas dado que existem inúmeras pessoas cujas ações interferem em nossas vidas, direta ou indiretamente. Esse é, por exemplo, o caso dos políticos que ocupam cargos de governo, locupletando-se no exercício de poderes que afetam o dia-a-dia de milhares de pessoas.
Tais políticos - a continuidade deles no poder - cansam. Então não é por caso que após oito anos de um partido no governo eu me sinta sem forças e vontade para acompanhar os passos de personagens cujo vai-e-vem nas esferas do poder as tornaram previsíveis, digamos difíceis de engolir. No caso atual do governo que se inicia, lá estão figurinhas carimbadas, muitas delas ligadas a escândalos como aquele ministro envolvido com o caseiro Francelino, o cidadão que fez top top com as mãos, ao vivo e a cores, e outros sobre quem realmente me esforço para não me lembrar na esperança de não mais conseguir identificá-los; ou aceitá-los como renovados, talvez pessoas que fizeram plástica apenas para se assemelharem aos seus antecessores.
Assim, estamos condenados à mesmice, embora sempre exista um voto de confiança que necessariamente precisa ser dado, não há como não ser desse modo.
O Brasil é terra de gente que resiste a abalos fortes, gente que fica em pé mesmo sob o impacto de registros sísmicos grau 10 na escala Richter. José Sarney é apenas um entre esses camaradas que se seguram firmes, mesmo quando a nau já foi a pique. O Brasil também é a terra dos caras que sabem fugir de tempestades, ainda quando elas despencam só sobre a cabeça deles. O sujeito simplesmente nega tudo e um dia aparece no Congresso para fazer um discurso emocionado sobre a própria honra e serviços prestados ao país, isso antes de renunciar para não ser cassado. O caso é que sabem que tempestades não duram para sempre e um dia eles voltam, ah, como voltam. Tá bom que de vez em quando os planos de um Arruda não dão certo, mas que fazer?
O que cansa é a mesmice, o mesmo assunto, a eterna repetição.
2011
Comecei a escrever algo sobre a passagem de ano e desisti. No texto estavam arrolados alguns acontecimentos que me impressionaram em 2010. Mas, não gosto de retrospectivas: elas eliminam pelo menos uma parte do mistério de coisas que presenciamos recentemente, reavivam fatos por atacado e concorrem para desmitificá-los. Memória boa é a despertada naturalmente e ao acaso porque nos faz voltar a um fato, quase sempre com abordagem isenta de compromisso e, talvez, paixão. Quem discorda que se lembre da campanha presidencial de 2010 a qual, se não chegou a empolgar, envolveu-nos a ponto de convidar-nos a reflexões e comentários. Não é preciso que ninguém venha soprar em nossos ouvidos lembranças da campanha: basta olhar a foto da presidente eleita desfilando em carro fechado por conta da chuva e a figura do ex-presidente descendo a rampa ao som do hino do Corinthians. As memórias não precisam de nada mais que isso para deixaram-se levar – ou não – num encadeamento de fatos, agora mais isentos de paixão porque, afinal, tudo está consumado.
No dia 31 intentei despedir-me do ano com algum afeto, fazendo um desses agradecimentos velados, no mínimo por continuar vivo. Impossível porque dei de cara com obstáculos intransponíveis, certo desdém para com a realidade que a cada dia mais me desagrada. Pertenço a um país que me oferece, realmente, condições de vida bastante razoáveis: existe liberdade de ir e vir, não há terremotos, vulcões não operam, nevascas são raras e apenas no sul, o clima mais ajuda que gera problemas, esses restritos a enchentes, chuvas demasiadas e não sei mais o quê. Em contrapartida, existem as contrapartidas que todos sabem muito bem, a começar pela desfaçatez dos homens públicos, a ignorância e a sempre crescente falta de educação. A isso se soma toda sorte de problemas ligados à violência e falta de infraestrutura em várias áreas. Mas, parei aí. Era o dia da passagem de ano e achei que o espírito meditabundo não me convinha.
Enfim, não terminei nenhum texto e deixei-me perder em lembranças de muita gente que conheci e já desertou deste mundo. Vieram meus avós, meus pais, tios, parentes não tão próximos, amigos de todas as décadas, inimigos a quem não reservei muito espaço de recordação. Entretanto, a memória é caprichosa, ela nos conduz por labirintos, rios estranhos que não nos damos conta, mas desaguam nalgum subterrâneo de coisas esquecidas, sempre prontas a emergir.
Foi assim que cheguei a uma manhã de 01 de janeiro de um ano que não sei precisar bem, mas situado no tempo em que eu frequentava o grupo escolar. Tinha eu, nos bancos escolares, um amigo inseparável, chamado Gabriel. Pois, naquela manhã a população do lugarejo onde eu morava foi desperta por fato inusitado: um homem chegara à praça, arrastado pelo seu cavalo, completamente transfigurado e ensanguentado, obviamente morto. Esse homem era o pai do Gabriel, meu amigo. Consta que ele bebera muito na passagem de ano e caíra do cavalo, não conseguindo retirar o pé do estribo. Assim, preso ao arreio, foi ele arrastado pelo cavalo, quilômetros a fio, na estrada de terra.
Quando soube do fato, corri à praça. Era uma manhã muito clara, sol forte e lá estavam o cavalo e o morto a seus pés. Durante alguns anos essa imagem terrível sempre me voltava nas passagens de ano até que me libertei dela, esquecendo-me do fato. Além disso, depois que saímos da escola, nunca mais vi o Gabriel e sabe-se lá qual terá sido o destino dele nesse mundo de Deus. Então, as coisas ficaram assim até o último dia de 2010, quando, de repente, me tornei de novo um menino entrando numa manhã límpida e de muito sol para ver um homem morto junto ao cavalo que o arrastra durante a madrugada. Nas horas seguintes em vão tentei me libertar daquela manhã e do homem morto cujo rosto se tornara irreconhecível. Foi muito difícil conseguir porque alguma coisa em mim prendia-me ao meu mundo de menino, talvez uma negação do presente, talvez uma insatisfação sem remédio com os tempos atuais.
Mas, vieram os fogos, as memórias ficaram para trás e o futuro se impôs. Os mortos retornaram aos seus túmulos e talvez eu tenha tomado um pouco mais de vinho porque aquela manhã trágica dos meus tempos de menino de repente se desfez. Se bem me lembro isso aconteceu quando recebi o primeiro abraço, gesto cordial e bem presente que chegou para me dizer que o passado pertence ao passado e os mortos, arrastados por cavalos ou não, devem ser deixados em paz.
Vida longa a todos nós.