Arquivo para março, 2011
Fukushima 2011
Notícias vindas do Japão referem-se ao desespero da população de Tóquio, temerosa dos efeitos das radiações emitidas após o vazamento na usina nuclear de Fukushima. O Japão está sob o império de uma enorme catástrofe provocada pelo tsunami que arrasou a região nordeste daquele país na qual também ficam usinas nucleares. É a ocorrência da terceira explosão de um reator em Fukushima a causa do mais que justificado pânico. Temem as pessoas principalmente a ação das radiações gama capazes de alterar células dos organismos vivos, provocando vários tipos de cânceres.
Não é nova a discussão sobre o uso da energia nuclear para fins pacíficos. Sempre em pauta, o risco de acidentes em usinas nucleares contrapõe-se aos benefícios da energia gerada. Há que serem consideradas as crescentes necessidades energéticas determinadas pelo mundo industrializado e o modo de vida das populações humanas que não prescindem da utilização de energia. Em tais condições o uso da energia nuclear parece justificado dado ser uma via extremamente útil para suprir a demanda energética em vários países.
Entretanto, as possibilidades de acidentes não são nada desprezíveis. O mundo - particularmente o Japão – conhece muito bem a dimensão das catástrofes nucleares. As consequências das explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki são sempre lembradas toda vez que se fala na expansão do uso de energia nuclear. Ao trágico fato ocorrido no Japão, ao final da Segunda Guerra, somam-se acidentes entre os quais se destaca o ocorrido na usina de Chernobyl, na Ucrânia. Ali a demora do governo russo em evacuar a região próxima ao acidente resultou na morte de mais de 7000 pessoas além de um número muito maior de contaminações. Até hoje a usina de Chernobyl emite radiações perigosas, estimando-se que isso continue a ocorrer por mais ainda 100 anos. Estudos publicados por cientistas indicam que, nas próximas gerações, mais de 500 mil de pessoas possam continuar a ser afetadas pelas radiações emitidas em Chernobyl.
Como seria de se esperar as explosões em Fukushima reativam, em todo o mundo, as discussões sobre a construção de usinas nucleares. A Alemanha, a Índia e a Suíça declaram-se dispostas a rever suas políticas para usinas nucleares; num primeiro momento os Estados Unidos e a Rússia declaram não ter intenção de rever ou alterar suas políticas no setor.
No Brasil o prof. José Goldenberg tem sido um ferrenho adversário da construção de usinas nucleares. Em artigo publicado há pouco mais de um mês Goldemberg justamente destacava o perigo de acidentes e acrescentava que um país como o nosso que possui uma enormidade de recursos hídricos ainda inexplorados não precisa apelar para a energia nuclear.
De todo modo o assunto continua em aberto. Entre nós ainda pesam os casos de contaminação ocorridos em Goiânia, em 1987, provocados pelo Césio-137 de um equipamento radioterápico de um hospital, irresponsavelmente abandonado no lixo. Quanto ao caso de Fukushima só resta esperar e torcer. Louve-se a rapidez do governo japonês em evacuar a região, mas, infelizmente, a progressão dos fatos e suas consequências ainda são imprevisíveis.
O avanço da criminalidade
Pesquisadores das Universidades de Indiana e Pensilvânia publicam trabalho no qual associam características físicas cerebrais ao crime. Segundo informam o escaneamento de cérebros de psicopatas revelou terem todos eles amígdalas cerebrais 20% menores em tamanho que as normais. O mesmo foi verificado em crianças consideradas como problema por professores e pais. Destaque-se que as amígdalas cerebrais e o córtex pré-frontal são áreas ligas às emoções incluindo-se aí a culpa e o medo.
Falei sobre esse assunto ontem, destacando o perigo de estigmatizarão de pessoas e mesmo a familiaridade de trabalhos como esse com perigosas ideias eugênicas. Os programas de “limpeza racial”, historicamente praticados, basearam-se em teorias deterministas com resultados terríveis e de triste memória.
Entretanto, fica a pergunta: o que há com a cabeça de pessoas capazes de praticar gratuitamente crimes violentíssimos? Faço a pergunta por que estarrecido com um vídeo exibido esses dias na televisão no qual um rapaz foi assassinado de maneira brutal e inexplicável. Chegava ele em sua casa quando foi abordado por três bandidos. Ao abrir o portão, que dá para um corredor, os bandidos entraram e presume-se que se travou entre a vítima e os bandidos um rápido bate-boca. O fato é que os bandidos não prosseguiram em seu intento e saíram. Em seguida o rapaz dirigiu-se ao portão para fechá-lo. Foi nesse instante que aconteceu a tragédia: um dos bandidos, que já estava na rua, retornou e, friamente, alvejou o rapaz, desaparecendo em seguida. As cenas seguintes mostraram o rapaz no chão e o desespero dos pais tentando acudi-lo.
Tinha o rapaz 20 anos de idade e era estudante. Não resistiu ao ferimento e morreu. Deixou atrás de si uma morte estúpida, inexplicável, irracional. O bandido que retornou para matá-lo perpetrou o ato com grande naturalidade. Nenhum ser humano normal que tenha ainda que rasteira identidade com emoções como o amor, a culpa e o remorso faria aquilo. O assassino nada mais era que um ser humano despersonalizado, eclipsado de toda sorte de valores que regem não só a vida em sociedade como o respeito elementar à própria vida. Fez o que fez como faria qualquer outra coisa simples, certamente igualada em sua escala de valores a um assassinato.
Não se está aqui a concordar com os americanos que buscam em malformações cerebrais as raízes do comportamento criminoso. Nem se está a ponderar sobre a inculpabilidade de pessoas que podem ser consideradas irresponsáveis. Evidentemente, em casos como o acima narrado pesam fatores como a vida à margem da sociedade, a ausência de educação básica, a marginalização imposta pelo Estado, as condições de vida tantas vezes sub-humanas, os efeitos imediatos de drogas como o crack que levam indivíduos a atos escabrosos, doenças mentais, psicopatias etc.
O problema é que casos semelhantes repetem-se muitas vezes ao dia. Ontem mesmo uma senhora de 72 anos encontrou um ladrão na sala de estar de sua casa: assustada gritou e acabou recebendo um tiro que provocou a sua morte.
É realmente impressionante o número de assassinatos cometidos gratuitamente, bestamente. A noção de que isso pode acontecer a qualquer um é assustadora, enervante, inaceitável, tolhe as liberdades individuais e desafia o compromisso de segurança do Estado em relação aos cidadãos. Afinal, haverá algum tipo de solução para mal tão grande e absurdo, fator preponderante nas tragédias cotidianas que habitualmente assistimos?
Os novos lombrosianos
Cesare Lombroso (1836-1909), grande médico criminalista italiano, publicou, em 1876, o livro L’umo delinquente (O homem criminoso), pelo qual passou a ser conhecido como “pai do criminoso nato”.
Com seus conhecimentos de Antropometria e Anatomia Comparada Lombroso analisou crânios de pessoas de bem e assassinos nos quais considerou importantes aspectos como o ângulo facial, capacidade, circunferência, projeção anterior, arcos e curvas. Com os dados obtidos Lombroso descreveu aquela que seria a fisionomia da quase totalidade dos criminosos natos nos quais haveria preponderância de características como crânio pequeno, órbitas oculares de grandes dimensões, orelhas em forma de asa, supercílios salientes, mandíbulas desenvolvidas, resistência à dor etc. A essas características físicas somavam-se, no criminoso nato, aspectos psíquicos peculiares tais como ausência de remorso, vaidade excessiva, impulsividade, crueldade excessiva e gosto por tatuagens, jogo e bebidas.
Para Cesare Lombroso as características físicas presentes nos criminosos natos revelavam a proximidade deles com o macaco. Assim, os criminosos natos seriam um subproduto do atavismo, resultantes de cruzamentos em que predominara a degenerescência.
Lombroso fez escola em todo o mundo. No Brasil eram lombrosianos grandes personalidades médicas a começar por Raimundo Nina Rodrigues que teve entre seus discípulos Oscar Freire, Artur Ramos e muitos outros.
Do século XIX para o século XXI: Adrian Raine, da Universidade da Pensilvânia, e Nathalie Fontaine, da Universidade de Indiana (EUA), acabam de divulgar estudos vinculando a violência com áreas cerebrais nas quais são processados o julgamento moral e o medo da punição. A metodologia utilizada pelos dois pesquisadores foi a de escanear o cérebro de psicopatas, observando em particular a amígdala e o córtex pré-frontal, justamente as regiões ligadas a emoções como culpa, medo e remorso.
A conclusão a que chegaram Raine e Fontaine foi a de que os psicopatas estudados tinham amígdalas 20% menores que o normal. A mesma coisa foi constatada em cérebros de crianças consideradas problemáticas por pais e professores, daí derivando a ideia de que é possível reconhecer futuros criminosos em crianças muito pequenas. Destaque-se que , segundo os pesquisadores, crianças com amigdalas menores que o normal podem não se tornar bandidos, mas outros tipos de malfeitores, políticos corruptos, por exemplo.
Como se vê, tentativas de associação entre comportamentos criminosos e atributos físicos humanos não são novas. A proposta de escanear cérebros de crianças pequenas para identificar futuros criminosos ou desajustados atende a propósitos deterministas com o perigo de estigmatização irreversível e prejudicial a todas elas. É preciso lembrar que, por trás da roupagem de avanço científico, estudos dessa natureza traem familiaridades com métodos eugênicos de tão triste memória para a civilização humana. De um deles, praticado no período entre 1939-45, na Alemanha, resultou o genocídio de seis milhões de pessoas, tragédia inesquecível que, ainda hoje, atormenta tantas memórias.
Desastres naturais
Impactantes, as imagens de desastres naturais colocam-nos diante de nossa pequenez e impotência para reagir a algo por si só incontrolável. Creio que em nenhuma outra ordem de situações a vida se revela tão claramente como ela de fato é: acidental, efêmera, risco calculado de sobrevivência em meio a uma verdadeira selva de adversidades.
Você observa as imagens do tsunami que acaba de ocorrer no Japão e queda-se pasmado porque tudo o que vê, absolutamente tudo, é inacreditável. De repente a natureza decide varrer da superfície de uma determinada região os sinais de civilização. Tudo ocorre de modo emblemático dado que parece haver um plano sinistro de demonstrar que as conquistas da civilização nada representam diante da força incomensurável do planeta que temporariamente abriga a espécie humana. Veículos, casas, prédios, estradas, aeroportos, plantações e, principalmente vidas, são sumariamente destruídas por um movimento de águas que nada pode segurar e nada respeita. Um Deus mitológico ergue-se dos mares para brandir suas armas e destruir tudo o que encontra pela frente.
Não há como conter a emoção ao se presenciar tamanha desgraça. Não há como não curvar-se sobre si mesmo, num rodopio de interiorização não despido de horror e medo. O planeta está falando a língua que sabe e ela é violenta. No fundo dos oceanos placas tectônicas se movem e o resultado significa engolir porções de terra. Tal é a magnitude do esforço dispendido pelas placas que se movem que fala-se em desvio do eixo de rotação da Terra.
Enquanto isso, estamos aqui em cima, com os nossos valores, nossas querelas, empáfias, apegados à noção de eternidade que dá sentido à vida. Pensando bem, ainda bem que somos assim. Nada de desespero, amanhã será outro dia, o Japão resolverá os seus problemas e curará as suas feridas. Afinal, num dia triste como esse um pouco de otimismo não faz mal a ninguém.
Cinzas
Não sei se o padre está lá, mas deveria passar o dia esperando pelos pecadores do carnaval, ungindo suas testas com as cinzas da quarta-feira.
Um amigo me disse, certa vez, que a manhã mais silenciosa do ano é esta da quarta-feira. Na época o samba parava e o carnaval estava terminado. Nada mais restava aos foliões de então que não alguns momentos de remorso por alguns mal feitos ou impertinências de baile, tantas vezes envolvendo a mulher dos outros. Aquela bela cigana, enlaçada com um sujeito tão feio, por que não passou o carnaval comigo? Em que noite, em que baile, em que ano isso aconteceu? Carnaval é isso, confusão de memórias, ressaca eterna, promessa matinal de nunca mais beber, nem seguir adiante de mãos dadas no cordão dos desesperados.
Certa senhora, nascida de mal com a vida, odiava o carnaval. Dizia que era o tempo de Satã na Terra, o Tinhoso que espalhava tentações para o pecado, colhendo créditos para cobrar mais tarde na portaria do inferno. Era ela das primeiras a ir à Igreja na manhã de quarta que ela chamava de “quarta-feira de trevas”. Sempre vestida de negro, entrava na igreja e sentava-se na primeira fila de bancos para assistir, de camarote, o desfile dos pecadores arrependidos. Dizia que, entretanto, de nada valia o pedido de perdão depois da diversão: não se limpa roupa suja com o ferro de passar, é preciso lavar bem a alma para que Deus ouça e se apiede dos pecadores.
Conheci bem a essa senhora um tanto lúgubre, testemunha de pecados alheios, ela mesmo talvez pecadora grande que se tinha por pura. Morreu num desastre do qual não a preveniu seu anjo da guarda, talvez por ser novo de vez que ela dizia que essa categoria de anjos troca de posto a cada aniversário de seu protegido. E ela fizera aniversário – ou trocara de casca – poucos dias antes do acidente. Falo dessa senhora porque ela permaneceu para mim como figura símbolo da quarta-feira depois do carnaval, após o pecado coletivo.
Está em Bergson, primo por afinidade de Proust, que é possível recuperar os nossos “eus” passados desde que uma determinada circunstância nos coloque diante de uma situação vivida e esquecida. O gatilho para que voltemos a ser, ainda que só por um instante, aquilo que fomos depende de lembranças que se apagaram porque não eram importantes. Coisas periféricas e esquecidas podem, de um momento para outro, devolver-nos a nós mesmos, recuperando-se por instantes as pessoas que fomos, deixando de lado o ser que assumimos no presente.
O carnaval é uma boa época para que antigas fantasias que vestimos voltem ao nosso corpo, restituindo-nos as pessoas que fomos e deixamos de ser. Basta olhar para a multidão que passa, para a mulher seminua no carro alegórico e, de repente, temos trinta anos a menos e estamos correndo atrás daquela colombina destinada a desaparecer para sempre no meio de um bloco, como acontece aos seres que se tornaram imaginários.
Quarta-feira de cinzas! Quantas lembranças de carnavais passados, ah bons e velhos, talvez estúpidos, mas tão bem curtidos pecados!
Filme: Minhas mães e meu pai
O que acontece quando um rapaz de 15 anos de idade insiste em conhecer o próprio pai sobre quem apenas sabe que doou o esperma que o gerou?
Essa situação aparentemente banal serve como ponto de partida para uma trama complexa que envolve um conceito diferente de família. Um casal de lésbicas, Jules (Julianne Moore) e Nic (Annete Bening), que vivem juntas há 20 anos, fez uso do esperma de um mesmo homem, Paul (Marc Ruffalo) para engravidarem. Jules é mãe de Laser (Josh Hutcherson) e Nic mãe de Joni (Mia Wasikowska).
Joni e Laser são dois meios-irmãos, filhos de um mesmo pai ao qual não conhecem, criados por Jules e Nic. As relações estáveis entre essas quatro pessoas complica-se quando os dois jovens decidem procurar pelo pai. A entrada desse novo personagem no cotidiano da família desestabiliza a união de Jules e Nic. Paul é um sujeito interessante, dono de restaurante, que vê com bons olhos a chegada dos filhos cuja existência desconhecia. Para complicar Jules sente-se atraída por Paul que se apaixona por ela. Entre os dois estabelece-se uma relação íntima que acaba por ser surpreendida pela dominadora Nic, na verdade uma espécie de homem da família.
Como seria de se esperar a complexidade dos sentimentos que afloram tende a esgarçar as relações entre as pessoas, com desgastes inevitáveis. É em torno desses acontecimentos que gira o enredo proposto pela diretora Lisa Cholodenko cuja intenção, ao que parece, era de fazer uma comédia. Entretanto, o filme não faz rir, embora a boa dose de humor nas situações criadas. Na verdade o riso do espectador é contido por certo nó na garganta diante de uma situação que envolve a dramaticidade de uma relação comum, mas à qual não se está habituado. Visto de perto, o drama dos jovens que se ressentem da falta de pai sugere que a fuga da forma habitual de família pode ser problemática, sendo necessário muito jogo de cintura para que as pessoas envolvidas se adaptem à realidade que lhes é imposta.
Assim, paira sobre o filme o peso da família tradicional, também ela cheia de problemas, mas instituída como forma de relacionamento habitual. Laser e Joni, ao procurar pelo pai, mais que a um elo de suas existências, correm atrás do que é tradicional. Não são raros os momentos em que os jovens demonstram o seu estranhamento face ao casal de Jules e Nic. De fato, a união entre as duas não parece tão transparente ou aceitável a Laser que, por mais de uma vez, questiona detalhes do relacionamento.
Talvez realizado por ser mais leve “Minhas mães e meu pai” levanta questões que não resolve, deixando-as em aberto. Há muito de novo e inolvidável no modo de vida de uma família que foge ao padrão tradicional, mas que, nem por isso, deixa de ser uma família. Louve-se no filme a fuga a preconceitos e a liberdade de expressão que propõe reflexão àqueles que não aceitam formas diferentes de relacionamentos.
Por fim, importa dizer que acima de tudo está o amor entre as pessoas. A mensagem do filme parece ser a de que se as escolhas que fazemos nos fazem sofrer ainda assim compensam desde que exista o verdadeiro amor. É ele que mantém a família unida apesar das adversidades as quais, aliás, verificam-se em todas as configurações familiares, tradicionais ou não.
Corrupção no Brasil: mal incurável?
Está aí para todo mundo ver mais um vídeo sobre corrupção. Desta vez mostra-se a deputada Jaqueline Roriz (PMN-DF) recebendo dinheiro. Jaqueline, filha do ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz, ao lado do marido, recebe o dinheiro das mãos de Durval Barbosa, ex-secretário de Relações Institucionais do Distrito Federal. Para quem não se lembra, Durval é o delator do chamado “mensalão do DEM” que derrubou o governador José Roberto Arruda.
O mais interessante é que o vídeo de forma alguma causa indignação. Na verdade a cerimônia de entrega do dinheiro ilegal não impressiona porque, como acontece com cenas repetitivas, é cansativa. Além do que os brasileiros já tiveram oportunidade de assistir a cenas mais dramáticas como aquelas de dinheiro sendo escondido dentro das meias etc.
Mas o que causa mesmo indignação é o fato de assistir-se a uma coisa dessas sem indignar-se porque isso atesta a existência de certo padrão de comportamento incorporado, talvez de desilusão diante de algo que parece prolongar-se infinitamente. O fato é que sabemos, de antemão, as marchas e contramarchas que se seguirão, as apurações, as imunidades e interesses em jogo, a lentidão da Justiça. No fim das contas cairemos no fosso de sempre. Não é que o próprio ex-presidente da República nega a existência daquele outro mensalão, envolvendo Marcos Valério e políticos de primeira grandeza no cenário nacional? De que valeram tanta tinta gasta, manchetes de jornal, capas de revista e noticiários se tudo continua mais ou menos como dantes no quartel de Abrantes?
E aí estão políticos acusados de corrupção, pessoas que renunciaram para não serem cassadas (não seria melhor com cedilha?), reeleitas e fazendo parte de Comissões de Ética. Para explicar essa contradição disse um político: os que estão aqui no momento são pessoas dignas, aprovadas pelo voto popular e, portanto, podem realizar os trabalhos da casa.
Pode ser que a corrupção um dia venha a ser extirpada do Brasil. No momento ela se assemelha ao óleo que lubrifica as engrenagens do poder que, assim parece, não funciona sem conchavos, acordos, pagamentos ilícitos, compra de votos, verbas mal destinadas, compadrio e tudo o que se relacione à má gestão dos negócios públicos.
Mas, o país resiste. As trombetas estão a todo vapor pelo PIB do ano anterior, embora, na média dos últimos anos, o mesmo PIB seja inferior ao de épocas passadas. Os cortes de orçamento são benvindos, afinal há que pagar com suor a gastança realizada para vencer eleições.
De uma coisa estou certo: a minha geração não verá um país diferente, com pessoas públicas cuidando, em primeiro lugar, dos interesses coletivos.
Na rua ou no salão?
E aí? Pronto para rasgar a fantasia? A coisa começa hoje a noite embora já esteja rolando quente por esse Brasil afora. Ontem Salvador já estava em festa porque a chave da cidade foi entregue ao Rei Momo. Pronto: chave na mão do Rei e a folia foi autorizada. E lá vieram os trios elétricos com toda aquela parafernália de equipamentos de som. O barulho era tanto que os holandeses que invadiram a Bahia no século XVII quase se levantaram nos cemitérios.
Coisa louca a atividade dos “cordeiros”, os carinhas que cuidam da corda que separa o pessoal dos blocos da turma da pipoca. O pessoal dos blocos é o mais endinheirado, gente que compra os abadás e garante o direito de brincar dentro do limite das cordas. Fora delas fica a multidão que forma a pipoca, marchando firme atrás do trio elétrico. Pois é, amigo, carnaval de rua não é exatamente uma festa da igualdade…
Mas não é hora de pensar em diferenças sociais porque a Praça Castro Alves é do povo, como diz a letra daquela música do Caetano Veloso. Aliás, você já “sentiu” a Praça Castro Alves?
Da Bahia para o Brasil, para a invasão do “Galo da Madrugada” no Recife. Gente, o “Galo” é simplesmente demais, esse sim capaz de trazer de novo da Holanda o Maurício de Nassau para por ordem na cidade. Quando o “Galo” está nas ruas só uma nova invasão holandesa para resolver. O “Galo” é o maior bloco do mundo, com direito a reconhecimento no Guiness Book. Na alucinação de um frevo rasgado mais de trinta trios elétricos arrastam uma multidão que não deixa espaços para nada. Viva o “Galo da Madrugada”. A benção grande compositor Nelson Ferreira, autor dessa maravilha de frevo que é “Evocação nº 1”:
Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
E era o sucesso dos tempos ideais
Do velho Raul Moraes
Adeus adeus minha gente
Que já cantamos bastante
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia
Do Recife para as ruas de Olinda, por que não? E lá vêm os bonecos gigantes acompanhados pela multidão. Quem abre o carnaval de Olinda é o “Homem da Meia-Noite” com seu dente de ouro, trajado com terno verde e cartola. Irresistível, fenômeno a céu aberto da imaginação e folclore de um povo gerado pela fusão de muitas etnias, alegre, festivo, talvez inexplicável.
E chega. Depois disso tudo creio que você não terá outra opção que não a de se sentir parte integrante dessa loucura e sair por aí para se divertir.
Então, amigo, você vai se esbaldar na rua ou no salão?
Livros de Stephen King
Para o escritor argentino Julio Cortázar um conto é verdadeiramente bom quando não nos esquecemos dele. Não sei dizer se o conceito se aplica a romances. Em todo caso, não há como olvidar os enredos de alguns romances de Stephen King.
Stephen King é um mestre do horror, popular em todo o mundo, grande vendedor de livros. Algumas de suas histórias serviram de enredo a filmes. Quem não se lembra de “Carrie, a Estranha”, a menina que acaba com uma festa e mata a maior parte de seus colegas de escola, fazendo uso de seus superpoderes?
O mundo de Stephen King é povoado por acontecimentos extraordinários e seres submetidos a situações nas quais o sobrenatural é a regra do jogo. King é criador que tece devagar e pacenciosamente a teia de fatos normais que conduzem a momentos de grande impacto nos quais o horror é celebrado em toda a sua magnitude. Quem leu “O Iluminado”, sabe perfeitamente como as coisas se passam sob a pena do mestre do horror. O escritor que vai com a família tomar conta de um hotel nas montanhas, durante o inverno, quer apenas reclusão para escrever. Não sabe ele que o hotel é assombrado e que ali conviverá com acontecimentos terríveis que o levarão a, talvez, encontrar-se consigo mesmo.
Nada é por acaso nos textos de King. Como um tecelão que multiplica fios aparentemente disformes em sua máquina, o escritor conduz o leitor através de labirintos para que, ao final, tudo se encaixe num tecido ilógico, mas possível que é a substância do mais puro horror.
Há quem considere as histórias de horror um gênero menor. Críticos importantes chegam a desqualificar a literatura fantástica sem que isso interfira na grande atração que o gênero desperta em leitores e cinéfilos. Entretanto, há que se diferenciar o terror de boa qualidade das produções que abusam de clichês nos quais o maior investimento se dá no sentido de provocar sustos. Infelizmente, a maioria dos filmes de horror produzidos atualmente ressente-se desse mal. Há sempre um corredor escuro e a mulher ou criança desavisada que caminha para receber e transmitir ao espectador o impacto de algo desconhecido e violento.
Não li todos os livros de Stephen King, mas um deles me impressionou bastante. Trata-se de “O Cemitério” história terrível na qual cadáveres enterrados num antigo cemitério ressuscitam. Entretanto, os que voltam da morte não se comportam exatamente como eram quando vivos e nessa direção as situações de horror se adensam, atraindo o leitor.
Em relação a “O Cemitério” pode-se dizer que a ideia não é exatamente original. Um dos mais importantes e melhores contos de horror chama-se “A pata do macaco”, de autoria de W. W. Jacobs. Trata-se de um clássico das histórias de terror na qual um casal de idosos perde um filho em acidente numa mina. As surpresas começam quando o casal recebe a visita de um estranho que dá a eles, de presente, uma pata de macaco. Pode-se dizer que Stephen King inspirou-se na história de Jacobs quando escreveu “O Cemitério”.
O mais recente romance de Stephen King, chama-se “11/22/63”, justamente a data do assassinato do então presidente norte-americano John Kennedy. Em “11/22/63”, um professor de 35 anos de idade viaja no tempo com a intenção de impedir o assassinato de Kennedy. O livro será lançado em novembro nos EUA e não há, por enquanto, previsão de data para que chegue ao Brasil.
O conto “A pata do macaco” faz parte de algumas coletâneas de histórias de terror publicadas no Brasil. Os interessados também podem ler o conto na internet, encontrando-o facilmente com o uso de ferramentas de busca. Quem tiver a oportunidade de ler “A pata do macaco” possivelmente concordará com a classificação de Julio Córtazar para contos verdadeiramente bons porque, certamente, jamais se esquecerá da história do casal que recebe de presente uma pata de macaco.
João Vieira
Veio aí o João Vieira, saído de uma página qualquer do passado. O João Vieira é aquele cabra de quem se diz que cinco cascavéis atacando o homem ao mesmo tempo não dão nem para o cheiro. Cabra valente, curtido nas entranhas desse Brasil que não conhecemos bem, viajante de trajetos vicinais, resistente a sóis abrasivos, titular de boleia de pau-de-arara.
De onde veio ninguém sabe direito, acho que nem ele mesmo. Da vida passada um rosário de aventuras pitorescas como aquele caso de ter dado de presente à mulher um bonequinho pelado com o “pirulito” duro. Não é que a mulher, a “Véia” achou aquilo uma indignidade e tacou o bonequinho, na força toda dela, bem na testa do João Vieira? Depois ele andou por aí com a ferida na testa, disfarçando e inventando história quando algum curioso perguntava a ele sobre o acontecido.
Cabra bom o João Vieira, amigo dos amigos, dessas inteligências e sensos críticos desenvolvidos fora da escola, que de ler e assinar ele sempre soube só um pouco. No mais atravessou o mundo com a dignidade de homem pobre que nunca se curva, serviçal sim, mas nunca no limite de desrespeito a si mesmo.
Então o João Vieira reapareceu hoje, vindo do mesmo cafundó onde morou nos últimos anos, lugar impossível de encontrar, bem ali depois de tantos barracos, mas na casinha dele de que tanto se orgulha. Não veio forte como antes e o sorriso que sempre teve nos lábios não estava com ele dessa vez.
João Vieira sentou-se e não reclamou da vida que reclamação não é coisa de homem, não senhor. Mas, estava abatido, melhor dizendo sofrido, ao que pode acrescentar envelhecido. Apertou a minha com a mão dele sempre áspera, mão curtida no trabalho. E foi me dizendo que viera procurar o amigo por necessidade além de seu alcance, coisa que não era para ele, por isso não se vexava. Contou que uma desgraça acontecera: a “Véia” ficara paralítica e não conseguia sair da cama. Por isso, ela precisava de uma cadeira de rodas, coisa além das suas posses.
Fiquei sabendo que o João Vieira recebe aposentadoria, mas o dinheiro todo acaba com a comida e remédios. E, pela primeira vez, vi uma lágrima correr ligeira do canto do olho do João Vieira que, muito depressa, empertigou-se, cortando o fluxo que já vinha, desafiando o jeito duro de ser dele.
Acalmei o João Vieira, disse a ele que vou ver preços, prometi dar uma força. Foi a única vez que aquele sorriso meio debochado de quem ri da vida apareceu na cara dele, meio truncado, mas bem coisa do João Vieira.
Não faz nem uma hora que o João Vieira se foi, voltando para aquele não-se-sabe-onde no qual ele hiberna. Já ia saindo quando se voltou e me disse que não abandonará a “Véia” de jeito nenhum:
- A coisa que ela mais adora é a Igreja. Com a cadeira vou levar ela para ver missa. Até o fim, meu ou dela, vai ser desse jeito. Somos só nós dois nesse mundo, sabe?