Arquivo para junho, 2011
Aposentadoria para campeões mundiais de futebol
Troca de farpas entre os ex-jogadores de futebol Carlos Alberto e Tostão a respeito da aposentadoria para campeões mundiais de futebol a ser paga pelo Estado. Tostão declara ser contra e desde já se recusa a receber o pagamento caso venha a ser aprovado. Baseia-se ele no fato de que além de não ser responsabilidade do Estado pagar o benefício este teria que ser estendido a campeões de outras categorias esportivas que não o futebol. Carlos Alberto lembra que jogadores que deram grandes alegrias ao país e hoje precisam não podem ser abandonados. Por essa razão desanca palavrório contra Tostão, a seu ver médico e comentarista esportivo, que desdenha por não precisar de ajuda.
Na verdade não há porque o contribuinte arcar com mais essa despesa do Estado, seja ela de quanto for – Carlos Alberto relaciona apenas 35 pessoas que precisam do auxílio. Entretanto, o problema é complexo. Destarte a discussão sobre a concessão ou não de privilégios o fato é que a carreira de jogador de futebol é curta e boa parte, senão a grande maioria, dos jogadores simplesmente parece ignorar esse limite. De modo que, frequentemente, ouvimos histórias sobre antigos ídolos que hoje vivem na quase na miséria - recentemente um jogador, ídolo da torcida são-paulina, declarou viver de favor em casa de um amigo, confessando ter dissipado tudo o que ganhou com carros e mulheres. Acrescente-se que ex-jogadores das seleções de 58, 62 e 70 atuaram numa época em que não se praticavam os salários delirantes pagos aos atletas de destaque hoje em dia. Além disso, não há como negar que a convivência com o estrelato em idade muito precoce gera em pessoas quase sempre mal preparadas, como os jogadores de futebol, ilusões de glória e facilidades eternas. Daí que poucos deles acabam tendo vida condigna após deixarem um esporte raramente praticado após os 35 anos de idade em âmbito profissional.
Mas, o que tem a ver o contribuinte com tudo isso? Que temos a ver com a falta de preparo e a imprevidência de pessoas que se tornaram célebres e não tiraram proveito duradouro da celebridade? Bem, não dá para negar que nada temos a ver com isso. Entretanto, somos um povo dos trópicos quentes e a frieza não faz parte do nosso temperamento. Daí que é sempre doloroso ouvir a respeito de pessoas que admiramos tanto e que no momento, envelhecidas, passam por dificuldades. Deram-nos elas alegrias e quantas. Aquela seleção de 58, por exemplo, que redenção teve a conquista dela em relação à nossa noção de terceiro-mundismo irreversível. Que afirmação de força, de sentimento nacional, de crédito a nós mesmos nos trouxe a conquista na Suécia.
Por tudo isso a razão parece não estar com Carlos Alberto, nem com Tostão. Dado que não há que se ignorar o destino de personalidades que deram glória ao país no esporte a solução talvez esteja na regulamentação de algum tipo de previdência para atender a casos como os acima mencionados. O modus operandi do processo possivelmente sairá de sugestões de especialistas, envolvendo mecanismos que se julguem apropriados. Se assim for não estaremos diante de benefícios exclusivos a um grupo de pessoas que, no final das contas, são brasileiros como tantos outros que lutam diariamente pela sobrevivência.
A jaqueta de Michael Jackson
O nome do lugar é Beverly Hills. É lá que se fazem leilões para vender pertences de gente famosa que, como se diz por aí, “já não estão entre nós”.
Tempos atrás foi aquele inesquecível vestido pregueado que Marylin Monroe usou no filme “O Pecado Mora ao Lado”. Todo mundo conhece a cena: o vento gerado pelo movimento de um trem passa pela grade da calçada sobre a qual está Marylin e levanta o vestido dela. Pronto: eis aí a eternidade surgindo de repente, sem aviso.
Milhares e milhares de fitas de celulose têm sido gastos para gravar – hoje tudo é digital - uma infinidade de filmes com cenas de todos os tipos. Entretanto, pode-se dizer sem medo de errar que a cena de Marylin na calçada, vestida de branco, sempre estará entre as melhores já filmadas, qualquer que seja o critério de escolha. E não é para menos: haja sensualidade, por isso Marylin foi, é e sempre será um mito.
Bem, esperava-se pelo vestido uma oferta de US$ 1 ou 2 milhões: foi arrematado por US$ 4,6 milhões. Só para constar: o vestido vermelho de Marilyn, de “Os Homens Preferem as Loiras” foi comprado por US$ 1,2 milhão.
Agora foi a vez de Michael Jackson. Lembra-se do casaco que ele usou durante a gravação de “Thriller”? Aquela jaqueta vermelha de couro? Ela mesma e sabe por quanto? Por US$ 1,8 milhão.
Quem arrematou a jaqueta do Jackson foi um empresário do ouro do Texas. Muito feliz com a aquisição ele declarou tratar-se de uma das mais importantes peças de memorabilia rock ‘n’ roll da história. No mesmo leilão foram arrematados outros objetos que pertenceram a Michael Jackson, entre eles uma luva de cristal que saiu pela bagatela de US$ 330 mil.
Tudo bem que o casaco usado pelo Michael Jackson é uma peça significativa da cultura pop como declararam os leiloeiros. Verdade, também, que, como foi dito, nenhum outro casaco é tão facilmente reconhecível ou tão relevante à história da moda. Mas, US$ 1,8 milhão?
Eis aí uma questão cuja profundidade escapa à maioria das pessoas entre as quais me incluo. Se perguntarmos a um adversário do imperialismo norte-americano sobre a venda do casaco é possível que ouçamos a velha ladainha dos males e deformações do capitalismo, críticas sobre a concentração da riqueza nas mãos das elites dominantes e por aí afora. Psicólogos encontrarão desvios na alma de pessoas que se entregam ao desvario de compras assim e haverá quem relacione a aquisição de pertences de celebridades a fetiches e coisas do gênero. Por outro lado, fãs de Michael Jackson dariam a vida para ter ainda que fosse uma meia suja usada pelo ídolo.
O que me leva a confessar um malfeito que fiz, muitos e muitos anos atrás. Uma prima adorava determinado cantor brasileiro que tinha por ídolo. Certo dia vi a assinatura do cantor na capa de um disco e fiz uma imitação razoável dela num guardanapo. Foi essa imitação que entreguei à minha prima, dizendo que por acaso vira o cantor e pedira a ele um autógrafo exclusivo para ela.
Era uma brincadeira que eu me propunha a esclarecer logo em seguida. Mas, a minha prima de tal modo ficou feliz com aquilo que não tive coragem de contar a verdade a ela. Era para ser um trote, ficou como verdade. Éramos muito jovens na época e não sei se ela ainda mantém nos seus guardados o tal guardanapo. Em todo caso eis que, via jaqueta de Michael Jackson, estou finalmente confessando o meu malfeito.
A minha opinião sobre o leilão da jaqueta do Michael? Cara, coisa estranha, muito estranha.
As tchecas estão nuas
- Você viu as tchecas nuas?
- Rapaz, eu nunca vi uma tcheca, ainda mais nua.
- Olhe aqui, eu não estou falando das “Tchecas do Brazil”, as do “Pânico”. Aquelas duas nem mesmo são tchecas: são inglesas e montaram um blog, tudo contratado pela Companhia Brasileira de Bebidas Premium. Nessa o “Pânico”, que goza com a cara de todo mundo, é que foi gozado: o reality show deles com as falsas tchecas era patrocinado pela AMBEV, concorrente da Premium. Demais, as tais “Tchecas do Brazil” não apareciam nuas, apesar do belo físico delas, é bom que se diga.
- Que tchecas são essas então, as nuas?
- Tô tirando você: elas não estão nuas. Na verdade a coisa toda aconteceu porque uma loja de Praga, chamada Desigual, prometeu duas peças de roupa grátis para as primeiras 100 pessoas que aparecessem lá vestidas apenas com roupas de baixo. E veio uma multidão, moçada de ambos os sexos.
- E dai?
- Daí que é muito engraçado ver aquela mulherada toda só de calcinha e sutiã na porta da loja, isso sem falar nos rapazes de cueca.
- E você achou isso interessante?
- Cara, eles são tchecos. Está no jornal que a antiga Tchecoslováquia foi desmembrada pela tal Separação de Veludo em República Tcheca e Eslováquia. Aquela turma na porta da Desigual é da República Tcheca.
- Você fala dos tchecos como quem viu marcianos…
- É no que dá falar com um cara insensível como você. Cara, a Tchecoslováquia era parte da Cortina de Ferro. Pensar em tchecos sempre foi imaginar uma turma encapotada para se proteger do frio, andando no meio da neve, todo mundo quietinho porque com os russos ninguém brincava. De repente aparecem os tchecos quase pelados, umas meninas muito bonitas quase em pelo e rapazes de olhares gulosos no meio delas. Meu avô diria que isso é sinal de que o mundo está acabando.
- Culpa do Gorbatchev.
- Não sei não. O que importa é que não só existem tchecas como elas estão seminuas.
- Seminuas ou nuas?
- Não enche. As fotos estão na internet. Dê uma espiada.
Cotidiano
As notícias do dia são as de sempre e não têm graça. Afora terremotos e vulcões que ultimamente deram para se manifestar sem a menor cerimônia, tudo segue com a previsibilidade esperada. Aqui a velha discussão sobre o sigilo eterno de documentos considerados ultrassecretos pelo governo. Projeto aprovado em 2010 limita por 50 anos o tempo que os documentos podem ficar em sigilo. A nova proposta, em trânsito no Senado, estabelece prazo de 25 anos, prorrogáveis por mais 25. No meio da discussão figura a posição da presidente da República, no começo favorável à ideia, mas que recuou depois de sofrer pressão de aliados. A ver.
Também se fala muito sobre o Santos que derrotou o Penarol por 2X1 e conquistou a Taça Libertadores da América. Quem estava na cidade de Santos na noite em que foi realizado o jogo presenciou a uma rara explosão de alegria popular. O brasileiro é dado a soltar foguetes, mas haja foguete quando o que está em jogo é a Taça Libertadores. A cidade não dormiu, pessoas gritavam madrugada adentro e houve quem visse o amanhecer embriagado com a vitória.
Do que não se esquece mesmo é do Cesare Battisti agora portador de cidadania brasileira, estando apto a morar e trabalhar no país. Protestos na Itália, indignação no Brasil, mas a nave da vergonha segue sem abalos, confiante no seu indestrutível casco que tudo abriga e a tudo resiste.
Vereadores de São Paulo propondo grande aumento de salários para si próprios ao prefeito, esse Kassab que a cada dia nos surpreende afastando-se da imagem dele à qual estávamos habituados.
No mais, crimes e mais crimes, barbaridades incontáveis que proliferam num país de leis fracas. Nenhuma novidade, portanto. Só a mesmice de coisas que poderiam ser mudadas, mas que ficam como estão. Ah, ia me esquecendo, já despontam na mídia artigos falando do grande golpe que a FIFA aplica em países como a África do Sul e o Brasil, tudo sob a cobertura do ufanismo nacional e o beneplácito das autoridades. Trata-se de uma história de milhões e milhões que, obviamente, envolverão os cofres públicos, em resumo o meu e o seu dinheiro, amigo contribuinte.
Livro: Machado de Assis por dentro
Ao vasto universo de estudos machadianos soma-se, agora, o livro do escritor Gilberto de Mello Kujawski que recebeu o feliz título de “Machado de Assis por dentro”. Explica-nos Kujawski que Machado de Assis abriga em si muitos “dentros” daí a escolha do título. De fato, o chamado “Bruxo do Cosme Velho” é homem e escritor de muitas facetas, algumas delas ainda não devidamente exploradas. É nesse hiato que se insere o livro de Kujawsky, avançando em territórios tidos por explorados e esgotados, mas deitando novas luzes sobre a obra de Machado de Assis.
Entretanto - é bom que se diga - não se trata de uma simples revisita ao universo machadiano. Aqui não se repetem interpretações exaustivas que, decoradas, passaram a pertencer ao domínio público. Kujawsky navega em mares revoltos com destemor, frequentemente deixando de lado conclusões já sedimentadas, por vezes confrontando-as com argumentos de fina análise. Esse é o caso, por exemplo, do chamado “enigma de Capitu” que tem apaixonado gerações de críticos e despertado calorosas discussões. Para Kujawsky todo o barulho em torno do assunto carece de sentido dado que a possível traição de Capitu prende-se ao perfil do escritor Machado de Assis, definido como um “profissional da dúvida”. Em assim sendo, Machado criou e legou à posteridade uma situação de fato insolúvel dado que nem ele mesmo seria capaz de dizer se Capitu traiu ou não. Nesse fato toda a bruxaria que se atribui ao escritor, mestre em expor as mazelas humanas como a se deliciar com as imperfeições.
Há que se destacar, também, que o livro impressiona pela análise filosófica dos textos machadianos a partir da qual Kujawsky busca aproximar-se do grande escritor. Trata-se do “por dentro” exercido sob o viés filosófico, área de domínio do crítico. Ao caracterizar Machado de Assis como um clássico em moldes apolíneos Kujawsky propõe a releitura de aspectos importantes da obra machadiana ligados ao humor, o ceticismo, o ateísmo ou o agnosticismo, o pessimismo e assim por diante. A partir daí nada escapa à análise do crítico para quem Machado de Assis recebeu da cultura grega dois legados: o humanismo e a supremacia da razão, fatores esses determinantes da obra que escreveu.
Demais forçoso é dizer que o texto justamente não nos surpreende dada a conhecida cultura filosófica de Kujawski, representante do pensamento de Ortega y Gasset entre nós. Munido de ferramentaria intelectual extremamente vigorosa Kujawsky invade, sem cerimônia, o espaço interno dessa alma multiforme que foi Machado de Assis, condição que abre muitas possibilidades de análise. É assim, por exemplo, que nos é apresentado um Machado de Assis vivendo numa réplica da sociedade vitoriana que Pedro II procurou instalar no Rio de Janeiro. Nesse contexto Machado de Assis é interpretado como um caçador das transgressões que minavam a falsa moral vigente na Corte. Para Kujawski Machado seria a um só tempo crítico e cúmplice da situação reinante, jamais algoz ou inquisidor. Movia-o a formação humanista que não permitia a ele compactuar com a farsa e a mentira. Escreve Kujawski:
“Servindo-se da lâmina cortante da ironia, Machado descobria e analisava, metodicamente, os fundos falsos, a comédia da hipocrisia, o teatro do farisaísmo que o cercava por todos os lados”.
“Machado de Assis por dentro” é publicação da Editora Migalhas e apresenta-se constituído por dez ensaios, cada um deles voltado a aspectos diferentes da obra machadiana, mas tendo como elo de ligação o perfil clássico do Bruxo. São ensaios saborosos, profundos e que fazem pensar. Acompanham-se da erudição do seu Autor sem que ela se imponha como demonstração de conhecimento ou arrogância: aqui a erudição não passa de complemento necessário à elucidação do enigma, ferramenta de que faz o uso o escritor para aproximar-se do totem e dele extrair a essência.
“Machado de Assis por dentro” é excelente livro, obra de valor que tem profundidade de análises, novidade de pontos de vista e fecunda participação de conhecimentos filosóficos. Livro de quem “sabe Machado” e por ele foi irremediavelmente encantado, legando-nos textos deliciosos de ler, que nos fazem refletir.
O “Retrato do Brasil” de Paulo Prado
“Retrato do Brasil” livro de Paulo Prado, publicado em 1928, permanece como leitura obrigatória aos interessados em compreender o país. A estirpe a que pertence o “Retrato do Brasil” é a de obras que procuram explicar o país, buscando no passado as raízes do modo de seu modo ser. Por essa razão Paulo Prado é sempre incluído nas coletâneas de ensaios sobre os chamados “intérpretes do Brasil” figurando ao lado de nomes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
Se é verdade que “Retratos do Brasil” se ressente da falta de contato com as modernas linhas sociológicas já em andamento na época em que foi escrito, ainda assim não se pode negar seu valor. Embora as críticas que se fizeram ao livro já ao tempo de sua publicação e as que foram acrescentadas posteriormente o livro permanece dado seu vigor polêmico e o que representou dentro da estagnação cultural brasileira nos anos 20 do século passado. Se por um lado a Semana de 22 imprimira grande sopro de renovação na produção artística do país o fato é que seus efeitos não foram imediatos, afinal existia toda uma tradição romântica a ser removida e deixada para trás.
O retrato que Paulo Prado fez do Brasil é contundente. Começa o autor caracterizando o brasileiro como um povo triste a viver numa terra radiante. A partir daí propõe-se a buscar no passado as razões da tristeza, enfeixando-as em três grandes pilares: a luxuria, a cobiça e o romantismo.
O quadro que Paulo Prado traça sobre a luxúria é desconcertante. Servindo-se de depoimentos de autores do passado Prado faz reviver o homem português do tempo da Colônia, nada mais que um aventureiro o qual, afastado das injunções sociais europeias, encontrou no novo continente terreno fértil para a prática de toda sorte de desregramentos. Na falta de mulheres brancas ligou-se ele às índias e, depois, às negras trazidas ao país como escravas. Desse desregramento e da sensualidade exacerbada surgiram as nossas primeiras populações mestiças. Segundo as palavras do autor, referindo-se à terra – possível paraíso - e aos homens que nela viveram:
“Paraíso ou realidade, nele se soltara, exaltado pela ardência do clima, o sensualismo dos aventureiros e conquistadores. Aí vinham esgotar a exuberância de mocidade e força e satisfazer os apetites de homens a quem já incomodava e repelia a organização da sociedade européia. Foi deles o Novo-Mundo. Corsários, flibusteiros, caçulas das antigas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remissos, pobres diabos que mais tarde Callot desenhou, vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas, em suma, na expressão moderna, e insubmissos às peias sociais, — toda a escuma turva das velhas civilizações, foi deles o Novo-Mundo”.
À luxúria somava-se a cobiça, busca de enriquecimento rápido. A ilusão da existência de grandes tesouros impulsionou o movimento de aventureiros que partiram em direção ao interior. Mas, os bandeirantes não eram movidos pelo desejo de conquista do território ou mesmo amor ao país. Na verdade tratava-se de missões coletoras, interessando aos aventureiros o ouro e nada mais, deixando atrás de si focos de lavoura incipiente e comércio rudimentar. Depois de dois séculos de busca infrutífera os aventureiros lograram descobrir as minas de ouro de Minas Gerais. Dali sairia o ouro que alimentaria a metrópole e deixaria na colônia um rastro de pobreza.
Luxúria e cobiça, esteios da história do Brasil, pais cujo destino ficara atado ao seu passado colonial. Luxúria, cobiça: melancolia - traço do caráter inconfundível do caráter dos brasileiros, um povo triste.
Por fim, o romantismo. Foi num país “precocemente depauperado, exposto às mais variadas influências mesológicas e étnicas” que se assentou o mal romântico. Dele derivam os maus hábitos intelectuais dos brasileiros quais sejam o preciosismo da linguagem voltada para a grandiloquência, o lirismo pessimista e a retórica política:
“Entre nós, o círculo vicioso se fechou numa mútua correspondência de influências: versos tristes, homens tristes; melancolia do povo, melancolia dos poetas. A nossa primeira geração romântica já fora triste, porque religiosa e moralizante, observou José Veríssimo; na segunda, a tendência se acentuou pelo cepticismo e desalento dos chefes da escola. Perseguia-os a ideia contínua da morte próxima e, como a uma mulher desejada, lhe faziam versos amorosos”.
O livro termina com um “Post scriptum” no qual Paulo Prado propõe uma saída para a situação do país. Segundo acreditava a solução estaria na realização de uma revolução cujo resultado seria a ruptura com o passado através de transformações radicais nos campos político, econômico e intelectual.
Paulo Prado publicou o seu livro dois anos antes da Revolução de 30 da qual viria a discordar. “Retrato do Brasil” veio à luz num momento em que urgiam reformas dado o esgotamento da política oligárquica que ficou conhecida como “Política dos Governadores”. Prado pertencia a uma rica família de cafeicultores paulistas e fora um dos mentores e propulsores da Semana de Arte Moderna de 22. Seu livro carece de uma visão mais ampla dado que certos aspectos são deixados de lado, mormente o econômico. Nesse sentido a década seguinte, a de 1930, seria mais pródiga em estudos sobre o país, destacando-se a publicação de três que teriam, daí por diante, profunda influência sobre o pensamento brasileiro: Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior.
Receitas fáceis
Fico meio enjoado quando leio sugestões de receitas fáceis, indicando que qualquer um pode executá-las. Basta ter ingredientes, um fogão meia-boca com forno, pouco ou nenhum trato com culinária, capacidade de selecionar as medidas certas e muita, muita boa vontade.
Dirão que não é assim, afinal receitas fáceis destinam-se a quem está habituado com a cozinha. Então o melhor é colocar advertências acompanhando essas receitas, avisando a homens que vivem sós e não têm trato familiar com panelas e fogões para que não tentem executar as fórmulas recomendadas.
A vida é imprevisível. Relações aparentemente sólidas desfazem-se de repente, assim como certos doces simplesmente desandam. Mesmo as pessoas mais experientes podem deixar passar do ponto um doce-de-leite ou um simples chantili. Aquele doce de banana que a minha avó fazia era uma delícia só dela, feito pelas mãos dela. Ela sabia, com incrível precisão, o momento de tirar o doce do fogo com isso emprestando a ele um sabor raro e inconfundível. Pois as relações entre pessoas também são assim, de uma hora para outra passam do ponto e eis um homem de quarenta anos ou mais restituído ao mundo, tendo que dar conta de suas próprias roupas e, pior, de sua alimentação.
A legião de homens que está passando ou já passou por isso conhece muito bem o caminho. No começo a coisa se resolve com comida de restaurantes até que isso cansa e, na falta de quem cozinhe, o cidadão decide vencer o grande obstáculo e cozinhar. É bom que se diga logo: talentos desconhecidos se revelam desse modo. Entretanto, na grande maioria dos casos, o que se tem é um inevitável desastre que começa com aquelas comidas semiprontas as quais, como está escrito na embalagem, basta colocar no micro-ondas. O resultado é uma comida insossa que dá para ir levando por uns dias até que enjoa. É nesse momento que o pobre sujeito decide apelar para as tais receitas fáceis e, aí sim, o inferno começa. Raramente a coisa dá certo e ponto final: não são necessárias maiores explicações sobre as tragédias culinárias que passam a ocorrer.
Escrevo essas linhas porque nesse exato momento um amigo está nessa situação. Vindo de casamento que julgava estável, pai de dois filhos, acomodado, eis que a surpresa do desgaste de sua relação com a esposa – desgaste que ele recusou-se a perceber, diga-se – abateu-o. Seguiu-se a rotina que termina e começa ao sair de casa, a nova vida num flat que se julga transitório, as noites imprecisas nas quais não se sabe bem o que fazer nem para onde ir, a procura dos velhos amigos com que se perdeu contato, a busca de uma situação que devolva a vida aos eixos de sempre.
Dias trás o meu amigo me procurou e falou-me longamente sobre as mazelas do seu dia-a-dia. Naturalmente os assuntos foram a mulher dele a quem diz amar muito, o ciúme e medo de que ela tenha alguém, enfim os comemorativos tão bem conhecidos e dolorosos que acompanham situações como a dele. Depois a conversa derivou para coisas práticas e descambou para o tema das refeições, dizendo-me ele que não aguenta mais os restaurantes etc. Foi nesse ponto que declarou sua pretensão de aprender a cozinhar, dizendo que existem receitas fáceis e por aí foi.
Pelo que sei o meu amigo nunca tentou fritar um só ovo e a cozinha é para ele departamento tão complexo quanto a central de cálculos para a construção de espaçonaves da NASA. Entretanto, não tentei demovê-lo de sua intenção, quem já esteve no lugar dele sabe que há que se tentar de tudo, afinal a vida continua, as madrugadas são imensas, a dor maior ainda, mas há vida pela frente. Também não disse a ele, mas o tempo cura tudo e não há de se passar muito para que ele me telefone, contando sobre essa namorada fantástica com quem ele está saindo, gente finíssima, bonita pra caramba e que até sabe cozinhar.
Não há o que tirar nem por na história do meu amigo, afinal essa é a receita da vida.
O Supremo Tribunal Federal
Nos meus tempos de rapazote tive a feliz oportunidade de conhecer o Ministro Nelson Hungria, então Ministro do Supremo tribunal Federal (STF). Hungria tornou-se conhecido pelo epíteto de “Príncipe dos Penalistas Brasileiros” e escreveu várias obras. Entre seus trabalhos figuram o anteprojeto do Código Penal de 1940 e os Comentários ao Código Penal, publicados na década de 50.
A feliz coincidência de conhecer o Ministro deu-se face aos laços afetivos que o ligavam à região da Serra da Mantiqueira onde morávamos. Tornou-se ele amigo de meu pai a quem recebeu algumas vezes no Distrito Federal. Entre ele e meu pai estabeleceu-se farta correspondência cujo destino ignoro.
Nelson Hungria aparecia no vilarejo onde morávamos sem avisar. Certa vez veio ele no início da tarde, procurando por meu pai que, na ocasião, estava viajando. Foi assim que surgiu a oportunidade de conversar durante algum tempo com o Ministro. É forçoso dizer que na época eu tinha cerca de 14 anos de idade e, obviamente, não seria nem de longe um interlocutor à altura para os assuntos de que se ocupava o Ministro. Também é forçoso dizer que aqueles eram outros tempos nos quais a família se preocupava, talvez bem mais que hoje, com a cultura dos seus rebentos. De fato, era comum que eu ouvisse em casa advertências do tipo “é preciso estar preparado para conversar com qualquer pessoa sob o risco de passar por beócio”. Estimulava-se, assim, o conhecimento de alguns autores importantes e mesmo a leitura de jornais. Jamais me esquecerei de um vizinho, sapateiro, que assinava o “Correio da Manhã” do Rio de Janeiro e, diariamente, recortava as tiras do desenho “Mutt e Jeff” as quais me dava, sempre dizendo: é para que você tome o gosto pela leitura. Chamava-se Brás esse homem de muitas luzes e pouca formação escolar que, aliás, não fazia falta a ele.
Naquele dia o Ministro Nelson Hungria falou-me sobre sua recente viagem à Europa, destacando a visita que fizera à Rússia, então Cortina de Ferro. Contou-me ele sobre as agruras de sua chegada quando teve problemas para entrar no país, sendo salvo por um paulista que o reconheceu e instou junto às autoridades sobre a importância do homem que estava a visitá-los. Depois disso o Ministro passou a ser muito bem recebido sendo, inclusive, entrevistado pelo “Pravda”. Andei pelos jornais - afirmou ele.
A certa altura arranjei coragem e perguntei ao Ministro sobre o que achara da estatização na Rússia. Eram os tempos da Guerra Fria, o tema era palpitante de modo que o Ministro não pareceu surpreso com a pergunta partindo de um rapazote. Relatando que tomara contato com um processo de estatização total o Ministro acrescentou vários comentários, alguns deles, sinceramente, acima da minha capacidade de compreensão de então.
O dia da visita do Ministro ficou gravado na minha memória. Foi a partir dessa ocasião que adquiri grande respeito pelo cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal e pelo próprio Supremo, tribunal acima das paixões e sustentáculo maior da República. De modo que, para mim, tornam-se incompreensíveis os fatos recentes envolvendo decisões do STF que, de repente, parece ter descido ao caloroso mundo dos embates entre ideias conflitantes, muitas vezes optando por decisões no mínimo duvidosas a ponto de ministros declararem pela imprensa sua discordância. A recente e polêmica decisão sobre a não extradição de Cesare Battisti e, agora, essa sobre a transparência das contas relacionadas a obras para a Copa de 2014 dão o que pensar. É triste ler na imprensa que o STF liberou geral e uma cortina de fumaça encobre a Copa e o passado. Ainda que tudo possa vir a ser explicado torna-se confuso ouvir de um ministro que teria extraditado Battisti “correndo”.
Diante disso tudo o melhor é esquecer o presente e ficar com aquela tarde na qual um rapazote recebeu a atenção de um Ministro, homem cuja real importância e ilustração escapava a ele quase que inteiramente.
Gerações
Ontem meu filho mais velho ficou, durante muito tempo, folheando um livro de fotografias dos anos 20. Aqui uma foto de Benito Mussolini em plena Marcha para Roma, datada de 28 de outubro de 1922; na página seguinte Adolf Hitler em Munique, em 9 de novembro de 1923, dia em que os nazistas fracassaram na tentativa de derrubar o governo da Bavária. Mais à frente Josef Stalin, acendendo seu cachimbo, e páginas e páginas com fotos de pessoas desconhecidas, surpreendidas em algum momento das suas atividades.
Meu filho olha as fotografias com interesse e me mostra algumas delas. A certa altura lembro a ele que todas aquelas pessoas estão mortas. Então ele põe o livro sobre a mesa e me olha como quem retorna de uma longa viagem ao passado. Por um momento as pessoas dos anos 20 animaram-se aos olhos de um espectador, trazendo com elas fragmentos da época em que viveram. Entretanto, o espectador assustou-se quando a lembrança da morte desfez a ilusão sobre pessoas e fatos acontecidos, agora convertidos em memória.
É assim. As gerações passam, faz-se passado sobre outros passados e ainda assim continuamos agarrados à noção de eternidade das nossas vidas. Aliás, nem poderia ser de outro modo porque se nos deixássemos subjugar pela noção de finitude as coisas perderiam o sentido, inclusive a própria vida. Daí que são muito benvindas as notícias sobre crianças que nascem dado que nos trazem a certeza de que o motor da vida continua em pleno funcionamento e não pretende parar. É com esse espírito que recebo a notícia do nascimento do Cássio, neto de um amigo do coração, que acaba de chegar a esse nosso louco mundo para participar dessa fantástica aventura que é a vida.
Seja muito benvindo Cássio, você que chega tão sem cerimônia e nos trás tantas esperanças.
Quando bebês falam cedo
Conheci um homem que era atormentado pela proximidade do apocalipse. Sabia dizer de memória trechos do último livro da Bíblia e era versado nos sete selos. A besta que há de vir, precedendo o juízo final, era a ele familiar bem como as terríveis consequências do aparecimento dela no mundo. Mares tingidos de sangue, incêndios monumentais, nuvens de gafanhotos atormentado os homens por infindáveis cinco meses, estrelas caindo na Terra e outros acontecimentos espetaculares ganhavam força nas advertências que ele fazia sobre o fim dos tempos. Para sorte dele o apocalipse não aconteceu enquanto esteve vivo: a circunstância de um desastre automobilístico, no qual morreram não só ele como outras pessoas, impediu-o de testemunhar o grande evento final previsto no texto bíblico.
Para ser sincero, nunca dediquei muita atenção ao apocalipse. Tempos atrás reli o texto que é atribuído a João, não se sabendo ao certo se é o mesmo João Evangelista. Como em geral acontece fui levado a essa leitura por outra – um ensaio sobre a obra de Machado de Assis no qual o autor cita o apocalipse. A releitura do apocalipse me devolveu a aulas a que assisti num curso de pós-graduação em literatura durante o qual o professor insistiu sobre o fato de a Bíblia ser, antes de tudo, um grande livro, maravilhosa sequência de histórias. De fato, se deixarmos de lado as vertentes religiosas que se ocupam do assunto e no atermos apenas ao aspecto literário do texto bíblico teremos em mãos uma obra monumental desenvolvida por mentes profundamente imaginosas. Quem discorda que leia o apocalipse.
Mas, a premissa dessas mal traçadas não era a de falar sobre a Bíblia. Na verdade fui levado ao assunto por um acontecimento inusitado que acaba de ser divulgado: no interior da Nicarágua um bebê de dois meses de idade tem causado espanto a seus pais e vizinhos porque começou a falar. A primeira palavra que ele disse foi “mamãe” isso após ter tomado leite. Mais tarde pronunciou a palavra “papai” e disse “água”. “O bebê pediu água ao pai” – garante a avó.
O fato tem sido considerado assombroso e inacreditável pelos camponeses que vivem na comunidade de El Palmar próximo à fronteira com a Costa Rica. Mais que isso, muitos temem que o fim do mundo esteja se aproximando, afinal o texto bíblico fala em coisas nunca vistas precedendo o apocalipse.
Diante disso só nos resta ficar atentos ao aparecimento de novos sinais.