Arquivo para junho, 2011
O cérebro das águas-vivas
Imagino professores de biologia arrepiando-se ao ler o título acima. Afinal, há muitos e muitíssimos anos todo mundo sabe – e ensina-se – que águas-vivas não tem cérebro. Na verdade esses animais são dotados de um sistema nervoso rudimentar que recebe o nome de “difuso” justamente por não existir no organismo deles um centro coordenador de atividades. Naquela grande e esquecida coleção em dez volumes cujo título é “Ciência da Vida” os autores H. G. Wells, Julian Huxley e G. P. Wells nos ajudam - magistralmente, é bom que se diga - a compreender a estrutura do corpo de animais como as águas-vivas. O que importa é lembrar que as águas-vivas possuem simetria radiada, diferentemente da maioria dos animais cuja simetria é bilateral.
É muito fácil entender a questão da simetria. Em relação ao corpo humano basta imaginar a existência de um plano situado verticalmente, da cabeça ao espaço entre os pés, dividindo-o em duas metades iguais. É graças à possibilidade de passar pelo corpo esse plano imaginário que possuímos extremidades anterior e posterior, frente e costas, lados direito e esquerdo. Eis aí explicada a simetria bilateral.
Ora tal não acontece em animais como as águas-vivas. Nesses seres é possível imaginar a existência de vários planos dividindo o corpo em duas metades iguais. Trata-se da simetria radiada que pode ser entendida como a simetria de uma roda. De fato, se desenharmos um roda com um compasso verificaremos a possibilidade de traçar vários planos passando pelo centro dela, cada plano dividindo-a em metades iguais e simétricas.
É na simetria radiada que Huxley e os Wells se apoiam para explicar a arquitetura do corpo das águas-vivas e animais semelhantes a elas. Sendo redondas as águas vivas não têm lado e nem mesmo extremidades, daí a inexistência de lugar apropriado para a localização de um centro nervoso que seria o cérebro delas. Decorre desse fato a presença do sistema nervoso difuso que nada mais é que uma rede de células nervosas interligadas sem a presença de um centro coordenador das atividades do animal.
Bem, o que está escrito acima é o que se ensina nas escolas e está escrito nos manuais de biologia que atendem inclusive a alunos de cursos superiores. Entretanto, em relação a esse assunto não há como ignorar artigo de autoria de Natalie Anger, publicado no The New York Times. Nele a articulista reúne informações surpreendentes colhidas junto a pesquisadores que estudam as águas-vivas. Entre elas está uma publicação da revista Current Biology, assinada por Anders Garm e colaboradores,na qual destaca-se o fato de as águas-vivas Cubozoa possuírem um sistema visual constituído por uma rede de 24 olhos com quatro tipos de funções, sendo dois deles de função semelhante à dos olhos humanos.
No mesmo artigo Natalie Anger também cita publicação de Richard A. Satterlie, no The Journal of Experimental Biology, na qual o autor refuta a inexistência de sistema nervoso central nas águas-vivas. Segundo Satterlie estudos acurados mostram evidências de “condensação neuronal”, representando neurônios unidos para formar estruturas distintas que agem como centros de integração. Nesses centros as informações são processadas como faz um cérebro: sinais sensoriais recebidos são processados, gerando respostas apropriadas.
Ainda segundo Anger, David J. Albert, especialista em águas-vivas no Laboratório de Biologia Marinha de Roscoe Bay, em Vancouver, declara ser justo esperar que esses animais possuam cérebro. Albert estuda águas-vivas há muitos anos e detectou que elas não são flutuadores passivos e possuem medidores da salinidade da água, propriedades essas muito úteis a elas em seus hábitats.
As águas-vivas são animais classificados, juntamente com os corais, no filo dos celenterados. O tamanho delas é variado, existindo espécies em que o corpo chega a 3 metros, dele saindo tentáculos de 30 metros de comprimento. Em contrapartida encontram-se águas-vivas muito pequenas, medindo com poucos centímetros. Esses animais são temidos pelos banhistas dado que, por possuírem células urticantes, podem provocar queimaduras quando em contato com a pele humana. Entretanto, o poder de queimar não é igual nas diferentes espécies de águas-vivas. Muitas delas nem chegam a causar queimaduras enquanto a chamada Vespa do Mar, encontrada na Austrália, figura entre os animais mais venenosos do mundo. No contato da pele com os tentáculos dessa água-viva libera-se uma toxina muito potente que pode provocar, em menos de três minutos, parada cardiorrespiratória , levando à morte os indivíduos atingidos.
Battisti livre
Cesare Battisti, condenado na Itália à prisão perpétua, foi libertado no Brasil. O STF referendou decisão do então presidente Lula, negando o pedido de extradição feito pela Itália. As reações negativas em relação à decisão não se fizeram esperar: o governo e a imprensa italiana lamentaram o fato e não está excluída a hipótese de retaliação. Pudera: Battisti foi condenado por autoria direta ou indireta de quatro homicídios decorrentes de atividades terroristas e outros crimes.
Ao cidadão brasileiro não é tão simples formar opinião sobre o caso. De um lado está a justiça italiana que considera banditismo e não crimes políticos as ações de Battisti. Recorde-se que antes de ser condenado pelos crimes de que ora é acusado Battisti cometeu outros tendo sido condenado e preso. A participação em grupo terrorista aconteceu, portanto, mais tarde. Acresça-se a isso o fato de Battisti ter fugido da Itália, refugiando-se na França onde se revelou escritor. Todo mundo sabe o apreço que os franceses têm por escritores fato que contribuiu para que Battisti recebesse o apoio de intelectuais e mudasse a sua imagem para a de perseguido político.
No Brasil Battisti certamente contou com a grande simpatia de setores da velha esquerda, sempre disposta a abrigar aqueles que de uma forma ou de outra se insurgiram contra os regimes políticos de seus países. Não importa muito que o personagem em questão tenha trafegado no solo movediço que separa o simples banditismo dos crimes políticos. O que vale é a fachada de revoltoso e o credo marxista ainda que não bem digerido, credo de orelhada como se diz.
Se de um lado está a justiça italiana, de outro se posiciona a justiça brasileira. O entendimento de que a decisão sobre a extradição compete ao presidente da República e não ao STF coloca a questão no patamar do juízo pessoal. Em assim sendo pesa sobre a figura do presidente – que no caso não é um jurista e nem entendido em leis - a responsabilidade sobre decisão tomada e suas consequências.
Agora a Itália chamou o seu embaixador e há grande revolta no país pela atitude brasileira. Batyisti está livre, fato que, queira-se ou não, acrescenta-se à noção geral de impunidade que, infelizmente, permeia o dia-a-dia dos brasileiros. Verdade que a coisa toda é complexa, envolvendo fatores como a soberania do país e mesmo interesses que escapam ao conhecimento dos cidadãos comuns.
Como foi dito não é simples formar opinião em relação ao caso Battisti. Entretanto, parece mais lógico acreditar que aos italianos deveria pertencer a decisão final sobre o caso. Battistii cometeu seus crimes na Itália e familiares de pessoas assassinadas clamam por justiça. No mais sempre é bom lembrar que a Itália vive em regime democrático no qual os cidadãos têm direito à defesa e não há porque se duvidar da capacidade dos juristas italianos.
Livros e leitura
Não tenho assim tantos livros em casa, mas digamos que lá existem um bocado deles. Outro dia recebi a visita de um rapaz que parou diante das estantes e, a tantas, perguntou:
- Você realmente leu todos esses livros?
Na hora lembrei-me daqueles livros de capa dura, em geral enciclopédias de vários volumes, que eram colocados na sala de estar para emprestar um aspecto cultural às famílias. Muitos desses livros terão passado suas existências intocados, indo parar nalgum sebo após a morte de seus proprietários. Mais escabrosas eram certas molduras de capas que serviam para imitar livros, adorno que conferia ares intelectuais aos ambientes. Escrevi as frases anteriores no particípio por acreditar que tais coisas entraram em desuso, afinal quem é que está preocupado em saber se as pessoas de seu convívio são cultas ou não?
De todo modo não há lugar que mais me incomode que escritórios de advogados. Esses locais parecem arvorar-se em reserva de inteligência da humanidade porque é comum que ,nas paredes, existam estantes enormes cheias de livros de capa dura. Quando sou obrigado a ir a um desses escritórios vejo-me na situação do rapaz curioso quanto ao número de livros que li porque tenho vontade de perguntar ao advogado se de fato ele leu aquela livraria toda.
Bem, eu li os livros que estão lá em casa ou, pelo menos, penso que li. Mas, não foi esse aspecto que mais me importunou na pergunta do rapaz. O que me constrangeu foi o tom da pergunta, a remetida que ele fez do prazer de ler à esfera de sacrifícios enormes.
Segundo se diz o mercado de livros no Brasil vai bem e novas livrarias têm sido inauguradas. Contrasta com isso o fato dos jovens simplesmente não lerem nada, a maioria ficando restrita às leituras obrigatórias em escolas. Vem daí o florescimento de gerações cada vez mais afastadas de hábitos culturais, incapazes de falar corretamente e muito menos de escrever. Numa época em que a informação nos chega aos borbotões, os acontecimentos importantes correm o risco de não serem compreendidos devido à carência de conhecimento e poder de análise das pessoas. Esse problema se agrava na medida em que pessoas com capacidade de entendimento prejudicada são chamadas ao exercício das suas cidadanias, por ocasião de eleições, por exemplo.
Quase não seria preciso dizer que por detrás dessas observações situam-se todos os comemorativos ligados aos problemas vigentes na área de educação no país. No mais, não custa gritar que livros são grandes companheiros, ganham vida quando os retiramos da estante e começamos a ler. Talvez se repetirmos isso todos os dias, se uma pessoa falar bem de livros a outra, consigamos despertar interesse maior pela leitura e construir uma sociedade mais humana e melhor.
Será que ele volta?
Enfim está encerrado o episódio Palocci que tanto desgaste trouxe ao governo. Para os próximos dias ficam as perdas e ganhos do processo com visíveis prejuízos para a imagem da presidente da República. Independentemente de tendências ideológicas e inclinações políticas torce-se para que a presidente afinal não seja um fantoche guiado pelo seu antecessor e mentor. Seria pena se a primeira mulher a ocupar a presidência da República não revelasse pulso e empatia pessoal para impor-se às dificuldades inerentes oo cargo, desempenhando a contento o papel que dela se espera.
Quem acompanha de perto a política argentina conhece as maquinações que envolvem a disputa entre os partidários do governo e a oposição. Destarte as críticas aos resíduos de peronismo, a busca incessante de culpados para a situação do país e mesmo a desconfiança quanto à transparência e atos do governo, não há como não reconhecer que os argentinos têm na presidência uma mulher de predicados. Se os usa ou não do modo esperado e visando o bem maior da nação, isso é outra história. Quem teve a oportunidade de assistir ao discurso da presidente na recente comemoração do bicentenário da República argentina terá constatado a enorme segurança da presidente ao falar ao país. Tal, infelizmente, não se viu, ainda, no Brasil, em relação à atual presidente.
Voltando ao caso Palocci a pergunta que se faz é se o futuro nos reservará mais alguma participação dele em quadros de governo. O ex-ministro não é primário em relação a denúncias e contra ele pesavam, mesmo antes da presente participação no governo, graves acusações que provocaram a sua renuncia ao cargo que então ocupava. Em assim sendo fica difícil imaginar o ex-ministro da Casa Civil atuando em qualquer setor da coisa pública. Mas, convenhamos, estamos no Brasil, terra onde, infelizmente, tudo pode acontecer.
Na verdade o mais esperado em relação ao ex-ministro é que ele daqui por diante toque a sua vida e se afaste da política. Mas, eis que se aproximam as eleições e não será nada fora do comum se Palocci se candidatar - pasme-se - com boas chances de vir a ser eleito.
Cuecas e política
O título acima, aparentemente despropositado, não é tanto assim. Cuecas e política são assuntos que parecem não combinar, mas o mundo é muito vasto e a vida imprecisa a ponto de juntar coisas tão díspares. Para quem não concorda com isso vale a lembrança de que em nosso país as cuecas andam em evidência na política, servindo até para fins escusos como o de esconder dinheiro.
Bem, aconteceu que um deputado norte-americano - Anthony Weiner - colocou em seu perfil no Twitter uma foto dele mesmo, mostrando uma cueca e evidenciando o pênis ereto. A princípio o congressista negou que tivesse colocado a foto, atribuindo o mal feito a um possível hacker. Mais tarde confessou, acrescentando que também manteve “conversas inapropriadas” com seis mulheres. Por fim desculpou-se, dizendo ter agido como um idiota e prometendo trabalhar duro todos os dias para conquistar a confiança de seus eleitores. Detalhe: Anthony Weiner casou-se recentemente e é um dos possíveis candidatos a prefeito de Nova York.
Entre nós verificou-se, há algum tempo, que o senador Eduardo Suplicy desfilou de sunga no Congresso Nacional. Vá lá que era uma sunga vermelha, vestida por cima das calças, mas sempre uma sunga.
Em todo caso, Weiner e Suplicy não estão com nada porque não foram nem um pouco originais. Corria o ano de 1946 quando o deputado Edmundo Barreto Filho pousou de cueca para uma foto que foi publicada na revista o “Cruzeiro”. Barreto Filho foi cassado por seus colegas deputados, acusado de falta de decoro e por se considerar que a foto denegria o Poder Legislativo. Na foto Barreto Filho aparece de fraque, com camisa e gravata, apenas de cueca, tendo o nariz empinado à moda de uma estátua de bronze. Consta que Barreto foi enganado pelo repórter David Nasser, acompanhado pelo fotógrafo Jean Manzon. Nasser teria prometido ao deputado publicar apenas a parte de cima da foto. Promessa não cumprida, veio o rapa do Congresso.
A foto foi acompanhada de uma terrível reportagem, escrita por David Nasser, na qual Barreto Filho é literalmente arrasado. Trata-se do mesmo David Nasser que, anos depois, meteu-se numa grande encrenca ao criticar violentamente Leonel Brizola nas páginas de “O Cruzeiro”. As críticas valeram ao repórter um soco no ouvido e um murro no queixo dados por Brizola, mas isso já são outros quinhentos, assunto para depois de depois.
Los Angeles
Um amigo acaba de visitar LA e se diz encantado com a cidade. Destaca o clima ameno, as praias, as galerias e museus, os passeios nas colinas, Hollywood, os parques públicos e uma infinidade de atrações que corroboram o fato de LA ser grande centro financeiro dos EUA.
Ouço o que o meu amigo diz e não ouso contradizê-lo, afinal felicidade é coisa de que não se duvida. Na verdade esforço-me para não falar sobre o recente início de relacionamento do meu amigo com uma moça pela qual está apaixonado, companheira dele na viagem. Todo mundo sabe que o mundo é azul quando se está feliz e apaixonado.
Não guardo boas impressões sobre LA, embora não me seja possível adivinhar o gosto pela cidade das pessoas que vivem lá. Fui a Los Angeles uma única vez e desesperei-me com a extensão da cidade, as ruas quase sempre vazias que me davam a impressão de imensa desolação à margem de enormes estruturas de concreto. Não eram muitos os lugares onde se via gente, restritos a áreas como Chinatown e pontos turísticos como a região em que se localiza a Calçada da Fama. Ruas muito largas e sempre um “DONT WALK” pairando sobre as cabeças dos poucos transeuntes, como a dizer que em LA os carros estão no comando, às máquinas pertence o império da cidade.
“DONT WALK”. Grandes pontes sobre vias expressas lotadas de automóveis que mais pareciam governar-se sozinhos, sem ninguém dentro deles. Distâncias enormes de um ponto ao outro e a desesperadora espera por um táxi salvador. A cidade vista de dentro de um ônibus num tour pelo centro que me deixou na Universal Studios Hollywood, esta sim atração que na época muito me entusiasmou. Aquela passagem por Beverly Hills onde ficam as mansões de artistas famosos e a inevitável parada defronte a casa onde Marylin Monroe morreu.
Ok, LA é uma cidade, grande e rica, cheia de atrações, meu amigo certamente não está errado, ainda mais quando a visitou durante um período azul da vida dele. Mas se for possível dizer a alguém algo sobre LA é que não vá lá sozinho, a cidade é bem melhor na voz de Frank Sinatra e deve mesmo ser um paraíso para quem está apaixonado e não se preocupa com aqueles “DONT WALK”.
PS: meu caro amigo se acaso se deparar com esse texto me perdoe por não ter dito essas coisas a você.
O tempo passa
Há alguns anos assisti a um filme estrelado por Paul Newman, se bem me lembro “Estrada da Perdição” ao lado de Tom Hanks. Nada a ver com a excelência do desempenho de Newman, mas causou-me funda impressão o fato de ele estar velho. O problema é que as imagens do Newman de “Gata em Teto de Zinco Quente” e mesmo a de “Butch Cassidy and Sundance Kid” - esse filmado anos mais tarde - não me saiam da cabeça. Para mim Paul Newman seria sempre o mesmo, incólume à velhice, fazendo-me crer que afinal homens e épocas podem ser parados no tempo, recurso esse muito útil para garantir alguma eternidade às nossas tão efêmeras vidas. Enfim, só as memórias podem emprestar alguma perenidade a homens e fatos de vez que tudo passa e nada se pode fazer contra isso. Machado de Assis relata, em crônica, sua ida a um enterro ocasião em que, ao sair do cemitério, avistou crianças correndo entre os túmulos. O contraste entre o fim e o começo da vida serviu ao grande escritor para a realização de um texto que nos coloca diante dos grandes temas da obra dele quais sejam a morte, o perecível e a despreocupação da infância.
Há pouco tempo o cantor Roberto Carlos fez 70 anos e agora é o parceiro dele, Erasmo Carlos, que chega à mesma idade. O fato é que não há como não se lembrar deles, na década de 1960, agitando com músicas como “Parei na contramão”, “O calhambeque” e muitas outras. Não será exagerado dizer que, em termos de memória, aqueles anos não seriam os mesmos sem as músicas da dupla, assim com teriam sabor diferente acaso não tivessem existido os Beatles.
Tudo isso pode parecer óbvio demais. Entretanto, justamente a passagem do tempo para personalidades que de uma ou outra forma se destacaram nos serve para balizar o nosso próprio envelhecimento. O fato é que nenhuma plástica ou botox logra enganar o tempo que corre, restando-nos apenas o imenso prazer de imergir no passado nos moldes que nos foram legados por Proust. No início do livro “O caminho de Swann”, o primeiro dos sete romances que compõem a grande obra “Em Busca do tempo Perdido”, o narrador de Proust apresenta-se no momento em que mergulha um bolinho numa xícara de chá, recuperando, desse modo, o sabor da iguaria a que se acostumara nas manhãs de domingo da sua infância. É através de referências que Proust constrói a narrativa, caracterizando o valor de cada coisa e a importância dela na formação de seu caráter e sua própria vida.
Paul Newman, Roberto e Erasmo Carlos e os Beatles são referências de épocas, permitindo-nos voltar ao passado, tantas vezes revivendo com intensidade situações vividas. O tempo passa, mas não destrói as memórias que só se apagam definitivamente com a morte, embora sempre existam crianças correndo entre túmulos para que novas lembranças se construam e deem sentido à vida.
Oswald de Andrade
Se bem me lembro em outubro de 1964 os jornais publicaram notícia sobre Oswald de Andrade. Eram então decorridos dez anos da morte do escritor. Não me esqueci disso porque na ocasião conversei com um tio sobre Oswald. Meu tio era homem ilustrado, conhecedor das matemáticas e jurista. Sobre Oswald ele foi taxativo:
- Foi um sujeito terrível.
Esse veredicto jamais saiu da minha cabeça e creio que balizou as minhas leituras sobre a obra de Oswald. De fato, sempre li – e reli - os livros de Oswald sob o prisma da iconoclastia, talvez emprestando a eles um significado ainda maior de revolta que o contido nas páginas. Rapazinho na época me fiz membro da antropofagia oswaldiana, acreditando na máxima de que o antropófago não se alimenta de seu semelhante para saciar a fome e sim para adquirir a força dele. Num Brasil governado pela ditadura que impôs silêncio ao povo a obra de Oswald surgia como válvula de escape a sonhos de protesto, pelo menos era assim que eu entendia boa parte do que lia.
Curiosamente, o primeiro livro que li de Oswald foi um de seus romances cujo título é “A Estrela do Absinto”. O enredo fala de um escultor que se apaixona por uma prostituta chamada Alma. O pano de fundo da trama envolve o embate entre o bem e o mal, o efeito do pecado na vida das personagens. Segundo o crítico Antônio Cândido observam-se no livro cenas bem feitas e intensidade emocional, embora a psicologia das personagens seja banalizada. Depois de “A Estrela do Absinto” travei contato com toda a obra de Oswald, sendo de minha preferência as “Memórias Sentimentais de João Miramar”.
Obviamente existe uma relação particular entre a obra de um escritor e um determinado leitor. Hoje em dia os livros de Oswald têm o condão de me devolverem parcelas da época em que os li avidamente. Através deles torna-se possível um recuo aos meus primórdios de leitura e à busca incansável de conteúdo que ainda hoje me empolga enquanto leitor de obras de literatura.
Oswald de Andrade morreu em 22 de outubro de 1954. Tinha 64 anos de idade e o enterro foi realizado no Cemitério da Consolação no dia seguinte, 23, um sábado. O poeta Menotti Del Picchia discursou à beira do túmulo onde repousa aquele que meu tio classificou como “um sujeito terrível”. O poeta Ledo Ivo ouviu do crítico Sábato Magaldi que apenas quinze pessoas compareceram ao enterro de Oswald. A edição da “Folha da Noite”, de 25/10/54, traz em primeira página duas fotos do enterro que dão a impressão de mais de quinze pessoas presentes. De qualquer modo, na época Oswald vivia em grande ostracismo, situação oposta ao grande reconhecimento que tem recebido depois de sua morte.
A São Paulo que viu Oswald de Andrade ser enterrado era bem diferente da cidade de hoje, naquela época mais provinciana e menor. Lucas Nogueira Garcez era governador do Estado em fim de mandato, substituído que seria por Jânio Quadros no início de 1955. Nos cinemas Marlon Brando estrelava o filme “O Selvagem” e os grandes magazines da cidade eram a Clipper, o Mappin, A Mesbla e a Sears. Na rodada de domingo, 25, do Campeonato Paulista o Corinthians seguiu líder. Aliás, o Corinthians se tornaria o campeão nesse ano em que se comemorava o IV centenário da cidade de São Paulo.
Pessoas mutiladas
Um programa de TV mostra entrevistas de soldados que lutaram no Iraque e no Afeganistão. São jovens, homens fortes, alguns sem braços, outros sem pernas, outros ainda apresentando diferentes lesões, quase todas irreversíveis.
Não há ódio no rosto dos antigos combatentes. O que se lê nas suas faces é um misto de desespero e esperança. Paira sobre eles a atmosfera de resignação à qual se agrega a busca de superação, condição essencial para entender o mundo e seguir vivendo.
A imagem desses novos-velhos soldados se confunde com a dos prédios do Word Trade Center no terrível momento em que foram derrubados. Aquele ataque bestial selou a sorte dos rapazes agora aleijados. Ao terrorista que o planejou e o governo que enviou seus rapazes para as guerras agregam-se inúmeros culpados.
Mas, não há que se falar em culpa aos rapazes que foram para a guerra. Nem mesmo crucificá-los pelos possíveis crimes que terão cometido. De nada nos valem, também, as imagens de presos torturados e inocentes chacinados de vez que nada podemos fazer por eles. Justiça? Ah, sim, a justiça.
O passado é irreversível, mas não a dor.
Talvez pior que as imagens de ação da guerra sejam essas de jovens mutilados e famílias iraquianas e afegãs vitimadas.
Mas, a vida continua. Na padaria da esquina o padeiro segue fazendo pães e o sol insiste em brilhar a cada nova manhã.