Arquivo para setembro, 2011
A rainha do bumbum
- Meu, esse mundo é mau.
Quem me disse isso foi o filósofo do terceiro andar. Como de costume encontrei-o na portaria do prédio. Desta vez achei-o cabisbaixo como se finalmente tivesse capitulado diante de todas as suas reflexões filosóficas. Eu estava com alguma pressa, mas, apesar disso, me detive. Ver o filósofo cabisbaixo e entediado despertou-me o senso de solidariedade a um ser de todo estranho, mas sempre otimista.
Quando me aproximei do filósofo ele estava com a cabeça abaixada e cantarolava:
- Conga, conga, conga, conga…
Eu me sentei sem que ele se desse conta da minha presença. Continuou com a sua conga, conga até que coloquei a mão no braço dele. Então, como se voltasse de um sonho, ele exclamou:
- A rainha!
- Que rainha – perguntei.
- Ela, naturalmente, a rainha, ora.
Como eu não conseguisse juntar as peças do quebra-cabeça, o filósofo olhou-me com aquela ternura que só os filósofos têm nos momentos em que descem do pedestal e se dignam explicar aos mortais comuns as razões profundas dos cismas mentais que os afligem.
- A rainha do bumbum, a Gretchen.
Ora, a Gretchen - pensei. Mas, o que ligaria o filósofo à rainha do bumbum? Não precisei perguntar por que ele se adiantou:
- Você viu as fotos da rainha em Miami?
Fiz que não com a cabeça. Ele me olhou fixamente e disse:
- A rainha está trabalhando como garçonete num café da cidade.
- Que há de mal nisso?
O rosto do filósofo encheu-se de sangue com se fosse explodir. Chamando-me de “ser insensível” ele disse:
- Uma rainha, uma mulher com um bumbum daqueles, ganhando a vida como garçonete?
Fiquei quieto. Lembrei-me, então, da Gretchen: corpo escultural, bumbum saliente, apresentando-se em programas de televisão, vendendo milhões de discos. Por que estaria ela nos EUA trabalhando como garçonete? Sem demérito para as garçonetes, mas é que do ponto de vista de beleza e condição salarial… Teria ela envelhecido? Fiz essa pergunta ao filósofo e foi aí que ele se saiu com o tal “o mundo é mau”.
Não sei se concordo. Talvez o mundo seja mais perverso que mau. A beleza, as formas de corpo salientes, tudo isso é dilapidado pelo tempo. Triste constatar, mas real e irreversível.
Após algum tempo deixei o filósofo e fui trabalhar. Mais tarde, em casa, entrei na internet e vi as fotos da Gretchen flagrada por um turista no café onde atualmente trabalha. Nada de anormal: uma mulher mais velha, usando um avental. Depois assisti, no You Tube, a um vídeo da artista ainda jovem, cantando e dançando num programa da Globo. A música que ela cantava era o seu grande sucesso “Conga, conga”.
Devo ter ficado por alguns minutos observando o corpo jovem e esguio que v ao volteava ao som de uma música repetitiva, mas que não deixava de encantar. Nada da mulher de avental, séria, dedicando-se a ganhar a vida do modo que agora se tornara possível a ela. Depois desliguei o computador e já degustava uma taça de vinho quando me vi dizendo:
- O mundo é mau.
Há ocasiões em que o filósofo do terceiro andar tem razão.
Globalização futebolística
Aconteceu durante o jantar. A certa altura o garçom que me servia referiu-se ao jogo entre as seleções do Brasil e da Argentina que aconteceria na mesma noite. Acrescentou que entre essas duas seleções o jogo sempre é bom pela rivalidade que existe entre elas. Depois parou de falar e mostrou-se pensativo, após o que perguntou:
- Bem, quanto à rivalidade já não é tanto assim, o senhor não acha?
Acho? Acho que acho. Mas, por que razão já não é tão grande a rivalidade futebolística entre o Brasil e a Argentina ou entre o Brasil e o Uruguai? Não é que na última Copa do Mundo torcemos pelo Uruguai depois que o Brasil foi desclassificado? Olhe que em relação ao Uruguai esse sentimento de compadrio é muito recente. Os meus tios, já mortos, pertenciam à geração que chorou pela catástrofe da derrota brasileira frente aos uruguaios na Copa de 50. Depois disso, o Uruguai transformou-se em fantasma que assombrou gerações. Quem não se lembra do dia do terrível jogo do Brasil contra o Uruguai na Copa de 70? Tínhamos aquela formidável seleção que se tornaria campeã e, ainda assim, temíamos o Uruguai. Temor provocado pelo fantasma do Maracanã que persistia nas memórias. Quando o Uruguai fez o primeiro gol foi um Deus nos acuda: repetia-se 50. Mas, empatamos no final do primeiro tempo e vencemos o jogo. Ali o fantasma uruguaio foi pelo menos em parte enterrado, embora ainda sobreviva para algumas pessoas.
Desnecessário dizer que já não é assim. Explicações existem para a mudança, talvez nem tanto convincentes. Uma delas refere-se aos jogadores sem bandeiras, taxiados pelas fortunas dos clubes que os fazem atravessar fronteiras com enorme facilidade. Numa mesma equipe europeia atuam vários jogadores de diferentes nacionalidades. Deriva daí uma espécie de corrosão de patriotismo que resulta numa quase falta de compromisso com as cores nacionais a defender. Já não vigora o matar-se em campo, o orgulho em defender a seleção nacional. Além do que é bom lembrar que os jogadores que agora se confrontam nos jogos entre as seleções de seus países muitas vezes são companheiros de clube fato que, naturalmente, mina o espírito de competição.
Também não se pode descartar a globalização em si com todas as suas consequências, entre elas certo apagamento de fronteiras. Se a isso acrescentarmos os meios de informação que transformam o planeta num corpo único, próximo da aldeia global idealizada por Marshall McLuhan, talvez eu possa retornar ao jantar de ontem para afirmar, categoricamente ,ao garçom que sim, de fato, já não existe a rivalidade de antes entre as seleções do Brasil e da Argentina.
Se no sentido geral isso é bom ou mau não sei dizer. Em relação ao futebol não há dúvidas de que as perdas são significativas. A rivalidade sadia entre Brasil e Argentina no futebol sempre foi uma delícia, mais prazerosa ainda quando ganhamos deles. A seleção argentina sempre foi um osso atravessado em nossas gargantas, difícil de engolir por ocasião de derrotas brasileiras. Nem por isso deixamos de admirar os bons jogadores deles, digam o que disserem.
A vida é boa não só pelas vitórias, mas pelas derrotas que nos oferecem a chance de revanche. Assim é o futebol. Assim somos nós, eternos apaixonados pelo esporte.
A repetição leva à exaustão
Sou de opinião que não tenho opinião sobre as idas e vindas da economia embora tudo o que acontece afete, direta ou indiretamente, a minha vida.
Veja você a eterna gangorra em que anda metido o dólar. Ora o governo sai a campo com medidas que engessam a moeda porque o valor do dólar está muito baixo e as exportações se ressentem disso. De repente, em curto período de tempo, o dólar sobe muito e estabelece-se o problema inverso com crescimento da dívida das empresas, dificuldades para turistas etc. Diante disso o governo emprega meios para reduzir o valor da moeda norte-americana.
O interessante em relação a tudo isso é que dispomos de mais desculpas que culpados. Por que tudo acontece? Do lado do governo brasileiro a explicação é a de que medidas devem ser tomadas no sentido de manter a estabilidade. O problema vem de fora, patrocinado pela crise europeia que, por sua vez, tem seu berço em solo grego com rebentos crescendo diariamente na Itália e na Espanha. Por sua vez os gregos estão fulos da vida porque não querem pagar a conta. A um passo do calote esperam a ajuda de 8 bilhões de euros que países capitaneados pela Alemanha se recusam a dar. No meio disso sai a campo o FMI para dizer que suas reservas, atualmente na casa dos 400 bilhões, são insuficientes para resolver o problema da crise europeia.
Então, eu que nasci em solo verde-amarelo da minha pátria varonil fico olhando pela janela perguntando se não será possível passar agora no céu um Sputnik, com Gagarin a bordo e tudo mais, porque era mais interessante assistir ao vai-e-vem da Guerra Fria que a essa interminável lengalenga do sobe e desce das bolsas e variações do dólar.
Cara pálida você não está cheio de ouvir longos noticiários tratando da mesma coisa, dia após dia? Pois é, a repetição leva à exaustão. Declaro-me exausto de ouvir falar sobre coisas que acabarão se resolvendo por si mesmas, com quebradeira geral ou não, porque de uma coisa devemos estar certos: através de acordos que envolvem interesses colossais pouco se conseguirá. De fato, é difícil convencer a um alemão que gosta de tudo certinho a ajudar um grego não dado ao hábito de pagar impostos.
Não sei se é verdade, mas ouvi de um grego que na Grécia lavra-se hoje em dia grande revolta contra a implantação do imposto predial. Contou-me que um grego, conhecido dele, reagiu à implantação do imposto dizendo: mas, se comprei e paguei a minha casa, isso há muitos anos, porque tenho que pagar algo mais para morar no que me pertence?
Caso seja assim, tenho que tirar o chapéu à inclinação anárquica dos gregos e pedir a alguém que entenda melhor desse assunto explicação sobre as atribuições do Estado grego. Que uma ou outra pessoa se recuse à participação social vá lá. Mas, isso como cultura geral não pode funcionar, concordem.
E por falar em pessoas que se recusam a fazer parte do esquema geral ouvi certa vez o caso de um sujeito, já falecido, que era do tipo. Certa ocasião esse sujeito decidiu viajar ao exterior para o que precisou obter o visto. Entre os documentos exigidos para tal figurava cópia da declaração do imposto de renda, que ele não tinha. Perguntado sobre a declaração ele respondeu:
- Eu nunca quis isso de imposto de renda para mim.
Então é assim: basta não querer para não fazer parte. Não sei como o tal sujeito resolveu o problema dele, se viajou ao exterior ou não. Deve ter ido porque nesta terra em que tudo dá para tudo existe um jeito. Mas ficou-me dessa história o espírito particular e rebelde do cidadão que viveu a seu modo, passando ao largo de injunções como essa tão chata de declarar e pagar impostos.
Vivendo e aprendendo.
As marias-chuteiras e Neymar
Mulheres histéricas agarradas a uma grade. A expressão nas faces delas é de dor e desespero. Não, não se trata de jovens que presenciam cena violenta, de mães separadas a força de seus filhos, de mulheres protestando contra algo que feriu duramente a sensibilidade delas: na verdade são fãs do jogador Neymar, no momento da chegada da seleção brasileira a Belém onde jogará contra a Argentina.
A foto está em sites da internet acompanhada de um texto explicativo que inclui “frenesi” “lágrimas” e “sinfonia de gritos histéricos”. A coisa foi tal que a rua do hotel onde se hospedam os craques brasileiros teve que ser temporariamente fechada. As meninas seguravam cartazes e, segundo a reportagem, num deles estava escrito em relação a Neymar: “Ai, ai, se eu te pego. Delícia!”.
O Neymar? Pois é, o Neymar. Rapaz… Acrescente-se que o jogador Luís Fabiano concedeu uma entrevista à revista VIP na qual afirmou que as mulheres europeias são mais ousadas que as brasileiras. Segundo Fabiano: “Dizem que as brasileiras são mais calientes. Mas lá (na Europa) elas querem beijo na boca na cara dura. Todos os dias as meninas estavam na saída do treino. Na chuva, no frio…”.
Confesso que eu não atentara para o termo “maria-chuteira”. Desconsolado pela minha ignorância fui consultar a Wikipédia e encontrei o seguinte: “Maria-chuteira é o estereótipo relacionado às mulheres que são notórias por manterem relacionamentos amorosos com jogadores de futebol”. Seguem vários empregos do termo e uma espécie de busca da origem dele. Assim, fica-se sabendo que a Globo tinha personagem chamada maria-chuteira e que o termo é utilizado em locuções esportivas. Mais: Maria Paula, a atriz de “Casseta e Planeta”, tinha entre seus papéis o de maria-chuteira. Do que me lembrei ao ler sem, contudo, imaginar que o termo tinha se disseminado e caracterizava as torcedoras mais ousadas.
Bem se diz que a Língua é viva e é alterada com frequência através da inclusão de novas palavras e desuso de outras. No Brasil sempre existiu uma exacerbada criatividade para palavras que retratam situações de momento. Não sei se entre outros povos a gíria tem fecundidade igual à que existe nesta terra em que, como garantiu Caminha, tudo dá.
Após longo inverno afastado dos gramados Luís Fabiano finalmente estreará contra o Flamengo no próximo domingo, isso para delírio das hostes tricolores. Quanto ao Neymar, bem, ele é o cara da hora. Está em todas mesmo que não haja nenhuma. Entre outras mil nesta pátria Brasil o Neymar vira fenômeno no You Tube, explodindo como hit de funqueiros. Vejam bem: “virar fenômeno no You Tube, explodindo como hit de funqueiros”, definitivamente não faz parte do meu repertório que já estava todo atrapalhado com o significado de maria-chuteira. Mas, deixem para lá.
E vocês viram o treino da seleção em Belém? Centenas de mocinhas, doidinhas da silva, gritando freneticamente cada vez que o Neymar pegava na bola. Nem era preciso o rapaz fazer uma jogada: bastava a ele encostar o pé na pelota e lá vinha a gritaria histérica. Neymar virou mania, ídolo num tempo de escassas modas capazes de flexionar os joelhos das adoradoras de plantão.
Meninos eu não esperava chegar a ver, mas vi.
Sem assunto
Pouco se fala sobre isso hoje em dia, mas é clássico entre cronistas diários fazer assunto justamente da falta de assunto. Acontece quando o mundo parece ter-se tornado plano e nada nele se destaca suficientemente para chamar a atenção. Convém dizer que esse fato depende quase que inteiramente do estado de espírito do escriba de plantão o qual, por vezes, mais se parece com esses bolos encruados que saem do forno tristemente malparados.
A verdade é que há inúmeros assuntos e pouca vontade de dizer algo sobre eles. Podemos começar pelo aumento de IPI que privilegia apenas carros importados. A medida do governo está dando o que falar e muita gente não se conforma com a mudança súbita das regras do jogo, tanto que algumas revendedoras de carros estão partindo para a via judicial no sentido de proteger os interesses delas. Do lado do governo a explicação é a de que é preciso proteger a indústria nacional coisa com a qual nem todo mundo concorda. Como resultado verifica-se uma corrida às revendedoras nas quais os estoques de veículos ainda não reajustados estão acabando.
Outro tema que confunde a opinião é a questão da saúde que afeta milhões de pessoas. Por um lado há a revolta dos médicos contra os planos de saúde pelas baixas remunerações que recebem pelos serviços prestados. De fato, chega a ser aviltante o pagamento com que é contemplada a maior parte dos procedimentos médicos, inclusive os cirúrgicos. Devido a isso os médicos pararam um dia em protesto. Essa greve foi mal vista por todo mundo, sendo que os cidadãos se perguntaram o quê, afinal, têm eles a ver com a briga entre médicos e os planos de saúde. Se é verdade que a classe médica vem sendo explorada pelos grupos responsáveis pelos planos de saúde, daí o seu justo protesto, também é que a população não pode pagar por isso. Outro assunto do mesmo ramo é a ainda em pauta criação de um imposto para fazer frente ao rombo no sistema de saúde pública. O péssimo atendimento à população requer investimentos no setor e o governo confessa não dispor de meios para isso, daí a necessidade do imposto. Tema em aberto que, no momento, conta com a recusa dos parlamentares do Congresso em aprovar a nova tributação porque ela representaria mais um grande ônus no país onde se pagam mais impostos no mundo.
Dias trás tivemos a greve dos coveiros e pessoas ligadas a serviços funerários em São Paulo. Foi um Deus nos acuda porque morre gente todo dia e tornou-se impossível atender à demanda de enterros. Agora a situação parece ter voltado ao normal.
O restante dessas linhas seria para falar sobre corrupção, mas isso não, agora não. Assim, termino com um alô sobre o “Rock in Rio” no qual milhares de pessoas se reúnem para assistir e ouvir música. O evento é de fato grandioso e sensacional, chamando a atenção o poder de mobilização ao alcance de toda gente que promove e participa dos shows. Não deixa de ser interessante ver a multidão repetir gestos mais ou menos programados, entregando-se ao delírio das apresentações das bandas. Pelo que este que vos fala se pergunta por que não acontece a mesma coisa em relação a interesses coletivos, às medidas impositivas e tantas vezes discutíveis do governo, à absurda corrupção que corre solta no país e assim por diante? Por que milhares de pessoas não se reúnem para protestar e exigir direitos que são de toda gente que trabalha e faz do país o que ele é?
Tentar responder a isso cobraria muitas elucubrações, além do que talvez não se chegasse a grande coisa. Daí que me despeço, sem mais assunto.
Especulação sobre um crime
Um menino de 10 anos de idade sai da sala-de-aula. Quando retorna traz um revólver com o qual atira e acerta duas vezes a professora. Ato contínuo o menino sai da sala e dispara contra a própria cabeça. O suicídio de uma criança de 10 anos estarrece a opinião. Profissionais de várias áreas chamados a opinar advertem que não têm experiência anterior sobre fato tão inusitado e dizem que qualquer explicação não passará de puro exercício de imaginação.
Entre professores e alunos a surpresa é total. Descrevendo o menino como pessoa doce e sem problemas aparentes dizem ser inacreditável o que aconteceu. O mesmo acontece no ambiente familiar de onde o menino trouxe a arma que pertencia ao pai, um guarda.
Um crime tão incomum desperta reações de todo tipo. Para a mídia trata-se de prato cheio, aberto a toda sorte de especulações. Fala-se muito e muita bobagem sobre algo que foge aos padrões lógicos esperados na esfera criminal. O grande mistério que envolve a ação do menino fomenta discussões e repórteres se ocupam em investigar tudo o que possa se relacionar com o crime. O que têm a dizer pessoas que o conheciam? Haveria no comportamento dele algo que viesse a explicar o tresloucado ato? Como seria o meio familiar em que ele viveu? Teria o ambiente familiar alguma influência sobre o acontecido? Como um menino conseguira atirar com tanta precisão, acertando a professora e a si mesmo?
É possível preencher páginas com perguntas sobre esse estranho crime que, assim parece, jamais será explicado de vez que a verdade única sobre o fato pertence ao agente e esse morreu. Aliás, não será exagero supor que nem mesmo o menino tivesse noção exata da dimensão do ato que perpetrou.
Confesso que não consigo me desligar do assunto. Volta e meia me pego pensando no menino em seus últimos e fatais momentos. A premeditação do crime, a execução de seu plano fatal e a razão pela qual decidiu renunciar à vida tudo isso não se enquadra dentro daquilo que entendo como lógica das coisas. Em geral, quando algo muito estranho acontece, costumo apelar para a ficção na qual em geral tudo se torna possível. Trata-se de um raciocínio simplista que parte de um princípio de suposta veracidade ficcional, ou seja, de até que ponto um leitor é capaz de suportar determinado tipo de invencionice. No caso específico do crime ocorrido na escola a pergunta é: caso eu escrevesse a história de um menino de 10 anos de idade que atirou duas vezes na sua professora e depois se suicidou alguém acharia esse tipo de ficção viável?
Vejo-me obrigado a dizer que jamais escreveria uma história assim porque eu mesmo não acreditaria e duvido que alguém desse crédito a ela. Então, se não serve nem à ficção, que dizer em relação à realidade?
Aconteceu numa escola de São Caetano do Sul: um menino de 10 anos deu dois tiros na sua professora e suicidou-se em seguida. Se ele copiou inconsequentemente algum modelo ficcional que viu na televisão, se notícias de crimes praticados em escolas nos EUA fomentaram a imaginação dele, se ele tinha aos 10 anos uma precoce e profunda visão da inutilidade da vida ou se simplesmente desejava chamar a atenção de seus próximos jamais saberemos. O fato é que está morto e deixa-nos como legado o enigma de uma renúncia precoce a um mundo do qual preferiu desistir violentamente.
Benvinda a primavera
Há quem afirme que os que não gostam de flores não são boas pessoas. Há quem não viva sem flores, seja pelo perfume, seja pela beleza delas. Existem preferências por essa ou aquela flor, pela composição dos buquês etc. Quando menino morei em casa com quintal grande. Nele minha mãe tinha canteiros onde plantava legumes e verduras, outros só com flores. Mamãe era apaixonada por roseiras nas quais se deliciava fazendo enxertias. Outras preferências dela eram os copos-de-leite e os antúrios. Ela gostava de flores, mas não de arrancá-las, coisa que fazia apenas por ocasião de finados. Nesse dia separava seus copos-de-leite e rosas para levar aos túmulos dos parentes.
Minha tia, irmã de minha mãe, era uma mulher previdente. Em finados levava flores para os mortos da família e mais algumas que depositava em túmulos nos quais ninguém colocara flores ou velas. Explicava-se dizendo que fazia isso para o caso de não receber flores depois de morta: alguma boa alma se compadeceria de seu túmulo sem ornamentos e faria como ela: depositaria pelo menos uma flor ou acenderia uma vela por ela. Realizava, assim, uma espécie de investimento no futuro incerto, coisa do tipo corrente de solidariedade na qual os participantes cuidariam uns dos túmulos dos outros.
Mas, flores não só para a morte. Na maior parte do tempo estão associadas a momentos felizes. Na minha casa sempre há flores adornando os ambientes. De tal modo me acostumei a elas que sinto falta quando murcham e não há tempo para a reposição imediata. Admiro muito pessoas que tratam flores com carinho e se comovem com brotos nascentes, formas de vida que desabrocham como tantas outras, ainda que para viver por tão pouco tempo. A mão que passa levemente sobre pétalas sem tocá-las, como a delinear em gestos a geometria das flores, o amor que se revela através das pequenas coisas, tudo isso está implícito na paixão das pessoas pelas flores.
Assim, seja bem vinda a primavera que se abre nesta manhã de 23 de setembro. A garoa de ontem terá sido proposital, quem sabe enviada para regar plantas com suavidade e fazê-las despertar com alegria na estação que a elas pertence.
É primavera. Saúdo a nova estação que chega na manhã de sol. Sobre a mesa em que trabalho está um pequeno vaso com uma única flor. Agora pouco olhei para ela e pareceu-me que sorria. Fixei bem os olhos nela e de repente vieram memórias dos tempos da minha infância, revi os canteiros do quintal de minha casa e minha mãe debruçada sobre eles.
As flores são capazes de milagres inclusive o de permitir que, levados pelo perfume delas, nos transportemos no tempo.
Mulheres esquartejadas
Dizer que assunto de homem é mulher pode ser exagero embora o persistente e tenaz empenho dos homens e falar sobre e, principalmente, observar mulheres. Rodinhas de homens ocupando-se dos assuntos mais sérios - futebol, por exemplo – descabam no mínimo para olhares interessados quando por perto deles passa alguma desavisada gostosona. Já entre as mulheres encontram-se reações diferentes em relação a atitudes desrespeitosas de homens, variando da indignação a certo grau de compensação pelo exibicionismo muitas vezes bem planejado.
Outro dia uma amiga, na casa dos 50 anos de idade, apareceu muito produzida ao que os colegas de trabalho reagiram dizendo que ela, no momento vivendo sozinha, teria algum plano estratégico em mente para laçar alguém. Do que ela riu bastante para depois, após o “quem me dera”, contou que acabara de passar por perto de uma construção e recebera assovios dos operários que lá trabalhavam. Disse isso e sentenciou: no dia em que você passar por uma obra e não receber nenhum assovio, então tudo estará realmente acabado.
Entre os homens há de tudo como se sabe. O tom geral em relação às mulheres deve ser de discrição e respeito, mas não é o que acontece. Olhares insistentes são até mesmo o que menos importa. O pior são atitudes agressivas acompanhadas de palavreado totalmente impróprio utilizado por uma verdadeira legião de acanalhados. Acontece em todo lugar, na rua, na condução, no serviço, nas lojas etc. Existem aqueles caras, em geral muito mal resolvidos, para quem mulher definitivamente é a única coisa que importa. Conheço um português velho que é fissurado no assunto e não sabe abrir a boca para dizer coisa que não se relacione a sexo de mulheres. Chega a ser insuportável ver um cara em rota de decrepitude final, falando as baboseiras de sempre, puxando assunto para comentários eróticos nos quais sempre arranja um jeito de envolver mulheres conhecidas. Enfim, a espécie humana prima por oferecer espetáculos de todo tipo.
Não sei se as pessoas já viram no site do UOL as tais “Gatas do Brasileirão”. São mulheres jovens, dotadas de físicos bonitos e atraentes, cada uma representando um dos times que competem no Brasileirão. Aparecem vestidas sumariamente nas fotos e suas qualidades físicas são confrontadas quando as equipes que representam jogam entre si. Assim, outro campeonato corre paralelo aos jogos entre as equipes que disputam o Brasileirão. No dia de um jogo as beldades que representam os times são postas lado a lado, fulana versus fulana, e o público vota na preferida. Deriva daí uma classificação baseada nos pontos obtidos através da votação do público que se delicia em observar as qualidades físicas das competidoras.
Sendo o mote do campeonato a observação do físico privilegiado das mulheres os responsáveis pelo evento esmeram-se em oferecer à dedicada e persistente torcida votante fotos que permitam observar melhor e votar com acerto. Vai daí que não bastam as fotos de corpo inteiro nas quais se valorizam seios e bumbuns volumosos. A coisa vai mais além com a apresentação de fotografias nas quais aparecem apenas detalhes do corpo. Aqui só parte das costas e o bumbum, ali só os seios, noutra apenas as coxas e região inguinal, fotos sem as faces das mulheres cujos físicos passam definitivamente à categoria de objetos de consumo. Esse esquartejamento, a partição do corpo, é inevitavelmente acompanhado de despersonalização. Mas, isso pouco importa: o que vale é o mergulho na intimidade, a devassa dos mistérios do corpo, o direito de decidir sobre o melhor bumbum, o poder que o sexo confere aos que votam em mulheres submetidas ao capricho da fama.
Machado de Assis e o Homem Aranha
Como se sabe a biografia de Machado de Assis apresenta lacunas que muitos de seus biógrafos creditam ao mistério criado propositalmente por ele mesmo sobre a sua vida. Um escritor quando se dá ao trabalho de explicar-se corre o risco de reduzir o interesse sobre a sua obra e Machado teria perfeita consciência desse fato.
Uma das questões que envolvem a personagem Machado de Assis relaciona-se com a negritude que embora os desmentidos teria sido desconsiderada por ele. Descendente de africanos Machado teria negado a sua origem. Tendo perdido muito cedo a mãe e sendo criado por uma negra Machado a abandonara. O autor dessa denúncia foi o professor Hemetério dos Santos, negro que se notabilizou pelas suas contribuições à gramática. Segundo a descrição do escritor Josué Montello Hemetério era “esguio, ombros altos, bigode farto, óculos sem aro a lhe protegerem as lentes, o paletó bem talhado a exigir o colete branco, a gravata borboleta realçando o colarinho de pontas viradas, todo ele a nos dar a impressão de que o mestre, assim preparado, se requintaria no traje para comparecer a uma solenidade em sua própria homenagem”.
Em suas críticas a Machado, em relação ao problema do negro, Hemetério escreveu : “não mereceu do romancista e do poeta senão pálidas e aguareladas pinturas tão tímidas que claramente revelam que do artista primeiro partiam as ideias preconcebidas contra a sua cor e procedência”. E, passando para as insinuações caluniosas: “Eu conheci essa boa mulata velha (madrasta de Machado), comendo de estranhos, com amor e conforto máximo, chorando, porém, pelo abandono nojoso em que a lançara o enteado de outrora (…)”.
As declarações de Hemetério fizeram escola e até hoje aparecem em trabalhos nos quais se busca analisar a personalidade de Machado de Assis. Existem desmentidos sobre esses fatos, sendo notório o rejubilo de Machado por ocasião da abolição da escravidão.
Posto isso, eis que mais de 100 anos depois o problema da negritude em relação a Machado de Assis volta a ser lembrado. A Caixa Econômica Federal acaba de veicular um anúncio no qual Machado de Assis, apresentado como cliente, é interpretado por um ator branco. Obviamente, o anúncio veiculado pela televisão gerou protestos e a caixa retrocedeu retirando-se do ar e desculpando-se publicamente.
E o que tudo isso tem a ver com o Homem Aranha? Acontece que acaba de sair nos Estados Unidos uma revista em quadrinhos na qual o Homem Aranha é um negro. O presidente dos Estados Unidos é negro e dias atrás uma negra foi eleita Miss Universo. Do que se conclui que a Caixa Econômica Federal saiu na contramão e felizmente retrocedeu.
Finanças pessoais
Gastar demais é vício, há quem garanta isso. Mulheres gastam mais que homem já que são dadas ao consumo. Em relação a essa última afirmação não há consenso porque genérica demais. Mas, que os homens são dados a criticar as mulheres porque gastam muito em roupas, sapatos e cosméticos, isso não se discute. Basta ver o marido que acompanha a mulher num shopping: ele esperando, ela provando uma infinidade de peças até optar por algumas. Se o assunto são os sapatos, então…
E agora aparecem essas notícias falando sobre figuras do esporte afundadas em dívidas. Atletas norte-americanos solicitando falências pessoais porque investiram mal ou gastaram em demasia. É quando surgem conselhos que dizem servir como lições gerais para boa gestão de fortuna pessoal. O principal é desacelerar, reduzir gastos e investir em ritmo mais lento. Como se fosse simples assim. Ou seja, não cometer erros financeiros. Tenho um amigo que diz que o grande erro financeiro dele foi ter nascido pobre.
Dinheiro na mão é vendaval, escapa por entre os dedos. Há os que entesouram - os discípulos de Tio Patinhas. Conheci um homem que vivia em quase miséria. Sobre ele corria que fora muito rico. Fazendeiro, a certa altura de sua vida cansara-se e vendera tudo para apurar o dinheiro. Não sendo pessoa de colocar dinheiro em banco mantivera-o em casa, bem guardado e seguro.
Foi bem assim. Correram os anos e o dinheiro dentro de um baú. Até que uma emergência levou o avaro a precisar da grana para pagar a conta num hospital. Só então o homem descobriu que a moeda mudara e ele não trocara as notas de seu rico dinheirinho que se transformara numa montanha de papel inútil.
Vim a conhecer esse homem quando ele já era muito velho. Lembro-me bem de uma casa cujos cômodos tinham pé direito muito alto e chão de tábuas. No quarto, deitado sobre a cama, ele gemia alto. Me pai fora visitá-lo e me levara junto, eu que na época teria no máximo uns sete anos de idade.
O doente que fora rico morreu dias depois. Desde então passei a desconfiar do dinheiro e da dependência que temos dele. Os entendidos dizem que para ter dinheiro, não se pode tratá-lo mal. Nada de enrolar notas de qualquer jeito e enfiá-las no bolso. Entre o dinheiro e quem o possui é preciso que se estabeleça uma relação digamos carinhosa. Será? Caso seja assim estarei condenado a nunca ter mais dinheiro do que o pouco que me rendem os meus esforços diários.