Arquivo para outubro, 2011
7 bilhões de seres humanos
Hoje, 31 de outubro de 2011, a humanidade alcança a cifra de 7 milhões de seres vivendo na Terra. Isso representa que em algum momento das 24 horas deste dia nascerá a criança que, acrescida ao número dos já viventes, completará os 7 bilhões.
O número de seres humanos é grandioso quando olhamos para trás. De fato, há cerca de 20 anos, nos idos de 1990, a população humana era de 3 bilhões de habitantes. Isso significa que entre 1990 e 2011 a população mais que dobrou em número. Entretanto, se forem corretas as avaliações sobre tendências de crescimento populacional, os atuais 7 bilhões não são tão grandes assim: existe a possibilidade, caso se mantenha o atual ritmo de crescimento, que a população humana chegue a 15 bilhões de pessoas em 2100, ou seja, no final deste século. Em verdade para que isso possa vir a acontecer torna-se necessário que alguns fatores atualmente determinantes do crescimento populacional se mantenham nas mesmas proporções, entre eles a taxa de fecundidade. É baseando-se em fatores como a possibilidade ou não de manutenção da fecundidade que estudiosos estimam que até o término do atual século a população humana atinja, no máximo, a cifra de 10 bilhões. Em todo caso, raciocínios dessa ordem mais pertencem ao ramo da futurologia dado que, de fato, não se sabe o que virá pela frente.
O que não pertence à futurologia é o fato de que mesmo com 7 bilhões de pessoas o mundo não anda lá muito bem. Há, sim, espaço para que todas as pessoas se instalem por aí e vivam nos conformes. Entretanto, o número crescente de pessoas torna-se preocupante na medida em que a civilização optou pelo consumo com todas as suas consequências. O fato é que mesmo com o atual número de habitantes existente em cada país torna-se difícil, senão impossível, proporcionar a todas as pessoas condições de bem-estar. Se isso está a ocorrer neste exato momento é de se perguntar sobre a natureza do milagre que deveria acontecer caso em um século a população humana dobrasse em número. Que tipo de solução teríamos para combater as desigualdades sociais, a miséria, a fome, o excesso de lixo, o aquecimento global, enfim todos os problemas que já hoje preocupam governos e populações sem que para eles se encontrem soluções a contento?
Pode-se dizer que os problemas ecológicos pareceram mais impactantes a partir dos anos 70 do século passado. Não que anteriormente os problemas inexistissem: estudiosos dedicavam-se ao assunto que viria a popularizar-se mais nas décadas seguintes. Lembro-me bem de que ainda nos anos 70 não se dava tão grande importância aos problemas ligados à conservação ambiental. Não deixa de ser interessante lembrarmo-nos de que, em 1970, a população brasileira era da ordem de 90 milhões de pessoas, os tais “90 milhões em ação” como se dizia em relação à torcida pelo Brasil na Copa de 70. Como se vê, existia naquele ano pouco mais que a metade da população que hoje tem o Brasil. De lá para cá muita coisa aconteceu, o mundo mudou e o Brasil com ele. Nossos hábitos hoje são diferentes e o mundo segue na direção que todo mundo conhece.
Nos anos 70 ensinava-se darwinismo nas escolas partindo-se da famosa proposição de Thomas Malthus (1766-1834) que define o crescimento do alimento em progressão aritmética enquanto que as populações crescem em progressão geométrica. Ainda no século XIX Malthus observara a disparidade entre a velocidade de crescimento populacional e a velocidade de meios para a subsistência dela, daí decorrendo a luta pela existência. Essa importante proposição de Malthus era e é usada, durante as aulas, como meio introdutório ao darwinismo. Mas, em termos populacionais não se olhava para o malthusianismo como perigo iminente, algo a acontecer em breve, daí naquela época o crescimento populacional não parecer muito preocupante. Atualmente, ao chegar aos 7 bilhões de pessoas no mundo, a coisa muda de figura e há que se perguntar como deverá se administrar o futuro para que os povos da Terra possam viver em paz e desfrutando de bem-estar.
Enfim não é demais pedir, no dia em que os seres humanos se tornam 7 bilhões, que a humanidade pense no futuro da sua própria espécie no planeta. Afinal a Terra existe há cerca de 4,5 bilhões de anos, mas a presença do homem sobre ela se conta com algarismos de milênios. Convenhamos que se trata de muito pouco tempo para que se possa idealizar a noção de eternidade da espécie humana no planeta.
Página em branco
Eu não quero a página em branco e ela também não me quer. Estamos os dois, portanto, diante de um impasse: um não quer ao outro, nada além disso. Verdade que não é difícil resolver o problema: basta preencher a página em branco com as velhas letras, tão conhecidas, aquelas que formam palavras e as sentenças que contam coisas e mais coisas. Daí que se pode contar, por exemplo, que um rapaz de 22 anos assassinou o irmão dele, um tetraplégico de 28 anos de idade. O tetraplégico chegou a essa condição justamente por culpa do irmão mais novo que o prejudicou durante um racha entre os dois. Corpo paralisado o tetraplégico decidiu que o irmão devia a ele a libertação através da morte, daí a dívida saldada por meio de tiros.
Pronto, a página em branco vai se desfazendo porque esmagada pelas letras que formam palavras e estas as sentenças que relatam os acontecidos. Aliás, retornando ao mundo dos acontecidos paramos no que ainda está acontecendo como o tal uso de questões do exame do ENEN em um colégio de Fortaleza. Agora já se fala que mais de um colégio daquela capital conhecia, com antecedência, algumas das questões que caíram nas provas do último domingo. Pelo que o Ministério Público sai a campo pedindo anulação da prova do ENEN. Começa a girar um rolo compressor que, se chegar aos finalmentes, vai dar o que falar com prejuízos eleitorais para o atual Ministro da Educação, Fernando Haddad. Ele, atual ministro e candidato à Prefeitura de São Paulo, veio a campo dizendo que política é política, ENEN é ENEN, nenhuma relação entre os dois. Afirma que é preciso combater a corrupção para impedir que coisas como essa ocorrida em Fortaleza deixem de acontecer. A ver como será a cobrança popular a mais esse “engano” na área da Educação, isso nas próximas eleições.
Mas, como uma sentença puxa outra, há também o caso do Ministério dos Esportes que foi assumido por essa pessoa tão peculiar que é Aldo Rebelo. Nada consta contra a integridade desse homem que passa de um governo a outro, sendo chamado para missões arrepiantes. Que se saiba não tem ele ligação com a área esportiva, mas é importante que se adestre muito depressa de vez que a FIFA está ai, rugindo como um leão muito grande à cata de lucros. O grande assunto do novo ministro é a Copa do Mundo que se realizará aqui em 2014. A sempre benvinda Copa ao Brasil é ainda mais benvinda aos falsários de plantão entre os quais figuram altas personalidades do mundo do esporte interessadas na destinação e possíveis desvios de grandes verbas, conforme notícias divulgadas pela imprensa.
Como se vê, não há página em branco que resista às atrocidades em andamento no dia-a-dia do Brasil e do mundo. Aliás, por falar em mundo, a Europa acaba de aprovar um meio calote na dívida da Grécia e corre o boato que querem auxílio do Brasil e da China nesse pacote. A possibilidade de o Brasil entrar nessa leva-nos diretamente àquele desajeitado, mas sempre presente, “faz-me rir”. De fato, faz-me rir ouvir falar sobre o Brasil alocar parte de um bolo de débitos europeus. Em relação a isso é bom lembrar o quanto fomos, tradicionalmente, lesados pelos tais países do chamado primeiro mundo. Seria muito bom se gente do atual governo se desse ao trabalho de recordar as lições de história brasílica sobre os tempos de colonização, império e república. Que tal voltarmos a falar sobre a impagável dívida externa do Brasil, sobre a absurda inflação que nos roeu, durante anos e anos, até dentro dos ossos. Pois, nesse tempo todo de grande atraso, o máximo que nos deram foram empréstimos a juros estipulados por eles. E assim por adiante. Então, agora que estamos a nos reerguer, vamos entrar nessa de ajudar a Europa?
Ah, páginas em branco. Aconselho a quem tiver alguma pela frente a não escrever nada nela. Cuidado com as letras que formam palavras, essas as sentenças, essas ainda que nos servem para contar coisas sobre as quais o melhor talvez seja silenciar, fingir que não acontecem ou aconteceram. A paz, a verdadeira paz, talvez só exista nas páginas em branco, nas linhas sem letras, palavras e sentenças, nos espaços vazios que até mesmo as imaginações mais ousadas entendem ser melhor, muito melhor, respeitar.
Época de demissões
Enfim o Ministro dos Esportes parece dar-se conta de que sua situação à frente do Ministério torna-se, a cada dia, mais insustentável. Denúncias envolvendo grandes somas de dinheiro destinadas a ONGs constituem-se no motivo para o anunciado pedido de demissão do Ministro, até este momento não consumado.
Diante de mais um caso de afastamento de ministro por denúncias de corrupção é de se perguntar quem se aguentaria no governo Dilma caso cada ministério viesse a ser contemplado com algum tipo de investigação. A dúvida sobre a equidade dos setores do governo de forma alguma pode ser rotulada como injusta: o que passa ao cidadão comum é a existência de uma vasta rede de tramoias as quais parecem ser orgânicas dentro do governo. Por “orgânica” entenda-se uma máquina que só funciona se azeitada através de múltiplos canais de conchavos de modo que qualquer obra sirva ao benefício de intermediários para que, através deles, venha a ficar pronta.
Não será também exagerado dizer que dentro dos órgãos públicos instalou-se um modo de funcionamento o qual, em verdade, praticamente independe de quem está à frente deles. A herança de benefícios e corrupção passa de geração a geração de modo que o mal feito apresenta-se mais ou menos institucionalizado. Não é de se duvidar que alguém leia essas linhas e as credite ao exagero. Entretanto, não custa lembrar que ainda que se possa taxar como exageradas algumas das afirmações acima nem por isso elas deixam de ser pertinentes.
Há que se perguntar sobre o quê, afinal, se passa no país de vez que a curtos intervalos de tempo alguém, geralmente excluído dos bons e não tão saudáveis negócios, põe a boca no trombone e derruba ministros. Afinal, um ministro deve ser, por premissa, cidadão acima de qualquer suspeita, digno a ponto de ser nomeado para gerir vasto setor de negócios do país. De repente a pessoa de quem se espera reputação ilibada é acusada de envolvimento com corrupção; dilui-se, então, o grande véu das aparências e eis o homem a ser demitido ou a afastar-se do cargo para qual foi nomeado.
Já vai se perdendo a conta do número de ministros afastados de seus cargos quando ainda estamos a três meses da data do primeiro aniversário do governo da presidente Dilma. Para piorar esse quadro melancólico estamparam-se hoje, na internet, acusações de que um colégio de Fortaleza utilizou em suas provas questões iguais – iguais e não semelhantes! – às que caíram nas provas do ENEN, realizadas no último fim de semana. Esse assunto ainda vai ganhar corpo e, mais uma vez, um Ministério, agora o da Educação, terá que se digladiar com a possibilidade de quebra de sigilo das provas realizadas em todo o Brasil.
A nós só resta esperar, torcer para que desta vez tudo não passe de um engano ou coincidência porque simplesmente não dá para se acreditar que, mais uma vez, as provas do ENEN sejam maculadas por atos corruptos.
E assim caminha a humanidade.
Um dia depois do outro
- Esse desânimo! Nada parece forte o suficiente para quebrar a rotina desanimada que avança ao longo dos dias. Talvez a mesmice de tudo, as queixas de sempre, pessoas indo e vindo com problemas na maioria solucionáveis, uns tantos sem solução aparente. No fundo nada de importante, nada que possa mudar governos, nada capaz de alterar o nada a que, no fim das contas, tudo se reduz.
Ouço as coisas depressivas, elencadas acima, de um amigo que me fala ao telefone. Acossado por doença resiste ele ao agravamento de sintomas que incluem crises de dor. É a dor que quebranta a solidez desse homem sempre forte e resoluto, agora recolhido à própria casa, olhando para o mundo como lugar em que habita, mas não mais experimenta.
E dizer que esse homem tão ativo agora se curva à insensatez de doença grave contra a qual pouco pode. Passa a depender de médicos e tratamentos, de condições impostas as quais no fundo – ele sabe bem disso – alongarão seus dias de vida, talvez com mais sofrimento, mas não resolverão o problema dele. Porque a doença que o submete, todos sabem disso, pertence à categoria das que não recuam. Remédios podem, sim, atrasar a progressão do mal que por fim e infelizmente acabará triunfando.
Desligo o telefone e penso nesse amigo, tão lúcido e altivo, tão forte, cuja força devagar sucumbe à doença. Fecho os olhos e torna-se possível revê-lo em seus bons momentos, homem alto, austero, decidido, amigo de seus amigos a quem não trai de jeito nenhum. Pois é ele quem agora me chama, nas entrelinhas deixa muito claro que me quer por perto, roga por visitas frequentes, é a mim que o amigo escolheu para ajudá-lo a suportar o transe pelo qual passa.
Não sei como dizer a ele que não reúno forças para tanto. Não serei eu, a essa altura da vida, o companheiro ideal para auxiliá-lo na grande travessia, se é que alguém pode mesmo ser útil a ele durante o período que se avizinha. Daí que confesso a minha incompetência para a tarefa solicitada. Deixo aqui expressa, também e publicamente, a minha covardia diante de fatos ligados à morte com a qual não quero nem pretendo tratar até que não me seja possível ignorá-la.
Que me desculpe o amigo de tantas horas e segredos compartilhados. Sei, perfeitamente, que estou a abandoná-lo no momento em que mais precisa de mim, mas que posso fazer se humano sou e incapaz me sinto para ficar de par com ele até o instante final?
PS: Recebi esse texto de um leitor que não se identificou. Imagino que a intenção dele seria a de registro de suas palavras em algum lugar, um blog por exemplo. Sigo o que me pareceu ser de vontade do leitor, publicando o texto que me enviou. Em casos dessa natureza o melhor é nada dizer, optando-se pelo silêncio distante e respeitoso.
A posteridade
Cena de cinema que ficou gravada na minha memória: Spartacus e seus soldados crucificados ao longo de uma estrada romana. Como não poderia deixar de ser o império romano sufocou a rebelião de Spartacus e seus gladiadores deles restando, talvez mais que as ações praticadas durante a revolta, os corpos presos às cruzes, onde morreram.
Júlio Cesar - cujas ações contra a República Romana se deram nos 50 anos que precederam o nascimento de Cristo - é lembrado por participações em vários momentos de sua vida. O momento de travessia do Rubicão, o “Vim, vi e venci”, e a própria morte dele sob as mãos de Brutus fazem parte de contexto bastante conhecido e sempre citado.
Entre nós Nelson Rodrigues está entre os escritores mais lembrados. A todo transe Nelson é citado na mídia, seja ele mesmo ou as incríveis personagens e situações que nos deixou em seus livros. Nelson caracterizou-se como uma espécie de “outro olhar” sobre nós mesmos: desvestiu os seres humanos de suas aparências para mostrá-los nus e sob o comando de seus instintos.
Spartacus, Júlio César e Nelson Rodrigues. O que há de comum entre esses três homens? Creio que apenas o fato de permanecerem vivos nas memórias, cada um através da legenda criada ao longo de sua vida. Mortais comuns destacaram-se eles por ações incomuns que conferiram perenidade às suas memórias.
Enfim, este pretende ser um texto sobre memórias. Ao citar aleatoriamente três personagens, escolhidas ao acaso, buscava-se justamente imaginar o que se dirá, daqui a alguns anos, sobre pessoas que atualmente ocupam o noticiário. Dentre elas o grande destaque do momento é Muammar Gaddafi, líder líbio que acaba de ser morto por forças revoltosas. Sobre a longa carreira de Gaddafi e a mão de ferro que utilizou para governar o seu país pouco há a se acrescentar de vez que o assunto é de domínio público. Entretanto, as circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas da morte do ditador líbio estão dando o que pensar. Gaddafi estava num túnel de esgoto e foi retirado de lá com vida. Relata-se que, depois de sair, deu cerca de dez passos, e foi atingido por disparos. As cenas seguintes, mostradas em vídeos muito confusos, são terríveis: um ex-ditador ainda vivo é carregado pela turba e não se sabe dizer com precisão o momento em que ele morreu. Depois disso eis o corpo do ex-ditador, acompanhado do de seu filho, também morto, exibidos num frigorífico onde o visitam pessoas que parecem querer certificar-se de que, de fato, a era Gaddafi terminou.
Não é difícil imaginar o que se dirá sobre Gaddafi daqui a alguns anos. O que não é possível afirmar é se a memória do ex-ditador líbio será duradoura. Por enquanto Gaddafi não passa de um cadáver insepulto, reclamado por sua família que clama por enterrá-lo. Isso e nada mais nesse fim de cena trágico e algo patético do desaparecido líder líbio.
Enquanto a memória de Gaddafi permanece, enquanto ele se torna lentamente passado, a Líbia desperta para aquele que, assim se espera, venha a ser um novo tempo. Certamente, nesse momento, o povo líbio não se preocupa com a memória que restará de seu ditador e de seu governo. O que compete aos líbios é deixar de lado o passado e olhar para frente, em busca de solução para o país que lentamente sai de uma terrível ditadura. Assim, a questão de como Gaddafi será ou não lembrado no futuro, fica por conta de observadores que se perguntam sobre o modo de ser das gentes e a permanência dos fatos em suas memórias.
Gaddafi morto
Enfim uma longa fase do conflito que acontece na Líbia termina: Muammar Gaddafi está morto, capturado que foi pelos rebeldes. Seria temerário falar em fim do conflito porque, após décadas de ditadura, o país inevitavelmente passará por uma série de ajustes durante os quais não se poderá descartar derramamento de sangue.
A natureza da longa ditadura de Gaddafi na Líbia é conhecida, sendo desnecessário rememorá-la. O que mais chama a atenção no momento é esse capitulo final da longa história de dominação de um líder que se tornou conhecido pela sua imprevisibilidade. De fato, nas últimas décadas Gaddafi povoou o imaginário do ocidente com atitudes de extrema arrogância e periculosidade. Durante seu governo esmagou o povo líbio e fez questão de mostrar-se ao mundo como alguém de poder imenso e que tudo pode, desafiando instituições internacionais e colocando-se à margem das regras de convívio entre as nações. Foi assim que se cercou com a aura de rebelde incontrolável, tantas vezes sendo considerado como uma espécie de louco extravagante, mas sempre impossível de ser ignorado.
Hoje Gaddafi foi finalmente alcançado pelos rebeldes e morto. Um vídeo que corre na internet mostra o ditador nos momentos finais de sua vida. Ainda vivo é sustentado por rebeldes; depois de morto a todo instante as pessoas que o cercam movimentam o corpo, deixando-o ora de bruços, ora de barriga para cima. Um close no rosto mostra um homem envelhecido. Nada nesse rosto sugere o temível ditador, levando-nos a pensar que a morte iguala os homens na inércia, desmitificando-os.
Não importa de quem se trate, é assim que acontece. No fim das contas um homem que fez e desfez, aquele que por décadas frequentou os noticiários em todo o mundo, esse homem jaz sem vida no chão e tem o seu corpo manipulado por gente desconhecida de seu próprio povo. Nada da grandeza anterior, nada que evoque o poder perdido. O mito se desfaz na velocidade em o homem deixa de ser e se transforma na massa inerte que em breve há de se decompor.
Fica, entretanto, a dor, a longa história de opressão, a esperança de que mais que depressa tudo se torne passado e uma era de paz se inaugure para o povo líbio.
No mundo dos negócios
Recebo o telefonema de um amigo de ascendência árabe, negociante do setor de roupas, em São Paulo. Conversamos sobre coisas corriqueiras e, depois, ele me fala da alegria dele pela troca do soldado israelense, há cinco anos refém do Hamas, por palestinos.
Ouço o que me diz o amigo e afirmo compartilhar da alegria dele. Insisto que todo passo, por menor que seja, em direção à paz, é benvindo. Na verdade não existe assunto mais cansativo – e explosivo – do que essa interminável encrenca entre judeus e palestinos com direito a notícias diárias sobre agressões mútuas na Faixa de Gaza. Sinceramente, quando começam a falar sobre isso, mudo de canal porque sou de opinião que se trata de questão insolúvel dado envolver etnias diferentes, preceitos religiosos etc. Aliás, desde que me conheço por gente ouço falar sobre o pau que come entre judeus e povos de origem árabe. Na conversa com o meu amigo digo isso tudo, passo pela Guerra dos Seis Dias e retorno ao dia de hoje no qual um acordo devolve à família dele um pobre prisioneiro cujo primeiro pedido foram óculos já que não enxerga bem e perdeu os seus durante o cativeiro.
Quando termino a minha peroração o meu amigo ri e confessa que não está se referindo a aspectos humanitários, nem mesmo pensando na possibilidade de paz. Para ele o que interessa no momento é o excelente negócio realizado pelos palestinos que trocaram mil pessoas por um único prisioneiro. Negócio de povo dado ao comércio que traz no sangue o timing de bons lucros.
Confesso que me surpreendo com o que diz o amigo, embora não possa discordar dele. De fato, sob o ponto de vista numérico, os palestinos fizeram um negócio excelente. Fico feliz pelo por ele que consegue tratar questão tão delicada segundo ótica mais leve. De resto sabemos que, em matéria de negócios, árabes e judeus são especialistas. Não é a toa que os empreendimentos desse meu amigo crescem dia-a-dia.
Chroma key
O chroma key é um recurso muito útil para quem trabalha com filmes e fotos. Trata-se de um fundo de cor azul ou verde, bastante uniforme, que é colocado atrás de quem está sendo filmado ou fotografado. O interessante é que esse fundo pode ser posteriormente retirado, colocando-se em seu lugar uma imagem de interesse, uma paisagem por exemplo. Filmes de ação utilizam muito o chroma key: atores gravam cenas de perigo diante de um fundo azul ou verde que depois é substituído por imagens futuristas etc.
Eis aí uma coisa que poderia ser feita no Brasil, envolvendo inúmeras situações ligadas às atividade política no país. Seria muito interessante se entrevistas de personagens públicas envolvidas em falcatruas fossem gravadas com um fundo removível para depois serem editadas com motivos adequados ao contexto, grades por exemplo. Cairiam bem, também, imagens de presídios e mesmo algumas tomadas ao vivo durante assaltos a bancos. Outra sugestão seria utilizar como fundo pessoas em intermináveis filas esperando por atendimento, enfermarias lotadas e em péssimas condições, casebres onde vivem famílias enormes e assim por diante. Nesse caso o editor de imagens estaria apostando no contraste entre o enriquecimento ilícito e a miséria que assola grande parte da população do país.
Pode ser que a sugestão de uso do chroma key não cole. Imagino que políticos, por exemplo, não se sujeitarão a conceder entrevistas sem saber de antemão que imagens serão utilizadas como pano de fundo às suas declarações. É pena porque o que se quer é transparência: todo mundo sabe da importância de imagens que contextualizem cenas, se possível até com efeitos sonoros que proporcionem melhor efeito às palavras emitidas pelos declarantes.
No momento está na berlinda o Ministro de Esportes, acusado, em entrevista concedida à “Revista Veja”, de ter recebido propina. O ministro nega, mas o acusador diz ter provas que apresentará nos dias seguintes. Como ficaria o caso do ministro em termos de uso de chroma key? Bem, no momento não há porque se duvidar da inocência dele que, assim espero, venha a se confirmar. Portanto, para a edição de uma entrevista dele com possibilidade de troca de fundo o melhor é trocar o verde ou o azul, por imagem ligada ao esporte, a da construção do Itaquerão, por exemplo. Entretanto, se as coisas se complicarem nos próximos dias e sobre o comportamento do ministro pairar alguma dúvida aí será hora de mudar o fundo por algo contundente que, por enquanto, nem imagino.
Eis aí mais um ministro do governo Dilma sendo acusado. Do jeito que as coisas vão pode ser que talvez um dia, no futuro, se alguém tiver a ideia de tirar uma foto do Brasil, o melhor venha a ser mudar o fundo, trocando o azul das águas que banham o litoral por algo de cor mais forte, roxo, por exemplo.
A força do imprevisível
Num mundo de rotinas estabelecidas a imprevisibilidade funciona como desvio do pêndulo. Na Marginal do Tietê um técnico do Departamento de Trânsito decide parar para organizar o tráfego que não flui após a ocorrência de um acidente. O técnico desce de seu veículo para logo em seguida ser atropelado e morto por um carro que passa no local.
No Rio Grande do Sul um motorista de ambulância é chamado para atender vítimas de um acidente automobilístico. Ao chegar ao local encontra o próprio filho morto.
Acaso? Destino? Trapaças da sorte? Há muitos anos um amigo me dizia que se você não quiser encontrar uma pessoa que vive na mesma cidade o melhor é não sair de casa. Perguntei a ele se a teoria seria válida para uma cidade como São Paulo e ele me respondeu: mais ainda.
Não sei. O fato é que coisas assim não deixam de impressionar. Todo acontecimento que desafia a teoria das probabilidades não deixa de ser estranho. Qual seria, por exemplo, a probabilidade de um motorista de ambulância atender a um acidente no qual o próprio filho é o acidentado e, pior que isso, morreu? Nem quero começar a imaginar a surpresa e a dimensão da dor desse pai tão cruelmente maltratado pelas circunstâncias.
A intenção desse texto não é a de discutir por que certas coisas acontecem às pessoas, muitas vezes fatalidades que seriam evitadas caso os envolvidos tivessem apenas feito outro caminho. Nem mesmo se pretende ponderar sobre o porquê de algumas pessoas terem sorte, outras não, enquanto outras ainda serem simplesmente azaradas. Para quem não acredita na existência de gente azarada deixo aqui meu testemunho de que conheci pelo menos duas pessoas assim. Talvez você também já tenha cruzado com gente para quem nada dá certo. Se não se trata de azar o que é, então?
Um dos meus azarados prediletos foi pessoa a quem me afeiçoei muito. Ótimo sujeito, lhano, participativo, mas deserdado da sorte a ponto de rir das coisas que a ele aconteciam. Contava muitas histórias nas quais a sua habitual falta de sorte funcionava como protagonista. Uma delas, do tempo da Revolução de 32, é exemplar. Soldado das forças paulistas o meu conhecido estava num trem quando foi abordado por policiais e preso. Contra ele pesavam várias acusações às quais negava com veemência. A situação só foi esclarecida dias depois: a polícia estava à procura de um criminoso que, por acaso, tomara o mesmo trem que o meu conhecido. Mas, que relação existiria entre ele e o criminoso a ponto de ser preso no lugar dele? Ora, muito simples: o meu conhecido era um sósia perfeito do criminoso, conforme pode ele mesmo confirmar através de uma fotografia. O acaso colocara ambos os sósias num mesmo trem. Quanto ao azar esse ficava por conta de ter sido preso justamente aquele que não era o criminoso.
Do que se conclui que as regras desse grande jogo que se passa no planeta e envolve milhares de vidas são muito, muitíssimo, confusas.
José de Vasconcelos
Noite fria em São Paulo. Finalzinho da década de 70. Estou num teatro assistindo a um show de José de Vasconcelos – não tenho certeza, mas naquele tempo não se falava em stand-up. A peça que corria no palco era representada só por Vasconcelos e, como de resto em tudo o que ele fazia, escrita por ele mesmo.
Ao final, aplausos. Cai o pano, público em pé saindo, ordeiramente. É quando das cortinas emerge José de Vasconcelos e grita:
- Ei! Para onde vão? Ainda não acabou…
A partir daí Vasconcelos dedica-se ao que ele tem de melhor: imitações e piadas, inúmeras piadas contadas numa sequência alucinante que quase nos mata de tanto rir. Ri-se tanto que a boca chega a doer. No palco um mestre do humor, explorando todas as nuances possíveis de sua grande arte. Piadas inteligentes que muitas vezes exigem do público algum esforço para acompanhar o raciocínio do artista. De repente estamos numa ilha de humor em estado puro, alegria contagiante. Tudo isso emanando de um só homem que jamais descamba para o escracho. Grosserias e palavrões inexistem.
Quando o artista se dá por satisfeito somos libertados e começamos a sair com cautela porque quando se trata de José de Vasconcelos tudo é possível.
Lembro-me de que antes de deixar a sala de espetáculos me voltei, olhando para o palco como se alguma surpresa ainda pudesse acontecer. Desta vez Vasconcelos não retornou, recolhera-se aos camarins deixando-nos, durante a volta para a casa, a rir de suas piadas.
Ontem José de Vasconcelos, que sofria de Mal de Alzheimer, saiu definitivamente de cena. Pessoas que compareceram ao velório dele e alguns entrevistados destacaram o perfil do humorista, perfeito em sua arte, fazendo rir sem jamais descambar para apelações. José de Vasconcelos deixa saudades em seus fãs, maiores ainda num tempo em que o humor está em crise e a falta de talento gera distorções tantas vezes inaceitáveis.