2012 março at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para março, 2012

Brasil país de contrastes

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É atribuída a Tom Jobim a frase “o Brasil não é para principiantes”. Não é mesmo e pode-se dizer mais: mesmo para nós, brasileiros, o país em que vivemos é um enigma. Culpa da terra? Do clima? Do povo? Ninguém sabe dizer. Sociólogos e analistas debruçam-se sobre esse vasto tema chamado “Brasil”. O país é devassado, mas não explicado. Há quem diga que ainda somos um país em formação daí serem precoces os diagnósticos definitivos. Ressalta-se que somos um povo resultante do maior caldeamento de raças que já se viu, vivendo numa área geográfica de extensão continental. Em cada parte do país, em cada Estado da Federação, hábitos e costumes regionais, língua portuguesa com pronúncias diferenciadas e mesmo tipos físicos diferentes de habitantes. Mas, tudo é Brasil, verde-amarelo, ordem e progresso escrito numa mesma bandeira nacional.

É por isso que se torna impossível viver sem pensar, pelo menos um pouco, o Brasil. O país vai se erguendo de seu secular atraso, as diferenças sociais ainda são gritantes, mas a travessia está em andamento e novas classes emergem, sendo disputadas pela rede de consumo. Reina um espírito de ufanismo só abafado pela triste realidade da violência, dos desmandos, da corrupção e da perda de confiança na classe política.

Então somos assim.

De repente noticia-se que um senador, justamente aquele a quem víamos na tribuna do Senado de dedo em riste, acusando, cobrando, justamente ele surge como envolvido em práticas ilegais. O mundo se volta contra o senador Demóstenes, exige-se a renúncia dele e por aí vai. Mas, se não era ele justamente que…? Que pensar, então? Em quem, afinal, podemos depositar a nossa confiança?

Foi Roger Bastide quem disse que o Brasil é uma terra de contrastes. Não viverei para ver, mas gostaria de saber no que tudo isso vai dar. Daqui a dois séculos como será o Brasil? Será que a terra em que tudo dá, como avisou Caminha, terá superado as suas contradições e eliminado grande parte dos contrastes que a caracterizam?

Quem então estiver vivo saberá.

A “Gang das idosas”

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De que o nosso bom e velho mundo está de cabeça para baixo ninguém duvida. Os acontecimentos diários, tantas vezes terríveis, deixaram de ser surpreendentes diante da frequência com que se repetem.

Entretanto, o mundo é vasto, vasto mundo, como dizia o poeta. E não é que – pasme-se – apareceu uma gang formada por mulheres idosas? Pois não? Trata-se de três senhoras que furtam bolsas e carteiras de pessoas distraídas. Como hoje em dia existem câmeras de segurança filmando tudo o que acontece as idosas foram filmadas com as mãos na botija. Sentadas num restaurante elas esvaziaram a bolsa de uma moça distraída e saíram do lugar na maior. Além disso, apareceram em outro vídeo furtando numa padaria.

Meus amigos, essa não. Temos visto um pouco de tudo, crimes terríveis, acidentes provocados por motoristas embriagados, sequestros, homicídios, corrupção crescente e muito mais. Mas, dá tristeza ver aquelas mulheres já velhas, provavelmente mães e avós, reunidas para roubar. As imagens delas furtando de algum modo ofendem a confiança que temos nas coisas que temos para nós como improváveis.

Até agora a polícia não conseguiu localizar e prender as mulheres que fazem parte da “gang das idosas”. Considera-se a possibilidade de que elas venham praticando muitos outros crimes que não foram filmados. Quem são elas afinal? Será muito interessante saber quem são elas e, principalmente, descobrir as razões pelas quais estão praticando seus crimes.

Torcidas organizadas

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Dois torcedores do Palmeiras morreram após o confronto entre membros da Mancha Verde e da Gaviões da Fiel. Os dois grupos duelaram a propósito do jogo entre Palmeiras e Corinthians no último domingo.

Em Fortaleza realizou-se no domingo o jogo entre as equipes do Ceará e do Fortaleza. As torcidas dos dois times brigaram e viram-se cenas de vandalismo. Uma dessas cenas ocorreu durante a invasão de um hospital por torcedores que quebraram janelas, vidros e assustaram médicos e pacientes.

Com disse a amiga de um dos palmeirenses mortos, ele não foi o primeiro, nem será o último a morrer em ocasiões de confronto entre torcidas. Mas, o fato despertou reações: as torcidas organizadas do Palmeiras e do Corinthians estão, temporariamente, proibidas de entrar em estádios. Alguns torcedores que participaram da baderna foram identificados e estão presos. E a polícia promete aumentar a vigilância em dias de jogos.

Segundo disse um coronel da polícia o problema não está dentro dos estádios, mas fora deles, nos locais combinados entre as torcidas para o enfrentamento entre elas. No último domingo aconteceu de palmeirenses e corintianos marcarem o encontro em local que, segundo a polícia, seria o menos provável. A polícia trabalha com hipóteses e probabilidades e nem sempre acerta, daí proliferarem as lutas entre torcedores.

Entretanto, o que mais espanta é a disposição dos rapazes para participar desses embates nos quais é latente a possibilidade de perder a vida. As torcidas marcam seus duelos através da internet e existe orgulho de seus membros em participar deles. Quando alguém morre, torna-se herói do grupo. Segundo se informa um dos torcedores mortos no último domingo publicava na internet notícias sobre suas participações anteriores e se vangloriava por ter batido muito nos adversários.

As brigas entre torcidas organizadas é assunto em aberto. Apontam-se soluções para ele, destacando-se a necessidade de leis severas e a aplicação de penas que sejam cumpridas. Isso talvez resolva o problema, mas faz-se necessária a análise mais profunda do tipo de falha existente na formação desses rapazes que os lança, freneticamente, no campo de lutas. Tentar resolver o problema na base evitando a formação de novos torcedores/lutadores/baderneiros talvez seja o único modo de colocar fim a esses lamentáveis episódios.

Chico Anysio

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O corpo de Chico Anysio foi cremado ontem, domingo. Metade das cinzas dele ficará no Rio; a outra metade seguirá para Maranguape, Ceará, terra onde nasceu o notável humorista.

Nesses três dias terão se dito e escrito tudo a respeito de Chico Anysio. A televisão recordou, em programas especiais, as fases da vida do humorista e a mais de duas centenas de personagens por ele criados. Os amigos vieram a público para realçar a personalidade de Chico, destacando-se, além do lado artístico, a humanidade do humorista que, ao longo de sua carreira, ajudou muita gente. Realçou-se, também, o lado família de Chico Anysio, reverenciado como pai excelente.

Chico Anysio ocupou todos os meios de comunicação por ocasião de seu desaparecimento. Seu velório, realizado no Teatro Municipal do Rio, atraiu uma multidão que compareceu ao local para um último adeus. Nos jogos de futebol, realizados no país no último domingo, várias homenagens ao artista foram realizadas. Pode-se dizer que o país chorou a morte de Chico Anysio.

Não deixa de chamar a atenção o fato de alguém no país merecer tanta atenção e reconhecimento público. Numa época em que rareiam cada vez mais as personalidades marcantes e os cargos públicos em geral são ocupados por oportunistas de vários matizes, a morte de Chico Anysio surge como momento de reflexão. Era ele genuinamente brasileiro em todos os aspectos e ninguém mais que ele soube caracterizar tão bem o nosso modo de ser. Ao transmudar-se em inúmeros personagens implantou em cada um deles uma parte da alma dos brasileiros que neles se reconheceram e puderam rir de seus próprios exageros.

Chico Anysio fez do humor a ferramenta essencial para um mergulho nessa imensa diversidade cultural e racial que torna o nosso país um grande mar de contrastes. Durante quase quarenta anos ele manteve um programa semanal na televisão cedendo-nos o conforto da descontração através do riso. Em épocas bem mais difíceis que a hoje vivemos houve momentos em que só ele teve forças para fazer-nos rir das nossas desgraças.

Um homem assim é de fato incomum e as homenagens que recebeu por ocasião de seu desaparecimento mais que merecidas.

Chico Anysio deixa um grande vazio em nosso cotidiano, ele que dominava a arte de retirar de nossos lábios o amargor da tristeza ao fazer-nos rir, muitas vezes de nós mesmos.

Morte na Austrália

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Não era comum, décadas atrás, que rapazes brasileiros fossem viver no exterior. Lembro-me de um parente, filho de pai abastado, que viajava ao exterior com alguma frequência. Quando voltava falava-nos de Nova York, Paris e outras cidades do mundo que, para nós, pareciam ficar em outro planeta. As distâncias de então pareciam incomensuravelmente maiores e a comunicação era muito difícil.

Hoje em dia inúmeros rapazes brasileiros vivem no exterior, grande parte estudando em faculdades, fazendo cursos de línguas estrangeiras etc. A maioria deles consegue algum dinheiro fazendo bicos e, ajudados ou não pela família, acabam levando vida bastante razoável fora do país.

Quem tem filho morando fora em geral se preocupa bastante. Verdade que na maioria dos países para onde vão os nossos jovens o ambiente nem de longe se assemelha ao do nosso cotidiano em termos de violência. Segurança é tudo e vale a pena viver num lugar onde se pode circular pelas ruas a qualquer hora do dia e da noite sem o perigo de ser abordado por bandidos.

Agora surge o caso desse rapaz morto pela polícia em Sidney, Austrália. As circunstâncias que precederam a morte do rapaz são nebulosas, mas o desenlace final foi presenciado por testemunhas: o rapaz estava correndo dos policiais e foi atingido por choques emitidos por armas que o mataram. Não se sabe ao certo o que ele teria feito para provocar a perseguição policial. Fala-se sobre o roubo de um pacote de bolachas numa loja, mas isso parece não ter acontecido. Em todo caso sabe-se que apenas uma descarga elétrica teria sido suficiente para imobilizá-lo e ele recebeu três ou quatro. Uma testemunha que presenciou a cena afirma que o rapaz, já no chão, gritou por socorro, mas os policiais aplicaram-lhe mais choques daí ter morrido.

A vítima tinha 21 anos de idade e seu visto de permanência na Austrália duraria até 2014. O fato estarreceu o país onde o nível de violência é muito baixo e uma ação como a dos policiais desperta reação da opinião pública. Discute-se a validade de serem usadas pela polícia armas como as que provocaram a morte do rapaz.

O governador do estadão de Nova Gales do Sul, onde fica Sidney, promete transparência na investigação do caso e existe a possibilidade de que o uso de eletrochoques seja banido. O governo brasileiro faz a sua parte, exigindo explicações sobre o infausto acontecimento. Mas, nada disso restituirá à família esse rapaz de 21 anos, morto durante tão desastrada e absurda ação policial.

A gangue das loiras

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Loira ou morena? O assunto dá pano para manga e não existe acordo na preferência dos homens brasileiros em relação ao sexo oposto. Ainda mais em se considerando que, na atualidade, morena vira loira e loira vira morena com a maior facilidade. Culpa dos cosméticos, tinturas, salões de beleza e das cirurgias capazes de modificar a aparência de qualquer um. Não é que o Silvio Santos tentou assumir os cabelos brancos e agora se notícia que os fãs dele protestaram daí ele anunciar que vai tingir de novo a cabeleira?

Pois é, acontece com todo mundo, de ambos os sexos. Mas, num país em que a morenidade é mais disseminada as loiras, verdadeiras e tingidas, causam furor. Há aqueles machos que têm prevenção e afirmam, categoricamente, que em loira nenhum homem não pode confiar. O besteirol é grande e corre solto nas conversas entre homens que se juntam para um chopinho. Mulher é assunto de homem, assim como homem é assunto de mulher. Há quem proteste contra essa afirmação, mas, enquanto isso, o mundo gira e a Lusitana roda.

Outra besteira que corre em relação às loiras é a de que loira é burra. Isso dá o que falar, mas, piadas a parte, pode terminar em confusão. Anos atrás presenciei um camarada levar um sopapo de uma belíssima loira porque disse na cara dela que loira quanto mais bonita é, mais burra.

Mas, saudações às loiras, às morenas, às mulheres. E vamos ao que interessa.

Agora surge a gangue das loiras. Trata-se de um bando de seis mulheres - cinco delas loiras - e um homem que se especializaram em sequestros-relâmpago.  Segundo se informa elas andam muito bem vestidas e aparentam pertencer à classe média alta. Atuando desde 2008 elas atacam as suas vítimas em shoppings e usam os cartões de crédito delas para retirar dinheiro e fazer compras. Está na internet um vídeo no qual uma das loiras da gangue faz compras num shopping e retira dinheiro do caixa eletrônico, para isso usando um cartão roubado.  Mais: noticia-se que uma das loiras tinha vida dupla. Morando em Curitiba, casada e com dois filhos, viajava a São Paulo sem conhecimento do marido para se transformar numa violenta e perigosa sequestradora. Assim, afirmam os policiais, a mãe zelosa passava agir de arma em punho e usando linguajar chulo. Segundo o delegado que cuida dos crimes da gangue o caso dessa loira precisa ser estudado de vez que é inexplicável o fato de uma mulher deixar sua vida confortável em Curitiba para cometer crimes em São Paulo.

A curitibana foi presa na casa dela, na frente do marido e dos filhos. O marido está estarrecido, simplesmente não acredita na vida dupla da mulher. Será que ela tem necessidade de mais adrenalina no cotidiano?

Rapaz… Que coisa hein? Que sejam presas e paguem pelos malfeitos delas.

Eh, mundo louco!

Quites com a lei

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O melhor é cometer crimes na adolescência. Menores de 18 anos que tenham cometido um ou mais crimes de qualquer grau ficam três anos recolhidos a instituições educacionais. É o que reza a lei.

Ontem um rapaz se entregou à polícia no Rio Grande do Sul. Autor de pelo menos cinco assassinatos compareceu ele, acompanhado da mãe, para ser recolhido a uma instituição. O interessante é que o rapaz decidiu se entregar um dia antes de completar 18 anos de idade. A lógica que o moveu é bastante simples: se ele fosse capturado após os 18 anos de idade seria condenado a ficar em uma penitenciária por alguns anos; entregando-se na data limite o máximo que vai acontecer a ele são os três anos de recolhimento a uma instituição educacional.

Lógica perfeita, brilhante. O criminoso fez uso da lei em seu favor, agiu segundo seu interesse. Um delegado disse, em entrevista, que a lei precisa ser revista porque três anos de recolhimento é muito pouco para quem comete crimes tão graves. Foi lembrado o caso de outro rapaz que assassinou doze pessoas e também recebeu os mesmos três anos de recolhimento.

Dias atrás ouvi um jurista falando sobre o Código Penal Brasileiro que é de 1940, embora tenha recebido algumas atualizações. Afirmava o jurista que é preciso rever o Código que, segundo ele, já não atende à realidade dos dias de hoje.

Para o vulgo que não é jurista e não entende de Código Penal fica a sensação de impunidade. Um rapaz que mata cinco pessoas e se apresenta para quitar-se com a lei em benefício próprio certamente bom sujeito não é. Que fará ele, vencidos os três anos na instituição educacional? Terá então 21 anos de idade e estará livre, sem pena a cumprir, quem sabe melhor preparado para a prática de novos crimes.

“O Artista”

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Assisti a “O Artista” e, para dizer o mínimo, a obra mereceu o Oscar de melhor filme de 2011. Trata-se de uma lembrança sobre o cinema sem os efeitos especiais computadorizados que hoje pipocam nas telas e, mais que isso, sem a fala dos artistas. É nesse mundo em preto-e-branco que se agita o ator George Valentin – interpretado por Jean Dujardin – astro em ação no final dos anos 20 e início da década de 1930. Valentin é um ídolo do dos filmes mudos mudo que atraem multidões aos cinemas. Sua técnica de atuação é rica em expressões faciais úteis para suprir a ausência de diálogos, sempre ajudado em cena pelo seu pequeno cão Uggle que também mereceria um prêmio pela sua grande atuação.

A grande questão que envolve a trajetória de Valentin é o fim do cinema mudo e o início do cinema falado. Nesse sentido a trajetória de Valentin é semelhante à do ator real, John Gilbert, grande astro na década de 1920, mas que sucumbiu na era do cinema falado. Gilbert chegou a participar de um filme falado, mas conta-se que sua voz provocou risos na plateia. Também se conta que a voz de Gilbert foi adulterada de propósito sob mando do dono da Metro, mas isso pertence às más línguas do mundo cinematográfico. A partir do início da era dos filmes falados John Gilbert caiu em desgraça, começou a beber e morreu em 1936.

Em “O Artista” a carreira de George Valentin também é destruída pelo aparecimento do som nos filmes. Apresentado à novidade ele ri e não vê futuro no cinema falado. Mas, os filmes falados deixam para trás o tempo do cinema mudo e quem desponta como grande atriz na nova  era é justamente Peppy Miller – interpretada por Bérénice Bejo – cujo início de carreira fora justamente impulsionado por George Valentin.

É desse modo que a alegria da primeira parte do filme, quando Valentin é ídolo, é substituída pelas cenas de decadência do grande ator que, entretanto, encontra em Peppy Miller o seu anjo da guarda. É Peppy quem vela por Valentin e o socorre em suas agruras e piores momentos. Mas, não é fácil ajudá-lo: Valentin é orgulhoso, teimoso e a todo custo quer afundar-se sozinho.

O maior mérito de “O Artista” certamente está no retorno às origens do cinema, fazendo-nos lembrar de que a sétima arte lutou em seus primórdios para ser o aquilo em que hoje se tornou. “O Artista” é um filme exato, sem erros e a grande atuação de Jean Dujardin confere o pulso às ações, daí ter sido ele premiado com o Oscar de melhor ator.

Por outro lado o filme nos leva a refletir sobre a efemeridade da glória e a instabilidade das estruturas que nos sustentam. A vida é um grande jogo no qual tudo pode acontecer, sendo que vitórias e derrotas dependem de condições tantas vezes alheias à nossa vontade. Nesse fato, talvez, a grandeza em espelhar na tela o fim de uma era e o início de outra, com os acidentes de percurso que influem, dramaticamente, na vida das pessoas envolvidas.

Ecos da violência

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Encontro um amigo que não vejo há alguns anos. Deixo de lado a pressa e sentamo-nos para colocar a conversa em ordem. Ele é mineiro, região de Barbacena e foi criado num sítio. Tinha dezesseis anos quando, juntamente com um irmão, disse ao pai que não trabalhariam na lavoura e tentariam a sorte na cidade grande. Foi assim que vieram para São Paulo. O irmão trabalhou durante alguns anos na capital, mas tornou ao sítio. O meu amigo embrenhou-se na tal selva de pedra e até hoje vive nela.

Esse meu amigo nunca perdeu a mineiridade. Homem de sorriso franco é bom conversador e seu rosto ilumina-se quando reflete sobre sua trajetória na cidade grande. Nesse ritmo trocamos conversa que vai bem até que pergunto sobre a família dele. Então o rosto dele se fecha, as largas sobrancelhas se juntam numa contração da testa e ele me olha com jeito aborrecido.

Fico sabendo que a filha do meu amigo estava empregada numa empresa canadense na qual trabalhava como auditora. O bom desempenho da moça a havia qualificado para trabalhar na sede da empresa, no Canadá, onde ficaria por pelo menos quatro anos e depois retornaria ao Brasil. Aconteceu que, pouco antes da ida para o Canadá, a moça foi vítima de sequestro que só não se prolongou porque policiais viram o revólver de um marginal encostado na cabeça dela. O bandido acabou descendo do carro e se evadiu após perseguição policial.

Conta o meu amigo que, depois disso, a filha não apresentou , pelo menos aparentemente, sequelas decorrentes do sequestro. Mas, cerca de um mês após, houve em São Paulo a grande ação do PCC (Primeiro Comando da Capital) que, como lembramos, paralisou a cidade. Nesse dia a empresa onde a moça trabalhava dispensou seus funcionários para que retornassem às suas casas em segurança. Estava a filha do meu amigo dentro de um ônibus na Avenida Marginal quando esse foi atacado por bandidos que o incendiaram. Aconteceu, então, da moça ficar presa no fundo do ônibus em chamas do qual, felizmente, conseguiu sair atempo de salvar-se.

Depois disso, a moça começou a dizer-se perseguida. Mudou o comportamento, a mania de perseguição cresceu. Acabou sendo afastada do trabalho, perdeu a chance de ir ao Canadá. Hoje vive em casa com a mãe. Não sai sozinha, tem medo de tudo. Está em tratamento psiquiátrico, toma vários remédios, mas nada de melhora significativa.

Ouço isso e não encontro o que dizer ao meu amigo. Ele ainda me diz que, em todo caso, agradece porque a filha está viva. Despedimo-nos com um abraço. De volta para casa não consigo deixar de pensar na tragédia da moça. Diariamente recebemos muitas notícias sobre ações violentas com vítimas. Tornaram-se rotina e fazemos de conta que não acontecem no meio em que vivemos. Então encontramos um velho amigo e ele nos dá conta de que a violência pode entrar nas nossas casas, acontecer com a gente ou com alguém a quem amamos. Fica sensação de impotência contra um mal galopante que corrói a sociedade e a torcida para que, um dia desses, não sejamos nós os escolhidos para esse tipo de barbaridade.

Os dezesseis afegãos

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Não dá para reconstruir a fatídica trajetória do soldado norte-americano que assassinou dezesseis civis afegãos. Nem mesmo imaginar como teria ele sido levado a esse ato extremo, matando os dezesseis, dos quais nove eram crianças, e queimando corpos.

Acontecida a tragédia, especulou-se sobre a impossibilidade do soldado ter realizado sua obra sozinho. Depois, concluiu-se que ninguém estava com ele, embora se estranhasse que tivesse conseguido ter feito o que fez e como fez sozinho.

Até agora a identidade do soldado não foi divulgada. Sabe-se que ele é um atirador de elite, carreira meritória, casado, pai de dois filhos. Falou-se sobre ser alcoólatra, usuário de drogas, mas isso foi desmentido. Fica a dúvida: por quê?

O soldado está preso e nesse momento sendo transferido aos EUA porque não havia mais como garantir a segurança dele em território afegão. O presidente Obama pediu esculpas ao governo e povo afegão. É grande a revolta no Afeganistão contra os crimes praticados pelo soldado. O talibã reagiu e as negociações para o estabelecimento da paz no Afeganistão estão, temporariamente, comprometidas.

Quando era menino fui com meu pai à terra natal dele, cidade vizinha da nossa, para presenciarmos a soltura de um sujeito que estava preso na cadeia local há muitos e muitos anos. A história desse homem impressionara muito a meu pai, daí ele que o conhecera no passado, querer vê-lo no momento em que a liberdade era restituída a ele. Mas, o que fizera para estar preso?

Contava meu pai que certa manhã o tal sujeito, até então pessoa pacífica, matara três pessoas de sua família a facadas. Depois disso, ele que morava num sítio, tomara o caminho da cidade e, no trajeto, foi matando com a mesma faca todos aqueles a quem encontrou. Não sei ao certo quantas mortes aconteceram, mas, se bem me recordo, mais de seis.

Os crimes do sitiante aconteceram por volta de 1940 e meu pai vez ou outra se lembrava do fato que aguçara a curiosidade pública num tempo em que atos violentos eram raros na região onde morávamos. Daí meu pai sempre cismar sobre o fato e perguntar-se: por quê?

Eu vi um homem já velho e muito abatido saindo da prisão. A pequena multidão que o esperava certamente desiludiu-se porque não havia no pobre sujeito nenhum sinal que identificasse o grande assassino, capaz de cometer crimes de tão grande proporção. Era um homem de estatura mediana que saiu andando devagar e em nenhum momento ousou levantar a cabeça. Foi assim que o vi, só naquele instante; depois nunca mais ouvi falar sobre ele.

Lembrei-me do sitiante assassino ao ler sobre o soldado norte-americano. Não sei que razões serão atribuídas ao crime do soldado, talvez a algum tipo de desequilíbrio mental provocado pelas tensões sofridas em participações de atos guerreiros. De minha parte prefiro supor que talvez as tensões a que foi submetido tenham despertado nele aquele outro lado da personalidade que emerge em condições extremas e leva pessoas a praticarem o inimaginável.

De todo modo o destino do soldado está selado e existe até a possibilidade de que venha ser condenado à morte. De todo modo os Estados Unidos têm interesse em aplicar ao soldado a pior punição possível para que os afegãos sintam que a justiça foi feita.